Uma indústria que prospera nos recantos mais miseráveis do mundo é a do desmonte ou demolição naval. Quando um grande navio cargueiro ou petroleiro atinge o limite de sua vida útil, empresas desse ramo costumam arrematar essas grandes sucatas flutuantes em leilões. As embarcações são então rebocadas para “estaleiros” na África, no subcontinente indiano ou em países do Sudeste Asiático, onde cada parte dos navios é desmontada ou recortada com maçarico, sendo vendida para reutilização por outras embarcações similares ou simplesmente encaminhadas para usinas siderúrgicas para reprocessamento. É uma atividade muito lucrativa para os donos dos “estaleiros” e péssima para os trabalhadores e para o meio ambiente.
O litoral de Bangladesh é repleto desse tipo de empresas. A cada ano, mais de 200 grandes navios são desmontados no país. O desmonte de um navio de grande porte leva de três a quatro meses, ocupando a mão de obra de centenas de trabalhadores. O investimento para a aquisição de um grande navio para desmonte é, em média, equivalente a 3,6 milhões de Euros e rende em Bangladesh um lucro superior a 700 mil Euros, o que para um país paupérimo é um ótimo rendimento.
Muitos navios famosos encontraram seu fim em desmanches navais como os de Bangladesh. Esse foi o caso do icônico superpetroleiro Exxon Valdez, responsável por um dos maiores desastres ambientais da história. Em 1989, após sair do porto de Valdez, no Alasca, o petroleiro colidiu com rochas submersas, o que abriu um grande rombo no seu casco. Um volume entre 257 mil e 759 mil barris de petróleo vazou do navio, contaminando mais de 1,7 milhão de km² de águas e praias.
Um outro navio que em breve encontrará seu fim num desses desmanches será o antigo porta-aviões São Paulo da Marinha do Brasil. Comprado da França no ano 2000, esse porta-aviões acabou se transformando no maior “mico” da história da nossa Marinha. Depois de apresentar inúmeros problemas funcionais, sendo que num deles em 2004 três tripulantes morreram após a explosão de um duto de vapor, ele foi retirado de serviço em 2018 e colocado à venda em leilão. Estaleiros da Índia e de Bangladesh estão entre os maiores interessados nessa sucata.
Bangladesh não possui nenhuma indústria siderúrgica de grande porte, um pré-requisito para o desenvolvimento de qualquer país. Cerca de metade do aço utilizado no país vem da indústria do desmonte naval. As peças são processadas em pequenas oficinas e forjas, sendo transformados em peças metálicas de todos os tipos. Parte expressiva do ferro e do aço usado na construção civil de Bangladesh vem dessas pequenas indústrias, peças que nem sempre possuem um alto padrão de qualidade e que, muitas vezes, estão na origem de desabamentos de construções.
Os salários pagos para os trabalhadores são miseráveis e, mesmo assim, não faltam candidatos para as vagas. As ferramentas mais usadas são as marretas e os maçaricos, que são usados no corte e separação das peças. Equipamentos de proteção Individual, os famosos EPIs, e os EPCs – Equipamentos de Proteção Coletiva, são tão raros quanto os “unicórnios vermelhos” em Bangladesh. Trabalhando sob condições de segurança das mais precárias, esses trabalhadores estão sujeitos a gravíssimos acidentes. Números oficiais falam de um acidente grave com trabalhadores a cada dia e de um acidente com morte a cada semana.
As praias ao redor da cidade de Chittagong, no Golfo de Bengala, são um ótimo exemplo do tamanho da indústria do desmonte naval em Bangladesh. Ao longo de 12 km de praias existem perto de 80 estaleiros. O processo de desmonte tem início com o encalhe controlado das embarcações. No pico da maré alta, os navios são acelerados a “todo o vapor” uma derradeira vez na direção da praia ou dos muitos canais da região. Depois de encalhados, os trabalhos nas embarcações começam com a retirada de restos de combustível, óleo e outros líquidos que existam no casco. Essas operações nem sempre são feitas com os equipamentos mais adequados e são comuns grandes vazamentos de óleos e combustíveis nas águas e manguezais.
As etapas seguintes envolvem equipamentos e peças com maior valor agregado – ancoras, correntes e cabos de aço, motores e bombas de todos os tipos, camas e armários dos alojamentos, instrumentos de navegação, entre outros. Esses materiais são revendidos como peças de reposição usadas para estaleiros de todo o mundo e são os itens que possuem as maiores margens de lucro. Concluídas essas etapas, tem início ao desmonte ou demolição das embarcações propriamente dito.
Os maçaricos de oxiacetileno são usados no recorte das partes metálicas das embarcações, em tamanhos adequados para o transporte manual. Não é incomum esses processos resultarem em incêndios ou explosões. Mesmo tendo sido retirados os líquidos inflamáveis já no início do processo de desmonte, muitas câmaras e salas do casco ficam saturadas com gases inflamáveis e basta uma pequena fagulha para ter início um grave desastre, que resulta em trabalhadores com queimaduras graves e muitas mortes.
Outra causa comum de acidentes são as quedas de trabalhadores de grandes alturas. Essas embarcações, frequentemente, têm alturas superiores a 30 metros, o que é muita coisa para trabalhadores que não estão utilizando equipamentos de segurança. As quedas dos trabalhadores costumam acabar sobre peças metálicas já cortadas que estão sobre a areia, o que além de inúmeras fraturas também pode provocar graves cortes e perfurações. Também não são raros os casos de trabalhadores que são atingidos pela queda de peças que foram cortadas por outros trabalhadores nas partes mais altas dos cascos, o que tipifica trabalhos feitos sem nenhuma coordenação entre as equipes.
Além do grande número de ferimentos graves e de mortes de trabalhadores, os acidentes nesses trabalhos provocam um grande número de amputações de membros, uma das piores coisas que podem ocorrer com trabalhadores braçais. Com baixíssimo grau de instrução ou simplesmente analfabetos, a imensa maioria desses trabalhadores amputados não conseguirá encontrar outro trabalho e estarão condenados a passar o resto das suas vidas na mendicância.
A grande disponibilidade de mão de obra desocupada em Bangladesh e em outros países que se valem desse tipo de atividade, faz com que as vagas deixadas em aberto por trabalhadores mortos ou feridos em acidentes sejam rapidamente ocupadas. Sem que haja um mea culpa por parte dos dirigentes dessas empresas ou maiores perguntas por parte dos novos trabalhadores contratados, a vida segue e existe muito trabalho para ser feito nos esqueletos de embarcações amontoados ao longo das praias. As autoridades e Governantes locais, por sua vez, continuarão a fazer vista grossa para quaisquer irregularidades trabalhistas dessas empresas – o país depende desses recursos para sobreviver.
Também não são nada desprezíveis os riscos que esses trabalhadores sofrem no contato com produtos e materiais perigosos. Em embarcações mais antigas era comum o uso de peças de cimento amianto como revestimento de paredes. Peças de chumbo, um metal pesado muito tóxico, também são encontradas com regularidade. Resíduos de produtos químicos perigosos de todos os tipos e que eram transportados por essas embarcações também são encontrados com muita frequência nos porões dos cascos. Em média, 90% da estrutura e das peças de uma embarcação podem ser recicladas e/ou reprocessadas – o resto vai virar lixo num país já saturado de resíduos sem destinação adequada.
Enquanto muitos trabalhadores dos países do chamado Primeiro Mundo lutam por jornadas de trabalho cada vez menores e por benefícios sociais cada vez maiores, os trabalhadores braçais de Bangladesh continuam trabalhando de 12 a 14 horas a cada dia, se contentando a ganhar pouco mais de US$ 1.00 por uma jornada sacrificante e sob risco de vida.
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