AS EXPORTAÇÕES ILEGAIS DE LIXO ELETRÔNICO E OS RISCOS DE DOENÇAS, OU AINDA FALANDO DE GANA

Criança em lixão de Gana

Na última postagem falamos rapidamente dos problemas ambientais que estão sendo enfrentados pelas populações de grandes cidades de Gana, país do Oeste da África. A principal fonte desses problemas são as importações legais e ilegais de resíduos sólidos – mais especificamente de produtos eletrônicos de segunda mão, um aforismo para lixo eletrônico. Gana acabou sendo transformada em um dos maiores cemitérios de lixo eletrônico do mundo e sua população está sofrendo os efeitos da contaminação pelos mais diferentes metais pesados e elementos tóxicos presentes nesses resíduos.

Nações ricas como Estados Unidos, Canadá, Austrália e países da Europa, descobriram uma forma de se desfazer dos imensos volumes de equipamentos eletrônicos como telefones celulares, computadores, notebooks, tablets e toda uma gama de outros produtos descartados pela população: a exportação para países pobres. A fim de contornar entraves burocráticos, essas exportações se referem a “equipamentos eletrônicos seminovos para revenda”. Chegando nos países de destino na África, subcontinente indiano, Sudeste Asiático e China, entre outros, os produtos são desmontados para o reaproveitamento de metais valiosos. 

Aqui é importante citar que em 1989, foi assinada a Convenção da Basíleia, onde foi estabelecido o controle de movimentos transfronteiriços de resíduos perigosos e seu depósito. Esta Convenção proibe, entre outras, as exportações de lixo eletrônico para outros países, algo que, na prática, acaba acontecendo graças ao uso de um número sem fim de artimanhas, como é o caso da identificação dos resíduos como “produtos eletrônicos seminovos”. Outra forma de descaminho muito utilizada é o puro e simples contrabando de resíduos por grandes organizações criminosas internacionais.

Componentes eletrônicos utilizam uma série de metais nobres de alto valor, onde se incluem ouro, prata, platina, cobre, estanho, níquel, cromo e zinco, entre muitos outros. Também são encontrados alguns metais e substâncias químicas altamente nocivas à saúde humana como mercúrio, arsênico, chumbo e cádmio. O manuseio inadequado das peças com ferramentas rudimentares e o uso do fogo para separar plásticos de metais expõem as populações ao contato, principalmente por inalação, com essas substâncias, o que pode desencadear uma série de grandes problemas de saúde. 

Vejam uma lista com os principais danos causados por algumas dessas substâncias e metais: 

Chumbo – Um metal altamente tóxico que causa danos no sistema nervoso central e no sangue. Quando em baixas concentrações, o chumbo age nos sistemas nervoso, renal e hepático, provocando intoxicações crônicas. Níveis elevados de chumbo causam vômito, diarreia, convulsão, podendo levar a vítima ao coma e a morte. O chumbo é usado na fabricação placas de circuito impresso e, principalmente, em baterias; 

Mercúrio – Metal que se apresenta na forma líquida e que é responsável por danos cerebrais e no fígado. Uma das mais famosas contaminações por mercúrio aconteceu na cidade de Minamata, no Japão, na década de 1950. Resíduos de mercúrio liberados no mar por uma indústria local contaminaram peixes, moluscos e crustáceos, afetando posteriormente os moradores que consumiram essas carnes. Os médicos passaram a observar o surgimento de casos graves de doenças neurológicas, conhecidas posteriormente como Síndrome de Minamata. O mercúrio é usado na fabricação de componentes para computadores, monitores de vídeo e televisores de tela plana; 

Cádmio – Causa danos nos rins, ossos e pulmões. É usado na produção de peças de computadores, monitores de vídeo antigos (com tubo de vidro) e em baterias de notebooks

Arsênico – Causa doenças de pele, além de causar problemas no sistema nervoso central e câncer no pulmão. É usado na fabricação de componentes de telefones celulares; 

Berílio – Metal que causa câncer no pulmão. Usado na fabricação de diversos componentes de computadores e celulares; 

Retardante de chamas (BRT) – Produto químico usado na composição de peças plásticas com o objetivo de prevenir incêndios. O BRT causa desordens hormonais, nervosas e no sistema reprodutor; 

PVC – Plástico usado principalmente no isolamento de fios e cabos elétricos. A fumaça liberada pela queima do PVC é altamente tóxica e causa inúmeros problemas respiratórios. 

Como fica fácil de notar, a exposição contínua a todos esses elementos e substâncias poderá desencadear em uma série de doenças, muitas das quais se manifestarão no longo prazo. Devido aos baixos rendimentos dessas atividades, os chamados “recicladores” trabalham em jornadas longas, de 10 a 12 horas por dia, o que só aumenta os riscos. Vivendo em países pobres como Gana, esses trabalhadores não tem acesso a bons sistemas de saúde pública e de seguridade social. Pessoas acometidas por doenças graves, muitas delas degenerativas, dependerão exclusivamente do cuidado de familiares, amigos e vizinhos. 

Um dado preocupante – os volumes de lixo eletrônico não param de crescer. Uma estimativa feita por analistas de mercado indica que uma pessoa nascida no ano de 2003 e que tenha uma expectativa de vida de 80 anos, vai gerar cerca de oito toneladas de lixo eletrônico ao longo de sua vida. Os sistemas de descarte e reaproveitamento de todo esse volume de resíduos precisa ser repensado e reestruturado rapidamente. 

Também deve ser objeto de discussão as razões que levam uma pessoa a se desfazer de uma grande quantidade de produtos ao longo de sua vida. Num passado nem tão distante, as pessoas adquiriam produtos elétricos e eletrônicos que eram usados por toda a vida. Eu lembro perfeitamente de um liquidificador que minha mãe tinha em casa e que era usado diariamente na preparação de sucos e molhos para a família. Esse eletrodoméstico acompanhou nossa vida por mais de 30 anos e os únicos problemas que ocorriam eram resolvidos com a troca das escovas (chamadas popularmente de carvões) do motor. Os liquidificadores “modernos” não duram mais de 5 anos. 

Estudos recentes indicam que, pelo menos, metade dos aparelhos eletrônicos e eletrodomésticos são descartados ainda em perfeito estado de funcionamento. Esse comportamento é fruto da chamada “obsolescência programada”, um cuidadoso trabalho de marketing realizado pelos fabricantes que tem por objetivo deixar os produtos “fora de moda” rapidamente. Um telefone celular lançado no ano passado estará completamente obsoleto em seis meses ou um ano – os novos lançamentos terão inúmeros novos recursos e um design diferente. O consumidor é induzido a se desfazer do modelo atual, que ainda funciona perfeitamente, e levado a adquirir o mais recente lançamento. 

Um exemplo do que as grandes empresas fazem: uma das maiores fabricantes de telefones celulares do mundo, a Apple, foi condenada recentemente a pagar uma multa de até US$ 500 milhões por causa de alterações ilegais no software dos modelos mais antigos de seus telefones celulares iPhones. Essas mudanças nos programas tornavam os iPhones mais lentos e induziam os consumidores a comprar um telefone mais novo e mais rápido. Com essa “jogada”, a fabricante induziu milhares (quiçá milhões) de consumidores a se desfazer de seus celulares lentos. O detalhe é que um iPhone novo custa muito caro e um modêlo antigo lento tem um valor de revenda baixíssimo, o que levou muita gente a jogar os aparelhos “velhos” no lixo.

Dentro desse ciclo infinito de vendas de novos produtos eletrônicos e de descarte de quantidades cada vez maiores de produtos antigos e obsoletos, os consumidores dos países ricos continuam se divertindo e curtindo as mais novas tecnologias de comunicação digital, enquanto pessoas pobres de Gana e outros países miseráveis continuam sacrificando seu bem estar e até suas vidas na reciclagem de metais valiosos. 

Finalizando, recomendo a todos que assistam ao filme “A HISTÓRIA DAS COISAS” (é só clicar nesse link), para refletir um pouco mais sobre a loucura desse nosso mundo de produção e consumo. 

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GANA: UM DOS MAIORES CEMITÉRIOS DE LIXO ELETRÔNICO DO MUNDO

Lixão em Gana

Com o desenvolvimento e a popularização da eletrônica digital a partir do final da década de 1970, um número cada vez maior de produtos eletrônicos passou a fazer parte da vida de pessoas em todo o mundo. Um dos grandes destaques dessa época foram os primeiros microcomputadores pessoais. Num rápido exercício de memória posso citar o Commodore 64, o Altair e o fantástico Apple II, um microcomputador com o qual trabalhei no início da década de 1980. Também não posso esquecer de citar os consoles de jogos eletrônicos, calculadoras, palm tops e agendas eletrônicas, além de uma montanha de quinquilharias eletrônicas que surgiam a toda hora. 

Anos mais tarde, com a introdução da telefonia celular, esse mercado, literalmente, pegou fogo. A cada mês surgiam novas tecnologias e aparelhos celulares cada vez menores, transformando os antigos “tijolos” em sucata. Esses celulares demandavam baterias recarregáveis, carregadores, kits para uso em veículos, entre outros “acessórios”. Atualmente, são produzidos mais de 2 bilhões de aparelhos celulares no mundo por ano e calcula-se que, desde 1994, já foram produzidos mais de 15 bilhões de aparelhos. Mais cedo ou mais, tudo isso vai virar lixo eletrônico

Estimativas falam de uma produção anual de lixo eletrônico no mundo entre 50 e 100 milhões de toneladas. Dados da OIT – Organização Internacional do Trabalho, mostram que o volume de lixo eletrônico cresce sem parar nos países em desenvolvimento. A fonte desse crescimento não se deve necessariamente ao uso de equipamentos eletroeletrônicos pelas populações desses países, mas na exportação ilegal de lixo eletrônico dos países ricos para países pobres como Gana, Nigéria, Índia e China. Mais de 80% do lixo eletrônico das nações ricas é enviado ilegalmente para outros países, sob a rubrica de equipamentos eletroeletrônicos de segunda mão

Cerca de 70% dos produtos eletrônicos descartados no mundo eram exportados para a China, que terceirizava os trabalhos de reciclagem em países pobres da região como o Camboja e o Vietnã. Uma alteração na legislação chinesa em 2018 passou a limitar e, em alguns casos, proibir essas importações e outros países da África, subcontinente indiano e sudeste Asiático passaram a absorver novas fatias desse mercado. De acordo com informações da ONU – Organização das Nações Unidas, 64 milhões de pessoas no mundo sobrevivem exclusivamente da reciclagem de materiais, onde se incluem as perigosas atividades de reciclagem do lixo eletrônico

Um país que há várias décadas assumiu uma posição de “destaque” na reciclagem de produtos eletrônicos é Gana, no Oeste da África. Com cerca de 238 mil km² de superfície e com uma população na casa dos 28 milhões de habitantes, Gana ocupa uma posição mediana entre as economias da África. Cerca de metade do PIB – Produto Interno Bruto, é gerado pela agricultura, com destaques para o cacau (onde se usa e se abusa da mão de obra infantil), abacaxi, café e bananas. Também são importantes as atividades extrativistas, especialmente a mineração do ouro, manganês e bauxita, e a extração e beneficiamento de madeiras para exportação. Apesar de não entrar na lista dos países mais pobres do mundo, cerca de 25% da população de Gana vive abaixo do limite da pobreza

A reciclagem de materiais, como acontece nas grandes cidades dos chamados “países em desenvolvimento”, começou como uma alternativa de sobrevivência para as populações pobres de grandes cidades como Accra, a capital do país, e Axante. Em depósitos nas periferias dessas cidades começaram a surgir unidades de reciclagem de peças de carros, caminhões e eletrodomésticos. Com o passar do tempo, essas populações começaram a receber propostas de empresas de reciclagem de países ricos para a venda de equipamentos eletrônicos “seminovos”, que poderiam ser revendidos para a população local e ou reciclados. Com a conivência de autoridades do Governo, essas importações se transformaram em uma grande indústria no país. 

Cerca de 215 mil toneladas de aparelhos eletrônicos seminovos provenientes dos Estados Unidos e dos países da Europa são exportadas para reciclagem em Gana a cada ano. Números oficiais falam de valores na casa das 50 mil toneladas/ano. Existem grandes redes de contrabandistas especializados no transporte e comercialização ilegal desses produtos para países pobres de todo o mundo, o que pode explicar as diferenças nos valores exportados. Esses grupos trabalham com a nobre missão de “reciclar o lixo eletrônico dos países ricos”, despejando esses resíduos em nações miseráveis do mundo. 

Equipamentos eletrônicos utilizam grandes quantidades de metais valiosos como cobre, estanho, níquel, prata e ouro. Utilizando-se tecnologias adequadas, grande parte desses metais pode ser recuperado e revendido. Um exemplo interessante que podemos citar são as Medalhas que serão distribuídas na Olimpíada de Tóquio dentro de poucos meses e que serão produzidas a partir de metais recuperados de sucatas eletrônicas. Serão produzidas mais de 5 mil medalhas, entre Olímpicas e Paralímpicas, onde se estima um consumo de 10 kg de ouro, 1.700 kg de prata e, para as medalhas de bronze, cerca de 1.000 kg de cobre e 50 kg de zinco

Os pobres ganenses, infelizmente, estão muito distantes do patamar tecnológico de reciclagem dos japoneses, dispondo apenas de ferramentas rudimentares como chaves de fenda, alicates, marretas e fogo para separar os metais dos plásticos. Além de todos os riscos de acidentes associados às mais precárias condições de trabalho, esses trabalhadores ficam expostos à fumaça tóxica resultante da queima dos fios, cabos e componentes, que além dos resíduos dos plásticos e borrachas queimados, exalam vapores de metais como mercúrio, chumbo, alumínio, prata e cobre, metais tóxicos para o organismo humano que, quando inalados nestas condições, são responsáveis pelo desenvolvimento de inúmeras doenças. 

Menino em um lixão em Gana

Uma região onde a “reciclagem” de produtos eletrônicos é feita em larga escala é Agbogbloshie, uma região que concentra inúmeras favelas em Accra. De acordo com informações do Governo local, mais de 80 mil pessoas vivem nessas favelas e cerca da metade desse contingente tira o seu sustento diário da reciclagem de resíduos eletrônicos. Estudos feitos em ovos produzidos por galinhas criadas nessas favelas encontraram concentrações de dioxinas até 220 vezes acima dos limites máximos permitidos, o que demonstra a gravidade da situação. Dioxinas são moléculas altamente tóxicas que se formam a partir da combinação de substâncias durante a queima de produtos químicos e plásticos. 

Além da gravíssima poluição do ar (vide foto), que afeta diretamente a saúde dos moradores das favelas e bairros mais próximos, os resíduos que sobram são descartados em lixões improvisados, contaminando o solo e as águas. Entre esses resíduos destacam-se quatro das substâncias mais tóxicas conhecidas pela humanidade: o mercúrio, o chumbo, o cádmio e o arsênico. Como a base econômica do país é a agricultura, os problemas ambientais provocados pelos resíduos eletroeletrônicos se espalham em cadeia por todas as direções – toda a população acaba sofrendo, direta ou indiretamente. Já os lucros obtidos com a revenda dos metais recuperados, esses ficam nas mãos de uma seleta elite ganense. 

Gana é o exemplo perfeito de como uma única atividade econômica mal planejada e executada nas condições mais precárias pode inviabilizar o meio ambiente de todo um país, causando sérios problemas e riscos para a saúde de sua população. 

AS MUDANÇAS CLIMÁTICAS GLOBAIS E SEUS IMPACTOS EM BANGLADESH

Dhaka

Ao longo das últimas postagens apresentamos um quadro bastante preocupante da situação ambiental na pequena e superpovoada República Popular de Bangladesh, um enclave muçulmano na região Nordeste da Índia, que primeiro fez parte do Paquistão e depois, em 1971, conseguiu a sua independência. Bangladesh é um dos países mais pobres e miseráveis do mundo que, para manter a sua população de mais de 170 milhões de habitantes, sedia algumas das “indústrias” mais degradantes da humanidade. 

A situação geopolítica do país resulta num custo de mão de obra inferior ao da China, onde a exploração dos trabalhadores ultrapassa limites da dignidade humana. Graças aos seus baixos custos, Bangladesh se transformou no segundo maior produtor mundial de têxteis e sedia também algumas das maiores empresas de desmonte naval da Ásia. Por fim, o país se transformou no destino de gigantescos volumes de resíduos plásticos gerados por países ricos, que são exportados para reciclagem no país – uma parte considerável desses resíduos, que não pode ser reaproveitada, acaba se transformando em lixo e se juntando a outros milhões de toneladas de resíduos abandonados em lixões a céu aberto por todo o país. 

Mas não são só as ações antrópicas locais as fontes dos inúmeros problemas ambientais vividos por Bangladesh – os efeitos de mudanças no clima global, essas criadas por toda a humanidade, podem ser vistas facilmente nas terras baixas do país, em especial aquelas que estão ligadas à elevação do nível do mar e ao aumento das enchentes. Vamos entender isso. 

Entre todos os grandes oceanos do planeta, o Índico é o que, proporcionalmente, mais sofre com as interferências das mudanças climáticas que estão ocorrendo na Antártida. O derretimento de grandes massas de gelo no Polo Sul tem provocado alterações nas correntes marinhas do Oceano Índico que, combinadas com o aumento da temperatura das águas, tem reflexos diretos na formação e no deslocamento das massas de umidade que atingem a África e a Ásia – algumas áreas estão sofrendo com chuvas abaixo da média e outras com volumes muito acima da média histórica. Essas mudanças também têm levado a formação de grandes tempestades e ciclones devastadores. 

As medições sistemáticas da temperatura das águas do Oceano Índico começaram em 1880. Nos últimos anos essas medições têm encontrado aumentos sucessivos nas temperaturas das águas: em 2010, foi observado um aumento de 0,70° C em relação à média histórica; em 2011, a temperatura média caiu um pouco e mostrou um aumento de 0,58° C; em 2012, o aumento foi de 0,62° C e em 2013, o aumento foi de 0,67° C. Nos anos seguintes, foram registrados recordes sucessivos de aumento da temperatura: 0,74° C em 2014, 0,90° C em 2015 e 0,94° C em 2016.  

Um perceptível aumento no nível das águas do Oceano Índico é uma grande ameaça também. Um dos países em situação mais preocupante nesse momento são as Ilhas Maldivas, uma república formada por 1.196 pequenas ilhas, agrupadas em 26 atóis e onde vivem 330 mil pessoas. Essas ilhas se estendem numa faixa de águas próximas do Sudoeste da Índia e têm como principais fontes de renda a pesca e o turismo. A altitude média dessas ilhas é de apenas 1,5 metro acima do nível do mar – o ponto mais alto de uma das ilhas é de 2,3 metros. A capital do país, Malé, onde vivem 100 mil pessoas, tem uma altitude média de 0,9 metros acima do nível do mar. Dentro de poucos anos, as Ilhas Maldivas poderão, simplesmente, ser encobertas pelas águas do Oceano Índico. 

A situação de Bangladesh não é muito mais confortável – cerca de 90% das terras do país tem uma altitude máxima de 10 metros em relação ao nível do mar. Para piorar, o território bangladês (eu uso esse neologismo em substituição ao oficial e horrível bangladeshiano) recebe todas as águas do trecho final de duas grandes bacias hidrográficas – dos rios Ganges e Brahmaputra. Durante o período das Chuvas da Monção, metade do território de Bangladesh já fica inundado; com o aumento do nível das águas do Golfo de Bengala, há uma tendência de crescimento das terras inundáveis. 

De acordo com estudos realizados pela Diretoria de Gestão de Mudança Climática e Risco de Desastres do Banco Asiático de Desenvolvimento, um eventual “aumento do nível do mar poderia inundar periodicamente 14% da superfície de Dhaka, e as zonas mais próximas a Sundarbans terão pior sorte”. Os estudos também mostram que uma área de 47 mil km² próxima da costa do país ficará sujeita aos impactos de fortes tempestades, ciclones e aumento da salinidade. Nessa região vive cerca de 40 milhões de pessoas ou o equivalente a 25% de toda a população de Bangladesh

Em termos econômicos, essas mudanças no padrão climático serão simplesmente catastróficas. A produção do arroz, o produto mais importante da agricultura local, sofreria perdas ente 17% e 28%. A agricultura responde por 20% do PIB – Produto Interno Bruto, de Bangladesh e ocupa 48% da mão de obra. Outros dois importantes setores da economia do país, a indústria do desmonte naval e a têxtil, também serão fortemente impactadas. Dhaka (vide foto), a maior e mais importante cidade de Bangladesh, que sedia milhares de pequenas oficinas de corte e costura, já sofre imensamente com o drama das enchentes – basta uma chuva de meia hora para inundar toda a cidade. Já os estaleiros espalhados ao longo da costa, esses ficariam simplesmente inviabilizados. 

Ainda existem más notícias – os modelos matemáticos criados pelos especialistas do Banco Asiático de Desenvolvimento indicam que um aumento na temperatura global de 2° C poderá levar Bangladesh a perder 8,8% do PIB até o ano de 2100. Até o ano de 2030, estão sendo estimados gastos anuais da ordem de US$ 89 milhões apenas para adaptar o país a resistir aos primeiros impactos ambientais. A partir do ano de 2050, esses investimentos precisarão ser quadruplicados e serão necessários investimentos anuais de US$ 369 milhões em obras para o combate dos efeitos das mudanças climáticas. Em um país onde a renda per capita é pouco superior a US$ 400.00, isso é muito dinheiro. 

Para todos aqueles que imaginam que esses dados são profecias de capadócio de um ambientalista radical: recentemente, uma ilha do Golfo de Bengala com posse disputada pela Índia e por Bangladesh, a Ilha New Moore ou Ilha de Talpati na língua bengali, simplesmente foi encoberta pelas águas do mar. Essa ilha desabitada tinha aproximadamente 10 km² e apresentava uma altitude média de 2 metros acima do nível do mar. Ao longo de 10 anos foi possível observar uma redução sistemática no tamanho da ilha até o seu completo desaparecimento sob as águas. 

A transferência de populações de uma área sujeita ao avanço do nível do mar é uma possibilidade e poderá ser uma opção para os 330 mil moradores das Ilhas Maldivas, que poderão ser repatriados para alguma área continental. Agora, no caso de Bangladesh, onde o problema afetará dezenas de milhões de pessoas, se esbarra em inúmeros problemas econômicos e políticos. 

O aumento regional das temperaturas do Oceano Índico também tem seus impactos no aumento da temperatura dos ventos que sopram na direção da área continental, especialmente nas geleiras que cobrem os picos da Montanhas Himalaias. As nascentes dos maiores rios da Ásia, como o rio Ganges e o Brahmaputra, dependem do degelo desses glaciares. Estudos indicam que essa grande massa de gelo está diminuindo e que, dentro de poucas décadas, muitos desses rios estarão ameaçados. Ou seja, ao mesmo tempo em que a água do mar poderá avançar para dentro do território de Bangladesh, as águas doces que descem das Himalaias poderão diminuir.

Como é que pode dormir sabendo que as águas do mar poderão bater na porta da sua casa durante a noite ou que os rios poderão secar? 

AS EXPORTAÇÕES DE RESÍDUOS PLÁSTICOS PARA BANGLADESH, OU OS CONHECIDOS PROBLEMAS COM RESÍDUOS SÓLIDOS

Reciclagem de plástico em Dhaka

A produção de resíduos sólidos em larga escala é um dos maiores problemas ambientais de nossas cidades. Com a urbanização e o deslocamento de centenas de milhões de pessoas das áreas rurais para as áreas urbanas, o dia a dia das relações de consumo mudaram completamente. Cada vez mais, o acesso a produtos e alimentos industrializados é uma dura realidade na vida dessas pessoas, tanto por razões puramente logísticas quanto de estratégia comercial e de marketing por parte dos fabricantes. Em cidades grandes como São Paulo e Rio de Janeiro, a produção per capita de resíduos é de aproximadamente 1 kg, principalmente resíduos plásticos de todos os tipos. 

Em grandes cidades de países pobres, os números da geração per capita de resíduos são bem mais modestos devido aos poucos recursos financeiros das populações. Existe, porém, um agravante, que pedindo desculpas pela redundância, está ficando cada vez mais grave – países pobres têm se especializado na importação de lixo originário de nações ricas da Europa, Estados Unidos, Canadá, austrália e Japão, com o objetivo de realizar a reciclagem e posterior venda dos materiais para indústrias. Esse é o caso de Bangladesh. 

Qualquer visitante que chegar hoje em Dhaka, a capital do país, ou em qualquer outra cidade de maior porte de Bangladesh, vai ficar assustado com as montanhas de resíduos que vai encontrar nas ruas e margens de córregos e rios. Como não é incomum em outras nações miseráveis pelo mundo a fora, Bangladesh simplesmente não tem recursos para realizar uma coleta digamos “satisfatória” dos resíduos gerados em suas cidades. Os Governos locais fazem o que podem para recolher a maior quantidade possível desses resíduos, que, no máximo, serão transportados para descarte em um lixão a céu aberto. 

Além dessas dificuldades, precisamos levar em conta também os impactos gerados pelas “indústrias de baixo custo” do país. Em postagens anteriores já falamos das complicadas e impactantes indústrias têxteis e da desmonte naval, que causam inúmeros problemas sociais e ambientais. Um outro exemplo que podemos incluir na lista é a indústria do couro.  

A cidade de Hazaribagh é a que possui a maior quantidade de curtumes de Bangladesh. Os problemas já começam com a chegada das peças dos matadouros – o couro está repleto de restos de carne e gordura, normalmente já em início de putrefação. Esses resíduos precisam ser raspados, num trabalho bastante nauseante, o que gera uma grande quantidade de resíduos, normalmente jogados diretamente na água dos rios. 

Nas etapas seguintes, o couro passa por diversos banhos com produtos químicos para mumificação, amaciamento e coloração. Os produtos usados nessas etapas possuem metais pesados em sua composição como sais de cromo, mercúrio, cádmio e arsênico. Por fim, todos os efluentes contaminados são despejados nos cursos d’água sem nenhum tipo de tratamento. Cálculos oficias do Governo de Bangladesh falam de despejos de 22 mil litros de resíduos tóxicos a cada dia em Hazaribagh. O rio dos Sinos, no Rio Grande do Sul, sofre com problemas semelhantes. Detalhe – o rio que recebe esses despejos, o Buriganga, é o principal manancial de abastecimento dos 15 milhões de habitantes de Dhaka. 

Nada, porém, pode ser comparado aos problemas criados pelos resíduos plásticos no país. A produção mundial de plásticos, como imagino ser do conhecimento de muitos dos leitores, é da ordem de 100 milhões de toneladas a cada ano. O descarte inadequado e a falta de reciclagem desse material são alguns dos problemas mais graves do planeta na atualidade. Calcula-se que um volume entre 8 e 13 milhões de toneladas de plásticos acabem chegando aos oceanos, o que tem causado enormes dificuldades para as criaturas marinhas. 

Já há algum tempo, países altamente industrializados passaram a se valer das “exportações” de resíduos plásticos para a reciclagem em países pobres da África, subcontinente indiano e Sudeste Asiático. De acordo com reportagem do jornal The Guardian, os Estados Unidos exportam em média 68 mil contêineres com resíduos plásticos a cada ano. Até 2018, a China era a maior receptora e recicladora dos resíduos plásticos norte-americanos. Uma mudança na legislação do país, entretanto, passou a proibir esse tipo de comércio. A paupérrima Bangladesh viu nisso uma oportunidade de “negócio” e passou a absorver também uma parte dos resíduos plásticos dos Estados Unidos. 

Recicladora de plásticos em Dhaka

As “recicladoras de resíduos plásticos”, que na realidade são casebres miseráveis onde moram famílias de bangladeses, costumam ficar nas margens de córregos e rios, o que facilita a chegada de barcaças carregadas com os resíduos. Após o exaustivo trabalho de desembarque dos pesados fardos com resíduos plásticos, o que normalmente é feito por homens, entram em cena as mãos delicadas de mulheres e crianças, que vão selecionar e separar os mais diferentes tipos de plásticos, indo desde peças grandes e fáceis de manipular até pequenos fragmentos que só as mãos de crianças muito pequenas conseguem segurar (vide foto no alto). Os resíduos classificados são embalados separados e cuidadosamente. 

Enquanto eu escrevia esse texto, eu tive a curiosidade de buscar na internet empresas que revendem esses materiais. Encontrei, entre outros, um vistoso anúncio do Alibaba, um dos maiores sites de venda do mundo, com o título de “plásticos reciclados de Bangladesh”, onde aparecia o preço por tonelada e os volumes mínimos de venda. Pelo destaque, me pareceu que os resíduos originários desse país gozam de boa reputação no mercado internacional. 

Um dos produtos de destaque da “indústria da reciclagem” de Bangladesh são os flocos de garrafas Pet – o país exportou em 2018 cerca de 20 mil toneladas desse resíduo, produzidos em mais de “três mil fábricas espalhadas pelo país asiático”. Os negócios renderam US$ 15 milhões e, segundo os empresários do setor, a taxa de crescimento nas vendas é de 20% ao ano

Além de problemas elementares como o uso de mão de obra infantil, jornadas excessivas de trabalho em ambientes insalubres, contaminação por produtos químicos presentes nos resíduos (em embalagens de defensivos agrícolas por exemplo), contaminação ambiental do ar, água e solos, entre muitos outros, essa “indústria” é uma verdadeira fonte de problemas para a população de Bangladesh.  

De acordo com informações apuradas pelo The Guardian, entre 20% e 70% dos resíduos  plásticos “exportados” pelos Estados Unidos estão contaminados com restos de comida e outros produtos. Durante a seleção nas “fábricas” de Bangladesh, esses resíduos acabam sendo rejeitados e vão virar lixo no país. Ou seja – além de todo o volume de resíduos sólidos de todos os tipos produzidos pela população do país, imensos volumes de lixo estrangeiro serão somados, poluindo ainda mais as águas e terras de Bangladesh. 

Viver em Bangladesh é, cada vez mais, um martírio. 

A IMPLACÁVEL E DESUMANA INDÚSTRIA DO DESMONTE NAVAL EM BANGLADESH

Desmanche de navios em Bangladesh

Uma indústria que prospera nos recantos mais miseráveis do mundo é a do desmonte ou demolição naval. Quando um grande navio cargueiro ou petroleiro atinge o limite de sua vida útil, empresas desse ramo costumam arrematar essas grandes sucatas flutuantes em leilões. As embarcações são então rebocadas para “estaleiros” na África, no subcontinente indiano ou em países do Sudeste Asiático, onde cada parte dos navios é desmontada ou recortada com maçarico, sendo vendida para reutilização por outras embarcações similares ou simplesmente encaminhadas para usinas siderúrgicas para reprocessamento. É uma atividade muito lucrativa para os donos dos “estaleiros” e péssima para os trabalhadores e para o meio ambiente. 

O litoral de Bangladesh é repleto desse tipo de empresas. A cada ano, mais de 200 grandes navios são desmontados no país. O desmonte de um navio de grande porte leva de três a quatro meses, ocupando a mão de obra de centenas de trabalhadores. O investimento para a aquisição de um grande navio para desmonte é, em média, equivalente a 3,6 milhões de Euros e rende em Bangladesh um lucro superior a 700 mil Euros, o que para um país paupérimo é um ótimo rendimento

Muitos navios famosos encontraram seu fim em desmanches navais como os de Bangladesh. Esse foi o caso do icônico superpetroleiro Exxon Valdez, responsável por um dos maiores desastres ambientais da história. Em 1989, após sair do porto de Valdez, no Alasca, o petroleiro colidiu com rochas submersas, o que abriu um grande rombo no seu casco. Um volume entre 257 mil e 759 mil barris de petróleo vazou do navio, contaminando mais de 1,7 milhão de km² de águas e praias.  

Um outro navio que em breve encontrará seu fim num desses desmanches será o antigo porta-aviões São Paulo da Marinha do Brasil. Comprado da França no ano 2000, esse porta-aviões acabou se transformando no maior “mico” da história da nossa Marinha. Depois de apresentar inúmeros problemas funcionais, sendo que num deles em 2004 três tripulantes morreram após a explosão de um duto de vapor, ele foi retirado de serviço em 2018 e colocado à venda em leilão. Estaleiros da Índia e de Bangladesh estão entre os maiores interessados nessa sucata. 

Bangladesh não possui nenhuma indústria siderúrgica de grande porte, um pré-requisito para o desenvolvimento de qualquer país. Cerca de metade do aço utilizado no país vem da indústria do desmonte naval. As peças são processadas em pequenas oficinas e forjas, sendo transformados em peças metálicas de todos os tipos. Parte expressiva do ferro e do aço usado na construção civil de Bangladesh vem dessas pequenas indústrias, peças que nem sempre possuem um alto padrão de qualidade e que, muitas vezes, estão na origem de desabamentos de construções. 

Os salários pagos para os trabalhadores são miseráveis e, mesmo assim, não faltam candidatos para as vagas. As ferramentas mais usadas são as marretas e os maçaricos, que são usados no corte e separação das peças. Equipamentos de proteção Individual, os famosos EPIs, e os EPCs – Equipamentos de Proteção Coletiva, são tão raros quanto os “unicórnios vermelhos” em Bangladesh. Trabalhando sob condições de segurança das mais precárias, esses trabalhadores estão sujeitos a gravíssimos acidentes. Números oficiais falam de um acidente grave com trabalhadores a cada dia e de um acidente com morte a cada semana. 

As praias ao redor da cidade de Chittagong, no Golfo de Bengala, são um ótimo exemplo do tamanho da indústria do desmonte naval em Bangladesh. Ao longo de 12 km de praias existem perto de 80 estaleiros. O processo de desmonte tem início com o encalhe controlado das embarcações. No pico da maré alta, os navios são acelerados a “todo o vapor” uma derradeira vez na direção da praia ou dos muitos canais da região. Depois de encalhados, os trabalhos nas embarcações começam com a retirada de restos de combustível, óleo e outros líquidos que existam no casco. Essas operações nem sempre são feitas com os equipamentos mais adequados e são comuns grandes vazamentos de óleos e combustíveis nas águas e manguezais

As etapas seguintes envolvem equipamentos e peças com maior valor agregado – ancoras, correntes e cabos de aço, motores e bombas de todos os tipos, camas e armários dos alojamentos, instrumentos de navegação, entre outros. Esses materiais são revendidos como peças de reposição usadas para estaleiros de todo o mundo e são os itens que possuem as maiores margens de lucro. Concluídas essas etapas, tem início ao desmonte ou demolição das embarcações propriamente dito. 

Os maçaricos de oxiacetileno são usados no recorte das partes metálicas das embarcações, em tamanhos adequados para o transporte manual. Não é incomum esses processos resultarem em incêndios ou explosões. Mesmo tendo sido retirados os líquidos inflamáveis já no início do processo de desmonte, muitas câmaras e salas do casco ficam saturadas com gases inflamáveis e basta uma pequena fagulha para ter início um grave desastre, que resulta em trabalhadores com queimaduras graves e muitas mortes. 

Outra causa comum de acidentes são as quedas de trabalhadores de grandes alturas. Essas embarcações, frequentemente, têm alturas superiores a 30 metros, o que é muita coisa para trabalhadores que não estão utilizando equipamentos de segurança. As quedas dos trabalhadores costumam acabar sobre peças metálicas já cortadas que estão sobre a areia, o que além de inúmeras fraturas também pode provocar graves cortes e perfurações. Também não são raros os casos de trabalhadores que são atingidos pela queda de peças que foram cortadas por outros trabalhadores nas partes mais altas dos cascos, o que tipifica trabalhos feitos sem nenhuma coordenação entre as equipes. 

Além do grande número de ferimentos graves e de mortes de trabalhadores, os acidentes nesses trabalhos provocam um grande número de amputações de membros, uma das piores coisas que podem ocorrer com trabalhadores braçais. Com baixíssimo grau de instrução ou simplesmente analfabetos, a imensa maioria desses trabalhadores amputados não conseguirá encontrar outro trabalho e estarão condenados a passar o resto das suas vidas na mendicância. 

A grande disponibilidade de mão de obra desocupada em Bangladesh e em outros países que se valem desse tipo de atividade, faz com que as vagas deixadas em aberto por trabalhadores mortos ou feridos em acidentes sejam rapidamente ocupadas. Sem que haja um mea culpa por parte dos dirigentes dessas empresas ou maiores perguntas por parte dos novos trabalhadores contratados, a vida segue e existe muito trabalho para ser feito nos esqueletos de embarcações amontoados ao longo das praias. As autoridades e Governantes locais, por sua vez, continuarão a fazer vista grossa para quaisquer irregularidades trabalhistas dessas empresas – o país depende desses recursos para sobreviver. 

Também não são nada desprezíveis os riscos que esses trabalhadores sofrem no contato com produtos e materiais perigosos. Em embarcações mais antigas era comum o uso de peças de cimento amianto como revestimento de paredes. Peças de chumbo, um metal pesado muito tóxico, também são encontradas com regularidade. Resíduos de produtos químicos perigosos de todos os tipos e que eram transportados por essas embarcações também são encontrados com muita frequência nos porões dos cascos. Em média, 90% da estrutura e das peças de uma embarcação podem ser recicladas e/ou reprocessadas – o resto vai virar lixo num país já saturado de resíduos sem destinação adequada. 

Enquanto muitos trabalhadores dos países do chamado Primeiro Mundo lutam por jornadas de trabalho cada vez menores e por benefícios sociais cada vez maiores, os trabalhadores braçais de Bangladesh continuam trabalhando de 12 a 14 horas a cada dia, se contentando a ganhar pouco mais de US$ 1.00 por uma jornada sacrificante e sob risco de vida. 

A CAÓTICA INDÚSTRIA TÊXTIL DE BANGLADESH

Indústria textil em Bangladesh

Na última postagem, onde foi usado o irônico título de “AS ‘ABUNDANTES’ ÁGUAS DE BANGLADESH”, falamos dos graves problemas de poluição e de excesso de sedimentos nas águas que chegam desde a Índia. O Ganges, o mais importante e venerado rio do grande país vizinho, sofre com a intensa poluição por esgotos domésticos e industriais, lixo, resíduos de fertilizantes e defensivos agrícolas, entre outras “coisas”. Outro importante rio, o Brahmaputra, corta regiões em que as florestas foram praticamente dizimadas – os solos desnudos sofrem forte erosão na temporada das Chuvas da Monção e as águas pluviais carreiam milhões de toneladas de sedimentos, que irão encobrir as terras agrícolas das terras baixas de Bangladesh. 

A poluição das águas em Bangladesh, entretanto, não se deve apenas a ações humanas feitas fora de suas fronteiras. Os bangladeses (ou bengalis) também se “esforçam” muito para fazer a sua parte, poluindo fortemente a sua cota de águas. A principal fonte de poluição das águas no país é a indústria têxtil. Conforme já comentamos em postagem anterior, o custo da mão de obra em Bangladesh é menor do que na China, o que transformou o país em uma imensa rede de pequenas oficinas de corte e costura de roupas e de pequenas tecelagens. O país é o segundo maior produtor mundial de têxteis do mundo – é comum encontrarmos roupas nas lojas das grifes mais sofisticadas do mundo com a inscrição “Made in Bangladesh

A indústria têxtil é problemática em todo o mundo. Durante muitas décadas, as indústrias desse setor nos Estados Unidos e na Europa se valeram da mão de obra abundante e barata dos imigrantes (a grande maioria ilegais). Na cidade de São Paulo, hoje, existem milhares de pequenas oficinas de confecção de roupas que estão utilizando a mão de obra de imigrantes bolivianos. A regra básica seguida pelas empresas é pagar os salários mais miseráveis possíveis, garantindo assim uma alta margem de lucro para os fabricantes, com uma calça jeans sendo vendida em lojas de alto luxo por mais de R$ 500,00 e um vestido por mais de R$ 1 mil – é claro que algumas marcas mais famosas trabalham com preços maiores ainda. 

Com as sucessivas medidas de controle da imigração que os países ricos começaram a adotar, as indústrias têxteis passaram a buscar outras alternativas. O subcontinente indiano, especialmente a Índia e Bangladesh (o Paquistão se especializou em tecelagem), além da China, Malásia, Tailândia, Indonésia e Vietnã, entre outros, se mostraram altamente promissores, oferecendo farta mão de obra barata e leis trabalhistas altamente permissivas. Esses países foram transformados numa espécie de paraíso na terra para as confecções. 

Entre outros problemas, as oficinas de trabalho nesses países são das mais precárias. Normalmente, cômodos de casas grandes são adaptados para receber as mesas de corte de tecidos e as máquinas de costura. Contando com um pé direito baixo, no padrão residencial, esses locais tornam-se extremamente quentes e abafados quando se concentram muitos trabalhadores. Diga-se de passagem que as regiões tropicais e sub-tropicais onde ficam esses países já são naturalmente quentes.

Mesmo em locais supostamente construídos para abrigar adequadamente essas oficinas, as condições de trabalho são críticas. Em 2013, um prédio de oito andares em Dhaka que abrigava oficinas de corte e costura, o Rana Plaza, desabou matando cerca de 1.100 pessoas. Os laudos oficiais do Governo local afirmaram que as causas do desabamento foram erros na construção e na manutenção do edifício. Como aconteceu em muitos casos semelhantes aqui no Brasil, os responsáveis pela tragédia até hoje não foram punidos.

Além dos exaustivos trabalhos de corte, costura e acabamento de peças em galpões mal iluminados e sufocantes, a produção de peças de vestuário precisa passar por diversas etapas de tingimento e lavagem, onde são utilizadas grandes quantidades de produtos químicos, alguns altamente tóxicos. Esses processos geram grandes quantidades de efluentes contaminados por produtos químicos que, seguindo-se as regras básicas internacionais de gestão ambiental, precisariam passar por um rigoroso sistema de tratamento antes de serem devolvidos ao meio ambiente. Nem lá no subcontinente indiano e no Sudeste Asiático, nem cá, em muitas regiões do Brasil, esse tratamento é feito. 

Um exemplo brasileiro de péssima gestão ambiental é a cidade de Toritama, no Agreste pernambucano, que de alguns anos para cá ganhou o título de “Capital Nordestina” do jeans. A cidade abriga uma infinidade de oficinas de corte e costura, além de diversas tinturarias e lavanderias. Essas empresas despejam grandes quantidades de efluentes, com resíduos de corantes e sem nenhum tipo de tratamento, nas águas do rio Capibaribe, fazendo com que as águas tenham sua cor alternada entre o azul índigo e o vermelho. Longe de ser um caso isolado, em Bangladesh isso é regra. A foto que ilustra essa postagem mostra a saída de efluentes de uma das inúmeras tinturarias de Dhaka – um morador mostra a cor da água em detalhe. 

A composição dos corantes químicos utiliza metais pesados como cromo, cádmio, cobalto e mercúrio, entre muitos outros. Esses metais são altamente tóxicos para o meio ambiente. Ingeridos por seres humanos e animais, ou até mesmo numa contaminação pelo contato contínuo com a pele, esses metais pesados podem desencadear uma série de problemas de saúde no sistema respiratório, infecções, infertilidade e problemas congênitos em recém nascidos. Crustáceos e peixes expostos a esses metais também sofrem com inúmeros problemas, especialmente nas guelras, além de acumular esses metais pesados em suas carnes. Quando essas carnes são consumidas pelas populações, os metais pesados são transferidos para o corpo das pessoas, num processo de contaminação cumulativo. 

Um dos mais graves problemas sociais atuais de Bangladesh, se é que é possível hierarquizar a imensa quantidade de problemas do país, é a contaminação das fontes de água utilizadas pelas populações. A maior parte das vilas e cidades depende da água de poços, água essa que vem se tornando cada vez mais contaminada, especialmente por metais pesados “importados” da Índia. As indústrias de tingimento e lavanderia de Bangladesh dão a sua contribuição ao sistema, lançando quantidades crescentes desses poluentes nas águas. 

A fragilidade econômica de Bangladesh, onde se encontra a trágica combinação de um território pequeno com uma gigantesca população, obriga as autoridades a fazerem “vista grossa” a muitas irregularidades trabalhistas com o objetivo de garantir a geração de postos de trabalho, por mais precários que sejam. O salário mínimo atual de Bangladesh é de US$ 68.00 (alguns anos atrás era de apenas US$ 37.00). Segundo dados do Banco Asiático de Desenvolvimento, 30% dos bangladeses sobrevivem com apenas US$ 1.00 por dia, o que é considerado o limite extremo da pobreza

Além dos inúmeros problemas ambientais e sociais que a salvadora indústria têxtil local gera, existe um outro ainda mais delicado – de acordo com estudos de entidades ligadas aos direitos humanos e ao mercado de trabalho, cerca de 15% das crianças de Dakha, a capital do país, com idades entre 6 e 14 anos, deixam de ir para a escola para ajudar os pais com o trabalho nas confecções. É possível que nas cidades do interior do país, onde a “fiscalização” é bem menor, a situação seja ainda mais crítica. 

A definição mais usada para o Desenvolvimento Sustentável afirma que é necessário alcançar um ponto de equilíbrio entre os pilares Econômico, Social e Ambiental, de forma a garantir que as futuras gerações herdem um planeta melhor. Em Bangladesh, como fica bem fácil de perceber nesse texto resumido, todos os pilares estão comprometidos, o que sozinho já é o suficiente para comprometer de forma irreversível o futuro do país. Completando o quadro já caótico, o futuro das novas gerações está sendo destruído um pouco a cada dia de trabalho nas “infernais” oficinas das indústrias têxteis. 

Futuro. Que futuro?

AS “ABUNDANTES” ÁGUAS DE BANGLADESH

Bophal Índia

A depender da época do ano, a pequena e superpovoada República Popular de Bangladesh se vê transformada numa verdadeira ilha. São tempestades e ciclones que se formam na Baía de Bengala por um lado e inundações criadas pelas fortíssimas Chuvas da Monção por outro. É comum metade do território do país ficar tomado pelas águas (entenda-se aqui inundado) das fortíssimas chuvas da temporada. 

Nos tempos atuais, a imensa maioria dos países pobres do mundo sofre com a escassez de água – esse não é o caso de Bangladesh. Apesar da abundância de chuvas e águas que chegam através dos grandes rios ao seu território, algumas regiões do país sofrem com a seca em parte do ano e também com a poluição das águas e contaminação dos lençóis freáticos. Vamos entender essa situação surreal. 

Um dos principais rios de Bangladesh é o Ganges, o rio sagrado para grande parte da população da Índia. O rio Ganges tem aproximadamente 2.500 km de extensão desde suas nascentes nas Montanhas Himalaias até a sua foz em um grande delta no Golfo de Bengala, entre a Índia e Bangladesh. O Ganges acumula problemas, que vão da intensa poluição por lançamento de esgotos domésticos e industriais, lixo e resíduos de pesticidas agrícolas, aos riscos de desaparecimento das geleiras que formam as suas nascentes. Desde a década de 1940, a geleira Gaumukhonde fica a principal nascente do rio, já recuou cerca de 3 km e perdeu 1 km da sua espessura. Esse fenômeno está ocorrendo em todas as geleiras das Montanhas Himalaias e, muito provavelmente, é o resultado visível do aquecimento global e de todas as mudanças climáticas já em andamento. 

poluição das águas do rio Ganges por causa do lançamento de esgotos de todos os tipos é a principal fonte de problemas. Cerca de 1/3 da gigantesca população de 1,3 bilhão de habitantes da Índia vive dentro da área da bacia hidrográfica do Ganges, em cidades e vilas que contam com precárias infraestruturas de saneamento básico. Como é comum aqui em nosso país, os Governantes indianos concentram a maior parte dos parcos recursos disponíveis na construção de sistemas de produção de água e em redes de distribuição – a coleta e o tratamento de esgotos são deixados de lado. 

Outra fonte de poluição alarmante são os resíduos industriais. Nas últimas décadas, a economia da Índia vem crescendo fortemente, só ficando atrás do fabuloso crescimento da China. E, seguindo a mesma cartilha do desenvolvimento a qualquer custo, a poluição industrial no país é intensa. Um exemplo dessa poluição pode ser encontrado na cidade industrial de Khampur, que tem cerca de 4 milhões de habitantes. A base da economia da cidade são as indústrias de curtimento e tratamento de couro bovino (o que não deixa de ser irônico, pois as vacas são consideradas sagradas na Índia). Existem cerca de 370 estabelecimentos desse tipo em Khampur e, de acordo com os dados oficiais, metade deles joga seus efluentes sem tratamento diretamente nas águas do rio Ganges. 

Um dos principais produtos usados nessa atividade são os sais de cromo, uma substância que mumifica e evita que o couro apodreça com o passar do tempo. O cromo é um metal de transição com importantes aplicações na metalurgia, especialmente na produção do aço inoxidável. Em altas concentrações na água, os resíduos de cromo podem causar uma série de problemas de saúde no sistema respiratório, infecções, infertilidade e problemas congênitos em recém nascidos. O metal também causa problemas nas guelras dos peixes que vivem nas águas, além de afetar a saúde de animais que bebem essa água contaminada. Além dos sais de cromo, os curtumes usam outros produtos que contém mercúrio e arsênico, causadores de outros tantos problemas de saúde. 

Todos esses caudais com águas altamente poluídas atravessam todo o Norte da Índia e entram no território de Bangladesh, onde o rio Ganges forma a maior região deltaica do mundo, se abrindo num arco com 350 km de largura no Golfo de Bengala. As terras dessa região sempre foram consideradas as mais férteis do mundo e acabaram se transformando num verdadeiro celeiro agrícola. A intensa poluição carreada pelas águas do rio Ganges, inevitavelmente, atinge esses solos durante o período das cheias, contaminando as terras e os lençóis subterrâneos de água, uma poluição que atingirá indiretamente os alimentos ali produzidos. Uma forma mais direta de contaminação se dá pelo contato da pele dos trabalhadores com as águas poluídas – a principal cultura de Bangladesh é o arroz, um cereal que é plantado em solos alagados. 

Outra importante bacia hidrográfica que entra no território de Bangladesh é a do rio Brahmaputra. Com nascentes nas Montanhas Himalaias do Tibete, o rio Brahmaputra se estende por 2.900 km, atravessando regiões da China, da Índia e de Bangladesh. Apesar de não sofrer com a mesma intensidade da poluição do rio Ganges, o Brahmaputra sofre com os males do intenso desmatamento na sua bacia hidrográfica. Mais de 70% das florestas que cobriam as áreas do baixo curso de sua bacia hidrográfica já desapareceram e os remanescentes florestais continuam a ser destruídos a uma velocidade impressionante. Somente 4% dessas florestas se encontram dentro de reservas florestais e áreas protegidas. 

Durante o período das cheias, os solos expostos nessas áreas desmatadas sofrem um forte processo de erosão e as águas do rio Brahmaputra ficam saturadas de sedimentos. Esses sedimentos, formados em grande parte por areia inerte, são depositados na forma de uma grossa camada sobre os solos agrícolas de uma extensa área de Bangladesh, o que mais prejudica a fertilidade dos solos do que ajuda. A presença da areia também torna os solos mais permeáveis, fazendo com que a água infiltre rapidamente e deixando a camada superior muito seca, uma condição nada ideal para a produção de arroz. 

A poluição das águas também afeta diretamente o abastecimento das populações, especialmente as mais pobres. Grande parte das famílias do país dependem da água de poços, que apresentam águas cada vez mais contaminadas. Todos os anos, o Governo de Bangladesh, apoiado por toda uma rede de ONGs – Organizações Não Governamentais, é obrigado a financiar uma gigantesca frota de caminhões pipa para garantir o mínimo abastecimento de água potável para essas populações. Passar horas em filas para retirar pequenas quantidades de água potável nesses caminhões faz parte da rotina de milhões de famílias bangladesas (vide foto). 

A violência das águas é outro ponto que precisamos destacar. As enchentes causam inúmeros prejuízos, que vão desde a destruição de plantações até os prejuízos e danos causados pelo alagamento de casas e outras construções. As visíveis mudanças climáticas no Oceano Índico têm provocado alterações nos ciclos das Chuvas da Monção, que em alguns anos ficam abaixo da média e em outros bem acima. Em 2019, as chuvas ficaram muito acima da média histórica – em setembro, as chuvas na Índia ficaram 52% acima da média.  

Como resultado dessas fortes chuvas na Índia, as inundações em Bangladesh no ano passado foram sem precedentes. Milhões de camponeses perderam suas plantações e casas nas enchentes – muitos desses acabaram desistindo da vida no campo e migraram para as grandes cidades na vã esperança de uma vida melhor. 

Continuaremos na próxima postagem. 

BANGLADESH: A CRIAÇÃO DE UM DOS PAÍSES MAIS POBRES DO MUNDO EM 1971

Enchentes em Bangladesh

Nas postagens anteriores falamos bastante dos problemas ambientais da Ilha de Madagascar, um dos países mais pobres do mundo. Mais de 80% das florestas tropicais da Ilha já foram destruídas devido ao avanço da agricultura, da exploração madeireira e produção de carvão vegetal e lenha. Como consequência, há graves riscos de extinção de espécies animais e vegetais, além da destruição dos corpos d’água devido a erosões de solos e assoreamento. 

Continuando nessa mesma linha de temas, vamos falar um pouco da situação crítica em Bangladesh, outro país que está entre os mais pobres do mundo. Curiosamente, conforme já comentamos, as massas de terra que formaram a atual Ilha de Madagascar e o subcontinente indiano, do qual Bangladesh faz parte, estiveram unidas por cerca de 80 milhões de anos após a fragmentação do supercontinente de Gondwana. Talvez por causa disso, algum “DNA” de graves problemas ambientais também tenha sido herdado pelos bengalis de Bangladesh. 

Antes de falarmos dos problemas ambientais vividos por Bangladesh, que são inúmeros e vão nos ocupar por diversas postagens, precisamos voltar um pouco no tempo para entender as razões que levaram a criação deste país em décadas relativamente recentes. 

Até 1947, ano em que foi proclamada a Independência da Índia, todo o subcontinente indiano e parte do Sudeste Asiático formavam a chamada Índia Britânica, um domínio colonial do Reino Unido. Esse Vice-Reino abrangia o território da Índia, do Paquistão, de Bangladesh e da Birmânia, que foi rebatizada como Mianmar. Os britânicos chegaram à região nos primeiros anos do século XVII e em 1858 consolidaram o seu domínio na região. O processo de independência foi longo e doloroso, tendo como um de seus principais personagens Mahatma Gandhi

Sem entrarmos em maiores detalhes, o processo de Independência acirrou as disputas entre os dois maiores grupos religiosos do país – os hindus e os muçulmanos. A solução encontrada pelos líderes políticos dessas diferentes facções foi a separação do país – as regiões de maioria muçulmana no Norte e Nordeste do país, onde fica Bangladesh formaram o Paquistão; o restante do subcontinente, de maioria hindu, formou a Índia. Apesar das populações do Paquistão e de Bangladesh serem muçulmanas, os dois grupos apresentam enormes diferenças culturais, históricas, linguisticas e políticas. Depois de uma guerra civil que durou 9 meses, o Paquistão Oriental declarou sua independência em 1971 e passou a ser chamado de Bangladesh. Desde então, sua grande população vem tentando se consolidar como um país viável. 

Bangladesh ocupa uma área de 144 mil km², o que é pouca coisa maior que a área do nosso Estado do Amapá. A população é de 162 milhões de habitantes, o que resulta em uma das maiores densidades populacionais do planeta. O PIB – Produto Interno Bruto, foi calculado em US$ 67,8 bilhões em 2019 , um valor que equivale a apenas 12 dias do PIB brasileiro. A relação cruel entre o tamanho da população de Bangladesh e o PIB resulta numa renda per capita anual de apenas US$ 420,00 por habitante. Segundo dados do Banco Asiático de Desenvolvimento, 30% da população do país sobrevive com apenas US$ 1.00 por dia, o que é considerado o limite da pobreza extrema

Pobreza extrema e devastação ambiental são inseparáveis e estão na raiz de inúmeros dos problemas de Bangladesh. Infelizmente, há muitos mais coisas entre os céus e as planícies alagáveis do país. Vamos começar falando da geografia do país. 

O território de Bangladesh é cortado por dois grandes rios, o Ganges, que logo após entrar no território bangladês ou bangladeshiano (também é usual o termo bengali, grupo étnico ao qual pertence 98% da população) se abre num gigantesco delta, e o Brahmaputra. Um dos principais canais do delta do Ganges se une ao rio Brahmaputra e forma o rio Padma, que logo abaixo da cidade de Dhaka passa a ser chamado de rio Meghna e tem sua foz no Golfo de Bengala. Praticamente todo o território de Bangladesh é formado por uma grande planície sedimentar que foi moldada por esses rios, onde 90% dos terrenos possuem uma altitude inferior a 10 metros em relação ao nível do mar. Esses terrenos estão sujeitos a grandes alagamentos anuais (vide foto), que se alternam com fortes secas. Essa planície também sofre com a intrusão de água do mar, um fenômeno que vem provocando problemas de salinização de solos. 

Durante o chamado período da Monção, sistema de fortes ventos que sopram do Oceano Índico na direção das Montanhas Himalaias e provocam fortes chuvas, o Golfo de Bengala fica sujeito a violentas tempestades e formação de ciclones, que por vezes avançam contra o território de Bangladesh e causam grandes tragédias. Por outro lado, o grande volume de chuvas nos terrenos mais altos no sopé das Himalaias produz grandes alagamentos nas calhas dos rios Ganges e Brahmaputra, que fatalmente atingirão o território de Bangladesh. 

Esse verdadeiro “cerco de águas” por todos os lados causa enormes prejuízos para os produtores agrícolas, atividade que emprega mais de 70% da população economicamente ativa do país. Esses eventos extremos também resultam na perda de casas e bens dos agricultores nessas enchentes. Os principais produtos agrícolas de Bangladesh são o arroz e a juta, planta que produz uma fibra muito utilizada pela indústria têxtil, que aliás é uma das atividades industriais mais importantes do país. 

As mudanças climáticas no Oceano Índico, tema que já abordamos em postagens anteriores, estão na origem de muitos dos problemas ambientais enfrentados por Bangladesh. As chuvas da Monção, que ao longo de milhares de anos da ocupação humana no subcontinente indiano sempre foram regulares, nas últimas décadas vêm se apresentando de forma muito irregular, ora muito abaixo da média, ora muito violentas. O visível aumento do nível do mar no Golfo de Bengala é outra grande preocupação. Recentemente, uma ilha oceânica que era disputada entre Bangladesh e a Índia, a Ilha New Moore, simplesmente foi encoberta pelas águas do oceano e desapareceu. 

A frustração com as atividades agrícolas tem levado muitas famílias a migrar para as grandes cidades do país, onde a já conhecida pobreza no campo é trocada pela miserabilidade da vida nas pequenas confecções ou pelo arriscado trabalho de desmonte de navios no litoral. A mão de obra em Bangladesh é, inacreditavelmente, mais barata que na China, o que transformou o país no segundo maior produtor de roupas e tecidos do mundo. Em lojas de grifes famosas da Europa e dos Estados Unidos é comum encontrar roupas caríssimas com uma etiqueta onde se lê Made in Bangladesh

As costureiras de Bangladesh trabalham de 12 a 14 horas por dia em oficinas apertadas e abafadas, em troca de um salário mínimo de apenas US$ 67.00 por mês (até 2013, o salário mínimo no país era de US$ 38.00). Estudos de entidades ligadas aos Direitos Humanos mostram que 15% das crianças de Dhaka, a capital do país, com idades entre 6 e 14 anos, deixam de ir para a escola para ajudar os pais com o trabalho nas confecções. Nos estaleiros de desmanche de navios a situação não é muito diferente – são os mesmos salários baixos combinados com um trabalho perigoso: há um acidente de trabalho grave a cada dia e pelo menos um operário morre a cada semana vítima de explosões, quedas, incêndios e quedas de peças, entre outros tipos de “acidentes”. 

Continuaremos a falar disso nas próximas postagens. 

OS RISCOS DE EXTINÇÃO DE LÊMURES, FLORESTAS E RIOS NA ILHA DE MADAGASCAR

Lêmures de Madagascar

Tempos atrás eu recebi através de uma rede social um interessante documentário em vídeo – Como os lobos mudam rios. Em pouco mais de 4 minutos, o documentário mostrou os impactos positivos da reintrodução de lobos no famoso parque norte-americano de Yellowstone (aquele do personagem Zé Colmeia). Acusados de matar ovelhas e outros animais domésticos, os lobos da região foram caçados impiedosamente pelos fazendeiros até seu completo desaparecimento em 1920. 

Em 1995 foi criado levado a cabo um projeto de ambientalistas para a reintrodução de alguns lobos em Yellowstone, que até então, por falta de um grande predador, abrigava uma grande população de veados. Os lobos passaram a caçar os veados e esses, para se proteger, passaram a evitar os vales e as áreas mais baixas do Parque. Sem a presença dos veados, muitas novas árvores passaram a crescer nessas áreas, o que atraiu muitas aves e animais como esquilos, texugos, castores e doninhas. Com a presença dos lobos, os coiotes passaram a evitar o Parque, o que fez aumentar as populações de ratos e coelhos, presas que passaram a atrair águias e raposas. Os restos das carcaças de animais abatidos pelos lobos também passaram a atrair animais carniceiros como abutres e corvos.

Com o crescimento de novas árvores que produziam frutas, os ursos ganharam uma nova fonte de alimentos e tiveram a sua população aumentada. Ursos também caçam outros animais, inclusive veados, ajudando a controlar suas populações. Com o aumento das árvores, as margens dos rios passaram a sofrer menos com as erosões, o que por fim estabilizou o curso e os caudais dos rios. Em resumo – a reintrodução de uma espécie animal num ecossistema alterou, inclusive, a geografia do Parque Yellowstone

Comecei a postagem contando essa história para falar de um assunto importante ainda ligado a Ilha de Madagascar. De acordo com um relatório publicado pela IUCN – União Internacional pela Conservação da Natureza, na sigla em inglês, 95% da população de lêmures, espécie de primata nativo da Ilha de Madagascar, está à beira da extinção. Conforme apresentamos em postagem anterior, Madagascar sofre intensamente com o rápido desflorestamento – algumas estimativas indicam que mais de 80% da cobertura florestal original da Ilha já foi destruída por atividades humanas

O relatório da IUCN mostra que, das 111 espécies e subespécies de lêmures conhecidas, 105 estão ameaçadas. A espécie em situação mais crítica é a do chamado lêmure-esportivo-do-Norte, cuja população está reduzida a apenas 50 indivíduos. A perda de habitats e a caça de animais para venda estão entre as maiores ameaças para as populações remanescentes de lêmures. 

A Ilha de Madagascar se formou a partir da fragmentação do supercontinente de Gondwana, num processo geológico de movimentação das placas continentais, também chamadas de placas tectônicas. Até cerca de 82 milhões de anos atrás, a massa de terra que formou a Ilha de Madagascar ainda estava unida ao bloco correspondente ao subcontinente indiano, que por fim acabou se separando e “rumando“ em direção do Sul da Ásia. 

De acordo com estudos fósseis e testes com DNA, os ancestrais dos lêmures chegaram na Ilha de Madagascar entre 40 e 52 milhões de anos atrás. A hipótese mais aceita é que esses animais chegaram junto com vegetação flutuante, o que lhes permitiu atravessar o Canal de Moçambique. Também não está descartada a existência temporária de uma ponte de terra que permitiu a migração dos animais do continente para a Ilha. Esses animais, que também são ancestrais de macacos africanos, ficaram isolados na Ilha de Madagascar e seguiram por um caminho evolutivo próprio, ocupando os mais diferentes nichos ecológicos. 

As menores espécies de lêmures têm pesos desde os 30 gramas chegando até 240 kg, que era o peso de uma espécie gigante já extinta. Cada uma dessas espécies desenvolveu preferências por alguns tipos de alimentos, especialmente insetos e frutas, o que nesse último caso transformou esses animais em importantes dispersores de sementes e frutos, um serviço ambiental fundamental para a sobrevivência de um sem número de espécies de árvores. Caso os lêmures desapareçam, essas árvores perderão seus parceiros nos trabalhos de dispersão de sementes e, no médio e longo prazo, as próprias árvores entrarão em extinção

Para que todos entendam a importância dessa parceria ambiental entre lêmures e árvores, vou citar um exemplo brasileiro – a gralha-azul, a ave que é reconhecida como a plantadora das araucárias, também conhecidas como pinheiros-do-Paraná. A Araucaria angustifolia é uma espécie de árvore classificada como gimnosperma, ou seja, cujas sementes possuem uma casca dura e não protegida pela polpa dos frutos (a grande maioria das árvores é classificada como angiospermas, ou seja, que produzem frutos com sementes). É uma espécie adaptada para regiões de clima subtropical, com temperaturas mais baixas nos invernos, encontradas comumente nos planaltos da região Sul do Brasil, especialmente nos Estados do Paraná e de Santa Catarina, e também nas regiões serranas de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais.  

A gralha-azul (Cyanocorax caeruleus) é uma ave com aproximadamente 40 cm de comprimento, com coloração das penas do corpo de um azul vivo e com a cabeça, a parte frontal do pescoço e partes do peito na cor preta. Essas aves costumam viver em pequenos bandos, se alimentando de frutas, insetos e, especialmente, dos pinhões das araucárias. Durante os meses de outono, época em que as araucárias produzem os pinhões, as gralhas-azuis coletam os pinhões e os “estocam” em áreas delimitadas do solo ou os encravam em troncos caídos no solo, criando assim uma reserva de alimentos para o período do inverno. Muitos desses pinhões acabam esquecidos pelas aves e germinam, produzindo novos exemplares de araucárias.  

Com a intensa derrubada de matas de Araucárias nas últimas décadas para exploração madeireira e criação de campos agrícolas, as gralhas-azuis estão ameaçadas de extinção. O caso dos lêmures é exatamente o contrário – a ameaça de extinção dos animais é que poderá levar muitas espécies de árvores a extinção, reduzindo ainda mais a já rala cobertura florestal da Ilha de Madagascar. 

Assim como mostrado no exemplo dos lobos do Parque Yellowstone, a presença dos lêmures vivos nas florestas malgaxes também influencia a vida dos rios – com a dispersão das sementes e frutos das árvores, os lêmures garantem que novas árvores nasçam, o que por sua vez vai assegurar a dinâmica das águas dos rios. Com as matas em pé, as margens dos rios ficam protegidas e livres de desmoronamentos e assoreamentos. As árvores também garantem a permeabilidade dos solos e a recarga dos aquíferos e lençóis subterrâneos com as águas das chuvas. 

São os lêmures e os lobos garantindo o futuro dos rios. Acredito que nenhum de vocês imaginava que algo assim fosse possível. 

OS PROBLEMAS NO ABASTECIMENTO DE ÁGUA EM MADAGASCAR

Madagascar e os problemas no abastecimento de água

A escassez e a falta de acesso a fontes de água potável é um dos maiores problemas ambientais do nosso planeta na atualidade. A destruição e queima de florestas para a expansão de campos agrícolas e formação de pastos para a criação de animais, a exploração comercial de madeiras, a mineração e o uso de lenha e carvão como combustíveis estão entre as principais causas da redução dos caudais de importantes cursos d’água, o que afeta centenas de milhões de pessoas em todo o mundo. Mudanças no clima global já sentidas em diversas regiões do mundo e estão agravando ainda mais esses problemas. 

De acordo com informações do WWC – Conselho Mundial da Água, na sigla em inglês, cerca de 1 bilhão de pessoas no mundo não tem acesso a água. As regiões em situação mais crítica estão na Ásia, África e América do Sul. Na Ásia, as estimativas falam de 554 milhões de pessoas, ou 12,5% da população, sem acesso a fontes confiáveis de água potável. Na África subsaariana são mais de 319 milhões de afetados e na América do Sul são 50 milhões de pessoas

Na Ilha de Madagascar, sobre a qual falamos na última postagem, 52% da população, que atualmente está na casa dos 24 milhões de habitantes, não tem acesso a fontes de água potável e/ou são abastecidas precariamente com água contaminada, uma situação que, em termos percentuais, é uma das mais graves do mundo na atualidade. Ironicamente, a Ilha de Madagascar possui um clima predominantemente tropical, com fortes e abundantes chuvas nos meses de verão, que despejam um volume total de 835 bilhões de m³ de águas pluviais sobre o território a cada ano. Fazendo uma conta rápida, são quase 3.500 m³ de água para cada habitante da ilha a cada ano. 

Se o problema não é a disponibilidade de água, o que é o grande problema em grande parte do mundo, o que então está acontecendo com a Ilha de Madagascar? Vamos entender o problema. 

Relembrando rapidamente o Ciclo da Água, é o calor do sol o grande “motor” que espalha a água doce por todo o mundo. A cada ano, um volume de aproximadamente 383 mil km³ de água evapora dos oceanos. Isso equivale a uma lâmina com 1.06 metro de espessura de toda a água dos oceanos do mundo. Esse imenso volume de água na forma de vapor é espalhado por todo o globo terrestre e cerca de 25% dessa água é precipitada na direção dos solos na forma de chuva, gelo, neve, granizo e orvalho, entre outras. A Ilha de Madagascar, conforme mostramos, recebe uma parcela generosa dessas precipitações. 

Essa é, entretanto, apenas uma parte do mecanismo – a água das chuvas precisa infiltrar nos solos para abastecer os lençóis freáticos, aquíferos e outros reservatórios subterrâneos de água, que fornecerão ao longo de todo o ano a água que alimenta os riachos, ribeirões e rios de um território. É aqui onde se encontram os principais problemas de Madagascar – mais de 80% da vegetação nativa da Ilha já foi destruída devido as atividades humanas.  

Sem a cobertura vegetal, os solos perdem a permeabilidade, ou seja, a capacidade de permitir a infiltração da água. A maior parte das águas pluviais então corre com violência sobre os solos desnudos, provocando erosão e assoreamento dos corpos d’água, e correndo diretamente na direção do oceano, sem deixar reservas para os meses de seca. 

Esse cruel mecanismo está afetando a vida de milhões de pessoas por todo o país e, muito pior, os desmatamentos em Madagascar não param. Segundo previsões de autoridades do Governo local, toda a cobertura florestal da Ilha poderá estar destruída até o ano de 2060, caso nada seja feito para frear o ritmo dos desmatamentos

A situação é mais grave na parte Sul da Ilha de Madagascar, onde os solos rochosos são menos permeáveis e permitem a infiltração de quantidades menores de água. Com o assoreamento e a destruição de grande parte dos pequenos cursos d’água da Ilha, a escavação de poços se transformou na principal fonte para o abastecimento de vilas e comunidades por toda a Ilha. Essa alternativa, entretanto, vem apresentando dois grandes problemas: sem a recarga dos lençóis freáticos e aquíferos, os poços precisam ser escavados a profundidades cada vez maiores.

Também existem sérios problemas de contaminação dos poços – a população não dispõe de sistemas minimamente eficientes para a dispersão dos esgotos sanitários (não há como falar de tratamento de efluentes em Madagascar) e as águas servidas (ou seja, os esgotos) poluem a água dos poços, a chamada contaminação cruzada. 

Os problemas no abastecimento de água e na dispersão dos esgotos domésticos cobram seu preço na saúde das populações. De acordo com dados de 2011 da ONU – Organização das Nações Unidas, a taxa de mortalidade infantil em Madagascar é alta – são cerca de 60 mortes de crianças para cada 1.000 nascimentos. Também mostram que 56% das crianças estão desnutridas, 65% apresentam problemas no crescimento e 12% estão gravemente desnutridas. As principais causas de internação e de mortes de crianças com menos de 5 anos são as doenças respiratórias e gastro-enterológicas, além da malária. Metade da população de Madagascar tem menos de 15 anos de idade e a expectativa de vida de um malgaxe não supera os 50 anos de idade

A situação já complicada de Madagascar tende a ficar ainda pior – mudanças climáticas no Oceano Índico estão provocando importantes mudanças nos padrões das chuvas no Leste e Sul da África e também no Sul da Ásia. A Ilha de Madagascar, que está localizada no Oceano Índico ao largo da costa do continente africano, está no centro dessas mudanças e poderá sofrer tanto com fortes secas quanto com tempestades cada vez mais violentas. 

De todos os grandes oceanos do planeta, o Índico é o que, proporcionalmente, mais sofre com as interferências das mudanças climáticas na Antártida. O derretimento de grandes massas de gelo no Polo Sul tem provocado alterações nas correntes marinhas do Oceano Índico que, combinadas com o aumento da temperatura das águas, tem reflexos diretos na formação e no deslocamento das massas de umidade que atingem a África e a Ásia – algumas áreas estão sofrendo com chuvas abaixo da média e outras com volumes muito acima da média histórica

As medições sistemáticas da temperatura das águas do Oceano Índico começaram em 1880. Nos últimos anos, estas medições têm encontrado aumentos sucessivos nas temperaturas das águas: em 2010, foi observado um aumento de 0,70° C em relação à média histórica; em 2011, a temperatura média caiu um pouco e mostrou um aumento de 0,58° C; em 2012, o aumento foi de 0,62° C e em 2013, o aumento  foi de 0,67° C. Nos anos seguintes, foram registrados recordes sucessivos de aumento da temperatura: 0,74° C em 2014, 0,90° C em 2015 e 0,94° C em 2016.  

Ou seja – um grande problema global, que são as mudanças climáticas, está sendo amplificado localmente em Madagascar devido a todo um conjunto de atividades humanas desastrosas. O que, por si só, já seria ruim, está ficando ainda pior. 

Pobre Madagascar!