OS CANDIRUS DO RIO MADEIRA, OU AINDA FALANDO DO MERCÚRIO NOS RIOS

Garimpo no rio Madeira

Entre os anos de 2009 e 2010, trabalhei naquela que seria a maior obra de saneamento básico do Brasil. O tempo verbal usado na frase tem sua razão de ser – seria, mas não foi. A obra, que prometia construir redes coletoras e estações de tratamento de esgotos por toda a cidade de Porto Velho, capital do Estado de Rondônia, mal conseguiu sair do papel. Brigas entre diferentes grupos políticos da região resultaram na paralisação total das obras e bloqueio das verbas do projeto por ordem do TCU – Tribunal de Contas da União. Dos 1.200 km de redes coletoras de esgotos previstas, só conseguimos instalar, e a muito custo, apenas parcos 32 km. Uma grande oportunidade perdida pela cidade. 

Pois bem – logo que desembarquei em Porto Velho pela primeira vez, comecei a ouvir falar dos temidos candirus (Vandelia cirrhosa), uma espécie de peixe carnívoro comum nos rios Madeira e Amazonas. Esse peixe, também chamado de peixe-vampiro, tem o formato de uma agulha e é conhecido por penetrar nas guelras de peixes maiores, onde passa a se alimentar do sangue do hospedeiro. Devido a essas suas características alimentares, os candirus podem atacar banhistas “desprevenidos” (ou seja, que estão nadando nus), penetrando na uretra, vagina e ânus – o peixe só pode ser retirado desses locais através de cirurgia. Por medo dos candirus, as populações ribeirinhas evitam nadar nas águas do rio Madeira. 

Nas últimas décadas, as águas do rio Madeira ganharam um novo e perigoso “componente”, que chegou para dividir espaço com os implacáveis candirus: o mercúrio dos garimpos. 

Conforme comentamos em postagens anteriores, o mercúrio é um metal altamente tóxico para os seres vivos e é usado em grandes quantidades nos garimpos, onde tem a função de separar o ouro dos sedimentos. Os fragmentos de ouro se ligam ao mercúrio formando uma amálgama. Essa amálgama é depois submetida a altas temperaturas com o uso de maçaricos, fazendo o mercúrio evaporar e deixando apenas o ouro. Essa técnica de separação do ouro foi usada intensamente nas Américas entre os anos de 1540 e 1900, onde se estima um consumo de 200 mil toneladas de mercúrio nas colônias espanholas e de 60 mil toneladas na América do Norte, entre os século XVIII e XIX

Ao longo do século XX, o uso do mercúrio na mineração do ouro entrou em franca decadência, especialmente pela introdução da técnica de cianetação para a separação do metal. Com as sucessivas descobertas de ouro na região Amazônica a partir da década de 1970, o uso do mercúrio, que é uma técnica barata e muito eficiente, voltou a ser usada em larga escala. Os principais usos do mercúrio na região estão em garimpos no Brasil, Bolívia, Colômbia, Venezuela e na Guiana, onde se estima o uso de cerca de 200 toneladas anuais. 

A mineração de ouro no alto rio Madeira começou em meados da década de 1970, quando cavas manuais passaram a ser instaladas nas margens do rio no trecho entre Porto Velho e a Vila de Abunã. Na década de 1980, o Ministério das Minas e Energia regulamentou a criação da Reserva Garimpeira do Rio Madeira nessa região, que passaria a ocupar a segunda posição entre as maiores produtoras de ouro da Região Amazônia brasileira. 

Em meados da década de 1980, o trecho do rio Madeira entre Porto Velho e Guajará Mirim, cidade brasileira que fica na divisa com a Bolívia, concentrava cerca de 800 dragas e 700 balsas dedicadas a exploração do ouro (vide foto).  A atividade garimpeira atingiu na época uma produção anual de aproximadamente 9 toneladas de ouro, com uma estimativa de emissão de 12 toneladas de mercúrio. Entre os anos de 1979 e 1990, estima-se que aproximadamente 87 toneladas de mercúrio foram usadas nos garimpos da região, sendo que 65% desse total foi lançado na atmosfera na forma de vapor e o restante acabou sendo lançado nos solos das margens e nas águas do rio Madeira. No final de década de 1990, com o esgotamento das reservas auríferas nessa região, a mineração e o uso de mercúrio caiu substancialmente. 

O mercúrio, conforme comentamos em postagem anterior, é absorvido inicialmente por micro algas, insetos, invertebrados e pequenos crustáceos que vivem nas águas dos rios, espécies que formam a base da cadeia alimentar. Essas criaturas são predadas por criaturas maiores, criando-se assim o ciclo de acumulação do mercúrio nos seres vivos. Estudos laboratoriais realizados por biólogos com espécies coletadas nos rios Madeira e Tapajós mostraram que 70% das espécies de peixes carnívoros da Bacia Amazônica, como o tucunaré e o pintado, têm concentrações de mercúrio acima de 500 nanogramas por grama; em algumas espécies, o valor acumulado chegou a 4.700 nanogramas por grama.  

Entre as espécies de peixes detritivos (que comem resíduos e dejetos), como o corimbá e o curimatã, a concentração cai para 20% destes níveis. O consumo de peixes representa a principal fonte de proteína animal na alimentação das populações ribeirinhas, que assim ficam expostas à contaminação cumulativa e sistemática do mercúrio. 

A mesma equipe de pesquisadores realizou testes com fios de cabelo e com leite materno, coletados em um grupo de 200 moradores de uma comunidade do Lago do Puruzinho, na região de Humaitá, município do Estado do Amazonas próximo da divisa com Rondônia, e que é cortado pelo rio Madeira. Os níveis de mercúrio encontrados nas amostras se situou entre 6 e 16 nanogramas, um nível de contaminação suficiente para causar danos ao sistema nervoso central, perda de sensibilidade nas extremidades do corpo, constrição do campo visual, além de causar déficit de aprendizado. Em uma das amostras coletadas, o nível de mercúrio chegou a 30 nanogramas por grama.  

Esses níveis de contaminação por mercúrio não são considerados alarmantes pelos especialistas, mas requerem atenção e monitoramento – como a população local mantém o consumo de peixes capturados no rio Madeira, esses níveis podem continuar aumentando, colocando em risco especialmente as mulheres grávidas, onde existe o risco de danos ao feto, e os adolescentes. O monitoramento sistemático do rio Madeira, feito pela UNIR – Universidade Federal de Rondônia em parceria com a Santo Antônio Energia, indica que os níveis de mercúrio vem sendo reduzido sistematicamente, se encontrando bem abaixo dos limites estabelecidos pelo CONAMA – Conselho Nacional do Meio Ambiente, que se situa em 0,0002 miligramas de mercúrio por litro de água.  

Apesar dessa boa notícia, é preciso lembrar que grandes volumes de mercúrio permanecem acumulados nos sedimentos do rio e não se sabe exatamente quais os riscos ambientais que isso pode representar no longo prazo 

A mineração do ouro não é a única fonte de contaminação das águas dos rios da Amazônia com mercúrio – os desmatamentos e a exposição dos solos às chuvas também dão sua contribuição neste processo. Falaremos disso na próxima postagem. 

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