Com o desenvolvimento e a popularização da eletrônica digital a partir do final da década de 1970, um número cada vez maior de produtos eletrônicos passou a fazer parte da vida de pessoas em todo o mundo. Um dos grandes destaques dessa época foram os primeiros microcomputadores pessoais. Num rápido exercício de memória posso citar o Commodore 64, o Altair e o fantástico Apple II, um microcomputador com o qual trabalhei no início da década de 1980. Também não posso esquecer de citar os consoles de jogos eletrônicos, calculadoras, palm tops e agendas eletrônicas, além de uma montanha de quinquilharias eletrônicas que surgiam a toda hora.
Anos mais tarde, com a introdução da telefonia celular, esse mercado, literalmente, pegou fogo. A cada mês surgiam novas tecnologias e aparelhos celulares cada vez menores, transformando os antigos “tijolos” em sucata. Esses celulares demandavam baterias recarregáveis, carregadores, kits para uso em veículos, entre outros “acessórios”. Atualmente, são produzidos mais de 2 bilhões de aparelhos celulares no mundo por ano e calcula-se que, desde 1994, já foram produzidos mais de 15 bilhões de aparelhos. Mais cedo ou mais, tudo isso vai virar lixo eletrônico.
Estimativas falam de uma produção anual de lixo eletrônico no mundo entre 50 e 100 milhões de toneladas. Dados da OIT – Organização Internacional do Trabalho, mostram que o volume de lixo eletrônico cresce sem parar nos países em desenvolvimento. A fonte desse crescimento não se deve necessariamente ao uso de equipamentos eletroeletrônicos pelas populações desses países, mas na exportação ilegal de lixo eletrônico dos países ricos para países pobres como Gana, Nigéria, Índia e China. Mais de 80% do lixo eletrônico das nações ricas é enviado ilegalmente para outros países, sob a rubrica de equipamentos eletroeletrônicos de segunda mão.
Cerca de 70% dos produtos eletrônicos descartados no mundo eram exportados para a China, que terceirizava os trabalhos de reciclagem em países pobres da região como o Camboja e o Vietnã. Uma alteração na legislação chinesa em 2018 passou a limitar e, em alguns casos, proibir essas importações e outros países da África, subcontinente indiano e sudeste Asiático passaram a absorver novas fatias desse mercado. De acordo com informações da ONU – Organização das Nações Unidas, 64 milhões de pessoas no mundo sobrevivem exclusivamente da reciclagem de materiais, onde se incluem as perigosas atividades de reciclagem do lixo eletrônico.
Um país que há várias décadas assumiu uma posição de “destaque” na reciclagem de produtos eletrônicos é Gana, no Oeste da África. Com cerca de 238 mil km² de superfície e com uma população na casa dos 28 milhões de habitantes, Gana ocupa uma posição mediana entre as economias da África. Cerca de metade do PIB – Produto Interno Bruto, é gerado pela agricultura, com destaques para o cacau (onde se usa e se abusa da mão de obra infantil), abacaxi, café e bananas. Também são importantes as atividades extrativistas, especialmente a mineração do ouro, manganês e bauxita, e a extração e beneficiamento de madeiras para exportação. Apesar de não entrar na lista dos países mais pobres do mundo, cerca de 25% da população de Gana vive abaixo do limite da pobreza.
A reciclagem de materiais, como acontece nas grandes cidades dos chamados “países em desenvolvimento”, começou como uma alternativa de sobrevivência para as populações pobres de grandes cidades como Accra, a capital do país, e Axante. Em depósitos nas periferias dessas cidades começaram a surgir unidades de reciclagem de peças de carros, caminhões e eletrodomésticos. Com o passar do tempo, essas populações começaram a receber propostas de empresas de reciclagem de países ricos para a venda de equipamentos eletrônicos “seminovos”, que poderiam ser revendidos para a população local e ou reciclados. Com a conivência de autoridades do Governo, essas importações se transformaram em uma grande indústria no país.
Cerca de 215 mil toneladas de aparelhos eletrônicos seminovos provenientes dos Estados Unidos e dos países da Europa são exportadas para reciclagem em Gana a cada ano. Números oficiais falam de valores na casa das 50 mil toneladas/ano. Existem grandes redes de contrabandistas especializados no transporte e comercialização ilegal desses produtos para países pobres de todo o mundo, o que pode explicar as diferenças nos valores exportados. Esses grupos trabalham com a nobre missão de “reciclar o lixo eletrônico dos países ricos”, despejando esses resíduos em nações miseráveis do mundo.
Equipamentos eletrônicos utilizam grandes quantidades de metais valiosos como cobre, estanho, níquel, prata e ouro. Utilizando-se tecnologias adequadas, grande parte desses metais pode ser recuperado e revendido. Um exemplo interessante que podemos citar são as Medalhas que serão distribuídas na Olimpíada de Tóquio dentro de poucos meses e que serão produzidas a partir de metais recuperados de sucatas eletrônicas. Serão produzidas mais de 5 mil medalhas, entre Olímpicas e Paralímpicas, onde se estima um consumo de 10 kg de ouro, 1.700 kg de prata e, para as medalhas de bronze, cerca de 1.000 kg de cobre e 50 kg de zinco.
Os pobres ganenses, infelizmente, estão muito distantes do patamar tecnológico de reciclagem dos japoneses, dispondo apenas de ferramentas rudimentares como chaves de fenda, alicates, marretas e fogo para separar os metais dos plásticos. Além de todos os riscos de acidentes associados às mais precárias condições de trabalho, esses trabalhadores ficam expostos à fumaça tóxica resultante da queima dos fios, cabos e componentes, que além dos resíduos dos plásticos e borrachas queimados, exalam vapores de metais como mercúrio, chumbo, alumínio, prata e cobre, metais tóxicos para o organismo humano que, quando inalados nestas condições, são responsáveis pelo desenvolvimento de inúmeras doenças.
Uma região onde a “reciclagem” de produtos eletrônicos é feita em larga escala é Agbogbloshie, uma região que concentra inúmeras favelas em Accra. De acordo com informações do Governo local, mais de 80 mil pessoas vivem nessas favelas e cerca da metade desse contingente tira o seu sustento diário da reciclagem de resíduos eletrônicos. Estudos feitos em ovos produzidos por galinhas criadas nessas favelas encontraram concentrações de dioxinas até 220 vezes acima dos limites máximos permitidos, o que demonstra a gravidade da situação. Dioxinas são moléculas altamente tóxicas que se formam a partir da combinação de substâncias durante a queima de produtos químicos e plásticos.
Além da gravíssima poluição do ar (vide foto), que afeta diretamente a saúde dos moradores das favelas e bairros mais próximos, os resíduos que sobram são descartados em lixões improvisados, contaminando o solo e as águas. Entre esses resíduos destacam-se quatro das substâncias mais tóxicas conhecidas pela humanidade: o mercúrio, o chumbo, o cádmio e o arsênico. Como a base econômica do país é a agricultura, os problemas ambientais provocados pelos resíduos eletroeletrônicos se espalham em cadeia por todas as direções – toda a população acaba sofrendo, direta ou indiretamente. Já os lucros obtidos com a revenda dos metais recuperados, esses ficam nas mãos de uma seleta elite ganense.
Gana é o exemplo perfeito de como uma única atividade econômica mal planejada e executada nas condições mais precárias pode inviabilizar o meio ambiente de todo um país, causando sérios problemas e riscos para a saúde de sua população.
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[…] pegar uma carona no tema que tratamos nas últimas postagens, o lixo eletrônico, e destrinchar um outro lado dessa indústria – a exploração de […]
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