
Ao longo de mais de 50 postagens, mostramos um resumo do intenso processo de devastação da Mata Atlântica de Norte a Sul do Brasil. Esses processos começaram com a produção de açúcar no litoral do Nordeste, passando depois para o ciclo de exploração do ouro e para a produção de metais nas Geraes.
Depois assistimos ao avanço dos cafezais, que partindo da Província do Rio de Janeiro se espalharam por Minas Gerais, Espírito Santo, São Paulo e Norte do Paraná. Na Região Sul foi a intensa exploração do pinho, a madeira das araucárias, que deu início ao fim da Mata Atlântica.
Em meados do século XX, um último grande trecho contínuo de Mata Atlântica remanescente se estendia entre o Sul da Bahia e o Norte do Espírito Santo. Esse verdadeiro “milagre” não ocorreu por mero acaso. Conforme já comentamos, essa região era o território dos temidos índios botocudos, que botavam medo até em outras nações indígenas.
De acordo com a descrição deixada pelo historiador português Pero de Magalhães Gândavo (1540-1579), “chamam-se Aymorés, a língua deles é diferente dos outros índios, ninguém os entende, são eles tão altos e tão largos de corpo que quase parecem gigantes; são muito altos, não parecem com outros índios da Terra”. Estudos feitos em anos recentes em ossos desses índios encontrados em escavações arqueológicas identificaram DNA polinésio nessas populações.
A descoberta das minas de ouro na Região das Geraes também deu a sua contribuição para a preservação das matas capixabas. A fim de evitar o acesso de aventureiros e, principalmente, de estrangeiros às regiões de mineração, a Coroa de Portugal decretou grande parte do litoral do Espírito Santo como “Áreas Phroibidas”. Um Decreto Real limitava o povoamento, as construções e as expedições a uma faixa de 3 léguas (15 km) do litoral capixaba, especialmente nas proximidades da região da foz do rio Doce.
Graças a todos esses percalços, uma faixa substancial da Mata Atlântico acabou sendo, involuntariamente, preservada. Em meados do século XIX, as matas do Sul da Bahia passaram a ser usadas para o plantio do cacau, uma árvore nativa da Amazônia e das florestas da América Central que necessita da sombra de outras árvores para se desenvolver. O cacau gerou muita riqueza aos coronéis baianos até a década de 1940, quando a concorrência da produção em países da África começou a superar a produção local.
O início do fim das matas no Norte do Espírito foi motivado por um verdadeiro cataclisma que passou a varrer as terras do Planalto Central – a construção da cidade de Brasília a partir de 1956. A transferência da Capital Federal do Rio de Janeiro para o centro do país estava prevista desde o final do século XIX, através de um dispositivo na Constituição Republicana de 1891. Por razões estratégicas e geopolíticas, era preciso estimular a ocupação e colonização dos imensos vazios territoriais do país. A “Marcha para o Oeste”, que citamos em postagens anteriores, é uma das faces mais visíveis dessa política de interiorização.
As boas intensões do Governo Juscelino Kubitschek, porém, esbarravam em enormes problemas de falta de infraestrutura de todos os tipos nos sertões de Goiás, que iam da falta de estradas e de energia elétrica à carência total de mão de obra e de fornecimento das mais elementares matérias primas e insumos para a construção civil. Praticamente tudo precisaria vir de fora. É aqui que entraram em cena as matas do Norte do Espírito Santo – elas seriam transformadas em uma importante fonte de madeira para uso na construção civil de Brasília.
De acordo com dados oficiais, cerca de 25% da mão de obra capixaba estava empregada em trabalhos ligados à exploração madeireira no ano de 1959, véspera da inauguração de Brasília. Nesse mesmo ano, existiam cerca de 1.500 serrarias em operação apenas no Norte do Espírito Santo – somente no trecho entre Vitória e Linhares existiam 120 dessas empresas. A produção incluía vigas, caibros, ripas, placas e pranchas de madeira para a construção civil, além de dormentes para as linhas férreas.
Uma das grandes facilitadoras dessa exploração madeireira foi a Ferrovia Vitória-Minas, que liga a capital capixaba a Belo Horizonte. As grandes cargas de madeira que chegavam em Belo Horizonte seguiam em comboios de caminhões até Brasília, enfrentando mais de 1.100 km de caminhos ainda precários da Rodovia BR-040, que só seria inaugurada oficialmente em 1959. O lema do Governo Kubitschek era “50 anos em 5” – logo, era preciso destruir em 5 anos o que foi poupado nas florestas do Espírito Santo em mais de 450 anos de colonização.
Uma testemunha ocular desse período de intensa derrubada de florestas no Espírito Santo foi o pesquisador capixaba Augusto Ruschi (1915-1986), agrônomo e ecologista pioneiro no Brasil. Apaixonada pela natureza, Ruschi realizou grandes estudos nas matas capixabas, descobrindo inúmeras espécies de plantas e animais – principalmente os beija ‘flores da Mata Atlântica. Deixou como legado mais de 20 livros e 400 artigos científicos. Foi uma das vozes que mais se sobressaiu em defesa das matas capixabas”. Já no final de sua vida declarou:
“Nosso estado, infelizmente, foi a ‘universidade’ que formou os maiores especialistas em destruição de florestas, seguramente, de todo o universo.”
Àquela altura, o Espírito Santo já havia perdido 23 mil km² dos 38 mil km² de sua antiga cobertura florestal de Mata Atlântica. Esse processo de intensa devastação de áreas naturais levou inúmeras espécies de aves, árvores e orquídeas à extinção. Infelizmente, seus apelos não foram ouvidos e a devastação continuou – atualmente, resta menos de 10% da cobertura florestal original ou pouco mais de 4.500 km².
O grande vazio deixado pelas antigas matas foi rapidamente ocupado pelos cafezais da espécie conilon (Coffea canephora), um grão muito usado na preparação de blends (misturas de cafés) e na produção do café solúvel. O Espírito Santo é o maior produtor brasileiro desse tipo de café, respondendo por mais de 75% da produção nacional. O produto responde atualmente por cerca de 35% do PIB – Produto Interno Bruto, agrícola do Estado, sendo a principal fonte de renda de 80% das propriedades rurais capixabas em “terras quentes”.
Uma outra espécie vegetal que acabou por invadir os antigos domínios da Mata Atlântica foi o eucalipto (vide foto), uma árvore de origem australiana muito usada na produção de celulose e papel. A cultura do eucalipto chegou ao Estado em meados da década de 1960. O governo militar, que dirigia o país há época, criou diversas políticas para o desenvolvimento florestal, fornecendo vultosos subsídios para que grandes grupos empresariais investissem na produção de papel e celulose. E como resultado, imensas áreas do Espírito Santo acabaram transformadas num “mar sem fim” de eucaliptos.
Entre outros inúmeros problemas ambientais, as grandes plantações de eucaliptos ocuparam terras indígenas ancestrais. Cito algumas: Amarelo, Olho d’Água, Guaxindiba, Porto da Lancha, Cantagalo, Araribá, Braço Morto, Areal, Sauê, Gimuhuna, Piranema, Potiri, Sahy Pequeno, Batinga, Santa Joana, Morcego, Garoupas, Rio da Minhoca, Morobá, Rio da Prata, Prata, Ambu, Lagoa Suruaca, Cavalinho, Sauaçu, Concheira, Rio Quartel, São Bento, Laginha, Baiacu, Peixe Verde, Jurumim e Destacamento. As comunidades que ali viviam foram simplesmente dispersadas aos “quatro cantos do mundo”.
Pequenas comunidades de “não indígenas” que resistiram inicialmente ao avanço das florestas artificiais, também passaram a sofrer com os impactos ambientais dessa cultura, especialmente com a redução da oferta de água nos rios e córregos da região – florestas de eucalipto em crescimento consomem grandes volumes de água. Inúmeros riachos secaram e a produção agrícola de subsistência simplesmente ficou inviável.
Em algumas comunidades, os moradores chegaram a ficar sem acesso a lenha para cozinhar – moradores da região relatam que foram presos e acusados de roubo por seguranças das plantações ao coletarem restos de madeira (galhos caídos) dentro de “propriedades privadas”.
A antiga e rica floresta que era de todos – a Mata Atlântica, foi substituída pela floresta privada de poucos. Olha no que é que deu…
Olá, Ferdinando! Como professor de História e grande entusiasta da Educação Ambiental, gostaria de agradecê-lo imensamente pelo excelente material publicado aqui.
Textos absolutamente esclarecedores e relevantes. Parabéns!
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Caro Prof. Vinícius: como jornalista e educador ambiental, meu grande prazer é escrever textos úteis e que sejam apreciados pelos leitores. Esteja à vontade para usar todo o material do blog. Abraços!
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[…] a construção da nova Capital do Brasil. As densas florestas remanescentes da Mata Atlântica do Norte do Estado começaram a ser derrubadas e transformadas em tábuas, vigas, ripas e placas de madeira, deixando […]
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