OS “LIXÕES” DE MOSCOU E DE TODA A RÚSSIA

Lixões na Rússia

Até novembro de 1989, quem é um pouco mais velho se lembra bem disso, o mundo era divido em dois grandes blocos ideológicos e econômcos. O Ocidente, sob a liderança dos Estados Unidos, formava o chamado “Mundo Livre” dos capitalistas. O lado Oriental, sob o comando férreo da Rússia, formava o Bloco Comunista, também conhecido como a “Cortina de Ferro”.  

No dia 10 de novembro de 1989, um dos principais ícones do mundo comunista, o Muro de Berlim, caiu por terra. Construído às pressas em agosto de 1961, esse “muro” separou, física e metaforicamente, o mundo ao meio. Com pouco mais de 66 km de extensão entre trechos de muro e cerca metálica, essa passou a ser uma das fronteiras mais vigiadas do mundo. Além de uma altura de mais de 3 metros, o Muro de Berlim possuía 302 torres de observação, onde atiradores de elite tinham ordens para abater qualquer um que ousasse atravessar essa linha divisória do mundo. 

Com a acelerada decadência política e econômica na Rússia ao longo da década de 1980 e com os riscos cada vez menores de ocorrência da “Guerra Fria”, o Muro de Berlim passou a ser cada vez menos relevante. Pode-se até dizer que esse muro “caiu de podre” no final de 1989, quando começou um complicado e caro processo de reunificação da Alemanha. Os países “satélites” que formavam a antiga URSS – União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, também foram obrigados a se abrir para o mundo e iniciar, cada um a seu próprio modo e tempo, um processo de independência e reconstrução. 

Comecei essa postagem citando esses fatos históricos para poder analisar uma série de problemas ambientais que assolam a Rússia na atualidade. Ao longo de todo o período em que vigorou o regime comunista no país (1917-1991), os inúmeros grupos étnicos que vivem no seu extenso território aprenderam a ser “surdos, cegos e mudos” em relação a tudo o que ocorria a sua volta. Os cidadãos recebiam as tarefas designadas pelos planejadores do Estado Central e cumpriam os seus deveres, por pior que fossem, sem reclamar ou questionar qualquer coisa. 

Qualquer deslize ou pensamento diferente do era ditado pelo regime podia resultar em prisão, deportação ou desaparecimento puro e simples. Posso citar como exemplo os gulags, os grandes campos de prisioneiros nos confins das estepes russas. As estimativas falam de um total entre 3 e 10 milhões de prisioneiros entre os anos de 1930 e 1960. Algumas dessas prisões funcionaram até o colapso total da União Soviética em 1991 e dezenas de milhares de presos políticos nunca voltaram a ser vistos. 

Mesmo após a queda do regime comunista e de todas as mudanças políticas que a Rússia experimentou desde então, os “gatos escaldados” da sociedade mantiveram o mesmo comportamento de neutralidade dos velhos tempos. Sem qualquer tipo de oposição ou de protestos (o que até hoje ainda depende da solicitação de uma autorização juntos aos diversos níveis de Governo para serem realizados), os administradores públicos continuaram a executar suas atribuições à maneira que melhor lhes convinha, sem se preocupar com a vontade e os sonhos da população. 

Uma área da vida cotidiana dos russos em que essa falta de diálogo entre autoridades e cidadãos se mostra da maneira mais cruel é a coleta e a disposição dos resíduos sólidos nas cidades de toda a Rússia. Esse serviço é uma das atividades mais elementares de qualquer prefeitura pelo mundo a fora. Segundo estimativas feitas pelo Greenpeace, uma das maiores organizações ambientalistas do mundo, as cidades russas geram anualmente cerca de 70 milhões de toneladas de resíduos sólidos.

Esse volume aumentou cerca de 30% nos últimos 10 anos. Desse volume total de resíduos,  apenas 2% são incinerados e 7% passa por algum tipo de reciclagem. Todo o restante é despejado em inúmeros lixões a céu aberto espalhados pelo país. A trágica imagem que ilustra essa postagem mostra um urso polar vasculhando um lixão na Sibéria em busca de restos de comida.

Em Moscou, a maior cidade e capital do país, essa situação é trágica. São cerca de 11 milhões de toneladas po ano, o que equivale a 16% de todos os resíduos gerados na Rússia. O destino final de todo esse volume de materiais eram 40 lixões espalhados por toda a região periférica da Grande Moscou, onde os resíduos eram simplesmente jogados sem qualquer critério. Nos últimos anos, 24 desses lixões foram abandonados devido a saturação dos espaços, transformados em verdadeiras montanhas de lixo ao longo das décadas. 

Com 11 milhões de habitantes em seu território e com 16 milhões de pessoas vivendo na sua Região Metropolitana, Moscou está muito próxima em tamanho e população da Grande São Paulo. Para efeito de comparação, os paulistanos que vivem nas 39 cidades da Região Metropolitana geram cerca de 6 milhões de toneladas de resíduos por ano, onde perto de 95% tem como destino 13 aterros sanitários. Apesar de reciclarmos tão poucos resíduos como os russos, a nossa situação, muito longe da ideal é claro, é mais confortável aqui na Pauliceia do que em Moscou. 

Os problemas criados pelos lixões da Região Metropolitana de Moscou são muitos. A intoxicação de moradores que vivem nas cercanias desses lixões por gases tóxicos liberados pelos resíduos é um dos principais problemas. De acordo com reportagem publicada pela AFP – Agência France Press, cerca de 50 crianças de Volokolans, uma cidade que fica a Nordeste de Moscou, foram atendidas em um posto de saúde local em março de 2018 apresentando graves problemas de intoxicação. A causa dessa intoxicação foram as intensas emissões de gases de um grande lixão localizado nas proximidades

A mesma reportagem cita problemas semelhantes em Balashitkha, uma cidade localizada a 6 km do centro de Moscou. A comunidade sofre diariamente com o mal cheiro e com os gases gerados por um grande lixão local. Durante um programa de televisão onde o Presidente da Rússia, Vladimir Putin, estava sendo entrevistado ao vivo, alguns moradores pediram publicamente que esse aterro fosse fechado. Desde então, os protestos na região passaram a se multiplicar, mesmo esbarrando na intensa repressão da polícia, que bate, atira e prende (não necessariamente nessa ordem), para só depois perguntar algo. 

Sem conseguir continuar escondendo os gravíssimos problemas criados diariamente pelos resíduos sólidos, que literalmente estavam sendo “varridos para debaixo do tapete”, tanto o Governo Central da Rússia quanto a Prefeitura de Moscou passaram a correr atrás de soluções. A grande resposta das autoridades vem sendo o anúncio sistemático de projetos para a construção de incineradores de lixo integrados com centrais de geração de energia elétrica

Esse tipo de solução, que é uma das mais fáceis de serem implantadas e que trazem em seu bojo a ideia de “geração alternativa de energia”, não está agradando grande parte da população e tem gerado cada vez mais novos protestos. Conforme já comentamos em uma postagem anterior, a queima de resíduos sólidos gera um verdadeiro coquetel de gases tóxicos.

Entre esses gases destacam-se as dioxinas e os furanos, moléculas altamente tóxicas que se formam espontaneamente a partir da queima dos materiais. Segundo as citações de alguns especialistas, “as dioxinas são as moléculas mais tóxicas já criadas pela humanidade”. 

No Japão, um dos países mais industrializados do mundo e que há várias décadas se vale de centrais para incineração de parte dos seus resíduos sólidos, as emissões involuntárias de dioxinas e de furanos nos incineradores causam enormes preocupações na população e nas autoridades, apesar de todo o rigor nos processos e do uso de filtros nas chaminés. Agora imaginem o que poderá acontecer com incineradores de resíduos construídos e operados por russos.

Aqui não há nenhum tipo de discriminação contra os russos – muito pelo contrário, tenho profundo respeito e admiração por esse povo. A questão é de tecnologia e de um longo histórico de falhas em procedimentos operacionais, herança dos antigos tempos do regime comunista. Uma lembrança fácil é o trágico acidente com a usina nuclear de Chernobil, na Ucrânia, em 1986, onde uma sucessão de falhas em equipamento e nos procedimentos dos funcionários resultaram no maior acidente nuclear da história humana.

Enquanto as soluções não aparecem, os problemas continuam sendo “acumulados” e os moscovitas seguem sofrendo com uma infinidade de problemas ambientais. 

Continuamos na próxima postagem.

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