OS RISCOS DOS METAIS PESADOS PARA AS ÁGUAS E COMUNIDADES DO RIO DOCE

Uma das grandes preocupações ambientais de nossos tempos é o acesso cada vez mais complicado às fontes de água. Apesar de vivermos em um planeta onde mais de 70% de sua superfície é coberta por grandes extensões de águas dos oceanos, menos de 2,5% dessas águas – conhecidas como águas doces ou frescas, são adequadas ao consumo de animais, plantas e de nós seres humanos. 

Existe ainda um grande complicador – a maior parte dessa água doce é praticamente inacessível à maioria dos seres vivos. São águas que estão congeladas nas geleiras dos Polos Sul e Norte e também no alto de grandes cadeias montanhosas como os Andes e as Himalaias. Também são as águas subterrâneas de aquíferos e outros reservatórios à centenas, ou até milhares de metros de profundidade. As águas frescas e facilmente acessíveis para o consumo em rios, lagos e outros cursos d’água representam menos de 0,5% de toda a água disponível no planeta. 

Além da baixa disponibilidade e do difícil acesso, as fontes de água vêm sofrendo já há muito tempo com os impactos criados pela poluição, onde precisamos destacar os problemas criados pela mineração e, sobretudo, pelos rejeitos minerais. Conforme já comentamos em postagens anteriores, os metais extraídos dos solos quase nunca são encontrados em estado puro – eles sempre vêm acompanhados de uma série de impurezas ou elementos sem valor comercial como rochas não metálicas, que acabam sendo segregados nos chamados aterros de rejeitos minerais

Os rejeitos minerais sempre possuem em seu meio os chamados metais pesados, elementos químicos que, em altas concentrações, são altamente nocivos para a vida animal. Dentro da química, os metais pesados formam um grupo de elementos entre o cobre e o chumbo na Tabela Periódica. São elementos que têm um peso atômico entre 63,546 e 207,2, e uma densidade superior a 4 gramas por centímetro cúbico. Falando de um jeito mais simples: tratamos aqui de metais e semimetais como o antimônio, arsênico, cádmio, cromo, cobre, chumbo, mercúrio, níquel, selênio, telúrio e estanho

Um dos metais pesados mais conhecidos pelos grandes problemas ambientais que provoca nas águas é o mercúrio, um elemento muito usado por garimpeiros em todo o mundo. O mercúrio é misturado aos sedimentos com traços de ouro encontrados nos garimpos, onde passa por um processo de aquecimento a partir da chama de um maçarico.

Com a alta temperatura, o mercúrio se liga ao ouro formando uma amálgama. Essa amálgama é então separada dos demais sedimentos e submetida mais uma vez ao calor do maçarico, o que faz o mercúrio evaporar e deixa apenas o ouro. Quando o vapor de mercúrio esfria, uma parte do metal acaba caindo sobre os solos e as águas, onde vai criar uma série de problemas para os seres vivos. 

O ciclo de contaminação do mercúrio se dá em cadeia e começa com a absorção por micro algas, insetos, vermes e pequenos moluscos, que formam as comunidades bênticas ou bentônicas dos corpos d’água. Essas criaturas formam a base da cadeia alimentar e sustentam peixes, crustáceos, anfíbios e répteis menores, que por sua vez serão predados por espécies maiores.

O mercúrio acompanha todo o ciclo da cadeia alimentar, passando de um organismo para outro, se acumulando em quantidades cada vez maiores ao longo do tempo. O mercúrio presente no organismo de peixes fatalmente contaminará qualquer ser humano que consuma suas carnes. 

Esse mercúrio se acumula no organismo humano e pode provocar danos graves no sistema nervoso central, normalmente irreversíveis, que comprometem os sistemas sensoriais e motores. Os outros metais pesados citados também atuam de forma semelhante no meio ambiente e causam uma série de outros problemas à saúde de todos os organismos vivos, inclusive os seres humanos. 

Um dos casos mais graves de contaminação de um corpo d’água com grandes volumes de metais pesados e outros rejeitos da mineração se deu com o rompimento da Barragem de Fundão, em Mariana, em 2015. Nesse “acidente” (uso aspas por que há fortes indícios de descaso e omissão dos responsáveis pela operação da barragem) houve o vazamento de aproximadamente 62 milhões de metros cúbicos de rejeitos minerais.  

Para que todos tenham ideia do que foi esse desastre, esse volume de rejeitos minerais corresponde a 10 vezes o volume da Lagoa Rodrigo de Freitas no Rio de Janeiro ou 80% do volume da Represa Guarapiranga em São Paulo. Também permitiria cobrir toda a cidade de Vitória no Espírito Santo com uma camada de lama com espessura de 1,7 metro. Em meio a toda essa lama, encontramos várias toneladas de metais pesados tóxicos

O rio Doce não era exatamente um curso de águas cristalinas antes do trágico rompimento da Barragem de Fundão. Desde os primeiros anos do século XVIII, quando teve início o chamado Ciclo do Ouro, todos os cursos e margens de todos os riachos, córregos e rios da então conhecida Região das Geraes foram vasculhados e remexidos por inúmeros aventureiros.

Primeiro, esses homens buscavam as “pretas”, pedras de coloração escura onde encontravam o ouro de aluvião. Esgotados esses recursos, os mineradores passavam a escavar os barrancos e as encostas dos morros, destruindo as matas ciliares e lançando milhares de toneladas de sedimentos dentro das calhas dos rios. Grandes volumes de metais pesados começaram a ser carreados para as águas a partir dessa época.

Apesar dos problemas pré-existentes, as águas do rio Doce podiam ser usadas sem maiores problemas, após um tratamento, no abastecimento de cerca de 1 milhão de pessoas que vivem nas cidades ao longo do seu vale. Inúmeras propriedades agrícolas também se valiam dessas águas para a irrigação de plantações e dessedentação de rebanhos animais. 

Um verdadeiro exército de “trabalhadores das águas” do rio – pescadores, barqueiros, oleiros, artesãos, marisqueiros, catadores de caranguejos, entre outros, se valiam dos recursos das águas e das margens do rio Doce para sobreviver. Após o acidente e com a contaminação das águas e margens com metais pesados, esse grupo acabou sendo um dos mais prejudicados – eles perderam, literalmente, sua fonte de sustento. 

Passados cinco anos desde o rompimento da barragem de rejeitos, as águas do rio Doce já não têm o mesmo aspecto lamacento (vide foto), mas a sua situação ambiental ainda continua crítica. Um trabalho recém divulgado por pesquisadores da UFES – Universidade Federal do Espírito Santo, indicou que 123 espécies de micro-organismos subaquáticos que vivem na região do estuário do rio Doce apresentam uma contaminação crônica por metais pesados.

Esses micro-organismos, que formam as chamadas comunidades bentônicas do rio e estão na base da cadeia alimentar, são um forte indicativo da contaminação de todos os demais seres vivos que vivem nessas águas. Conforme já comentamos, os metais pesados presentes no corpo de um ser vivo passam para o corpo do seu predador e assim sucessivamente – esse processo é conhecido na ciência como bioacumulação.

Em alguns casos, as concentrações de alguns compostos como chumbo, arsênico, cobre e cromo estavam até 200 vezes acima dos níveis que foram encontrados em estudos feitos na mesma região pouco antes do acidente em Mariana. A comparação entre o antes e depois permite afirmar, com toda a certeza científica, que o aumento da contaminação do estuário do rio Doce foi provocado pelo vazamento da barragem de rejeitos de mineração de Mariana. 

Esse estudo também permite concluir que ainda existem grandes volumes de metais pesados acumulados nos sedimentos depositados ao longo da calha do rio e que ainda vai levar muito tempo (falamos aqui de alguns séculos) até que a força da correnteza carregue esses contaminantes em direção do estuário do rio no Oceano Atlântico.

Até lá, o consumo de peixes, camarões e outros crustáceos capturados nas águas do rio Doce apresentará grandes riscos de contaminação por esses metais pesados. A manipulação de barro e argila retirados das margens dos rios por oleiros e artesãos também implicará em riscos à saúde. 

É uma grande tragédia ambiental que será sentida ainda por inúmeras gerações de mineiros e capixabas. 

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