
O rompimento da Barragem de Fundão e o despejo de mais de 60 milhões de metros cúbicos de lama e rejeitos minerais na calha do rio Doce provocou a maior tragédia ambiental da história do Brasil, tema que tratamos em postagens anteriores. Dezenas de cidades e vilas foram privadas do acesso às águas do rio, um drama que afetou mais de 1 milhão de pessoas. Passados cinco anos, a maior parte dos problemas ainda não foi solucionada e a vida de muita gente continua sem um rumo definido.
Na postagem de hoje vou mudar um pouco o enfoque da abordagem e tentarei mostrar o problema a partir do Oceano Atlântico. Normalmente, não me atrevo a entrar em assuntos ligados às águas salgadas – se as águas doces já formam todo um mundo a ser explorado, os oceanos são uma verdadeira galáxia. Para não sair falando besteira, prefiro me ater à minha “ignorância”.
Na imensa maioria dos casos, as águas doces dos rios sempre correm em direção ao mar. Como exceção a essa regra temos as bacias hidrográficas endorreicas, que são sistemas hídricos fechados, sem saída para o mar e onde as águas se “perdem” por evaporação. O grande exemplo que podemos citar é o Mar Morto, uma grande depressão no Oriente Médio que recebe as águas do famoso rio Jordão.
Como todo bom rio que corre para o mar, o rio Doce nasce nas encostas das Serras da Mantiqueira e do Espinhaço em Minas Geras e depois segue por mais de 850 km por terras mineiras e capixabas até se encontrar com as águas do Oceano Atlântico em Linhares, no litoral do Espírito Santo. Desde tempos imemoriais, essas águas doces carreiam grandes volumes de matéria orgânica e nutrientes que alimentam uma rica biodiversidade em uma área de aproximadamente 120 km² ao redor da foz do rio Doce.
As criaturas marinhas que melhor se beneficiam desse fluxo contínuo de alimentos na região são as chamadas comunidades bêntonicas ou dos bentos marinhos. São pequenas algas, bactérias, vermes e crustáceos, muitos deles microscópicos, que vivem sobre o leito marinho ou enterradas nos sedimentos até um metro de profundidade. Para que todos tenham ideia do tamanho dessas criaturas – alguns desses seres vivem na incrível densidade de até 5 indivíduos para cada grão de areia. Apesar de muito pequenas, essas criaturas formam a base da cadeia alimentar dessa região.
Após o rompimento da Barragem de Fundão e com o carreamento de milhões de toneladas de sedimentos na direção da foz do rio Doce, essas comunidades bêntonicas foram, literalmente, soterradas e inúmeras espécies de criaturas marinhas que habitavam esse ecossistema perderam a sua fonte básica de alimentos. As criaturas que conseguiram sobreviver a essa avalanche de sedimentos, como crustáceos e invertebrados maiores, passaram a sofrer com a contaminação por metais pesados.
Um simpático mamífero marinho que tem uma importante comunidade vivendo na região da foz do rio Doce e que está enfrentando sérias dificuldades é a toninha (Pontoporia blainvillei). As toninhas são uma espécie de cetáceo com parentesco próximo com os golfinhos e os botos. A espécie também é conhecida como franciscana, boto-amarelo, boto-cachimbo, boto-garrafa, manico e golfinho-do-rio-da-Prata. O animal pode atingir um comprimento máximo de 1,8 metro e tem um peso entre 36 e 50 kg.
As toninhas tem um “bico” longo e fino (vide foto), nadadeiras peitorais curtas e largas, além de uma nadadeira dorsal pequena e triangular. Diferente dos golfinhos e dos botos, que adoram dar saltos e fazer piruetas acrobáticas, as toninhas são tímidas e discretas, subindo à superfície apenas para respirar. Esses animais tem seu habitat numa faixa costeira que vai do Espírito Santo até o rio da Prata, na divisa entre o Uruguai e a Argentina.
Diferente dos seus primos, cetáceos que habitam as águas do mar aberto, as toninhas preferem as águas costeiras com profundidades entre 30 e 50 metros, uma característica que transformou a espécie numa vítima fácil das redes de pesca. De acordo com informações do Ministério do Meio Ambiente, perto de 1.500 toninhas morrem todos os anos presas em redes de pesca no Brasil. Como a espécie tem uma taxa de reprodução muito baixa – as fêmeas têm apenas um filhote a cada um ou dois anos, ela está classificada como “criticamente em perigo”. É a espécie de cetáceo mais ameaçada do Brasil e, possivelmente, da América do Sul.
As toninhas costumam viver em grupos familiares entre 2 e 5 indivíduos e, em muitos casos, vivem solitárias. Sua alimentação é constituída por peixes, crustáceos e, principalmente, camarões, o seu “prato predileto”. É justamente aqui que começam os problemas das ameaçadas populações de toninhas da foz do rio Doce.
Além da brutal redução dos estoques de alimentos criada pela acumulação de sedimentos carreados pelas águas do rio, as espécies sobreviventes apresentam altos níveis de contaminação por metais pesados. Ao se alimentarem dessas espécies menores encontradas nessa região, as toninhas passam a sofrer com a bioacumulação de metais pesados.
Estudos realizados em corpos de toninhas encontradas mortas em redes de pesca ou em praias têm constatado a presença de elevados níveis de substâncias organocloradas, que têm origem em resíduos de pesticidas e fertilizantes carreados pelas chuvas para as calhas dos rios, além de grandes níveis de metais pesados como mercúrio, zinco, cádmio e cobre.
Isso demonstra como a espécie já é naturalmente sensível a esses poluentes. No caso do rio Doce, onde estudos já demonstraram que os níveis atuais de metais pesados nas águas estão, em alguns casos, até 200 vezes superiores aos níveis observados antes do rompimento da Barragem de Fundão, a situação das toninhas é preocupante.
Além da redução dos estoques e da contaminação das suas fontes de alimentos, as toninhas também estão sofrendo com a poluição das águas por resíduos sólidos, principalmente plásticos. As análises do conteúdo estomacal de toninhas mortas têarfm encontrado volumes cada vez maiores de detritos de todos os tipos.
Com a turbidez das águas devido à presença de grandes quantidades de sedimentos em suspensão, as toninhas podem estar confundindo facilmente pedaços de plásticos com peixes e crustáceos, um problema que tem afetado outras espécies da região da foz do rio Doce, em especial as ameaçadas tartarugas-de-couro.
Como é bem fácil de observar, os problemas criados pelo grande vazamento de rejeitos de mineração e de lama extrapolam os limites geográficos da bacia hidrográfica do rio Doce e invadem os domínios do Oceano Atlântico. O risco de desaparecimento da população de toninhas da região da foz do rio poderá aumentar ainda mais a quantidade de problemas já enfrentados pelos pescadores da região, que já ressentem de uma grande redução dos estoques pesqueiros.
Sem a presença de um predador de topo da cadeia alimentar, poderá ocorrer a proliferação de populações de outras espécies animais, o que poderá prejudicar ainda mais as comunidades de espécies de grande valor comercial como peixes e camarões. Um exemplo clássico foi o desaparecimento das lontras marinhas da Califórnia e a a redução drástica das populações des peixes numa extensa região décadas atrás.
Os pescadores matavam as lontras a tiros, imaginando assim diminuir a concorrência e aumentando a quantidade de peixes capturados. Porém, aconteceu justamente o contrário – sem as lontras, as populações de ouriços-do-mar cresceram exponencialmente e devoraram as florestas de algas gigantes (kelps) onde os peixes se abrigavam e se reproduziam. Sem as toninhas, algo parecido poderá ocorrer na região da foz do rio Doce.
E os prejuízos ambientais da região, que já são grandes, poderão ficar gigantescos. Salvem as toninhas!
[…] crustáceos e, principalmente, camarões, o seu “prato predileto”. Há cerca de dois anos, publicamos uma postagem falando das ameaças vividas por uma população de toninhas que vive nas proximidades da foz do […]
CurtirCurtir