
Na última postagem relembrei o trágico rompimento da Barragem de Fundão em Mariana, Minas Gerais, e suas gravíssimas consequências para o rio Doce. No último dia 5 de novembro, o “desastre” completou 5 anos.
Com nascentes nas encostas das Serras da Mantiqueira e do Espinhaço, a bacia hidrográfica do rio Doce ocupa uma área total 71 mil km², sendo que aproximadamente 86% dessa área fica dentro do território mineiro e o restante em terras capixabas, o que equivale a 25% do território do Espírito Santo. A devastação ambiental provocada pelo rompimento dessa barragem de rejeitos minerais afetou diretamente 1 milhão de pessoas.
Além de comprometer o abastecimento de água de dezenas de cidades e a captação de água em milhares de propriedades rurais, a poluição acabou com o ganha pão de inúmeros trabalhadores que dependiam do rio para sobreviver. São pescadores, catadores de caranguejos e outros crustáceos, barqueiros, entre muitos outros. Uma categoria pouco comentada e que está sofrendo com as consequências ambientais do “desastre” (uso aspas por que tenho dúvidas se foi mesmo um acidente) são os artesãos que trabalham com o barro, especialmente no Norte do Espírito Santo.
Com a contaminação das águas, há o receio da argila retirada do rio estar contaminada com metais pesados e outras substâncias tóxicas como o mercúrio, o cromo e o arsênico, todos nocivos à saúde humana. Na dúvida, esses trabalhadores tem buscado outras fontes de argila, nenhuma que produza um barro de tão boa qualidade como o do rio Doce.
A dúvida que logo surgiu na mente de alguém de fora do Espírito Santo ao saber disso: esse problema afetou de alguma forma a produção das famosas panelas de barro capixabas?
Após uma pesquisa cuidadosa, ficou claro que as melhores e mais tradicionais panelas de barro são feitas na região de Vitória, bem distante do rio Doce. Um dos mais importantes centros dessa produção fica no Manguezal das Goiabeiras, onde centenas de “paneleiras” – como são chamadas as mulheres que fazem as panelas, sustentam suas famílias a partir do barro. E não falamos aqui de um barro qualquer – a fonte da matéria prima dessa produção é retirada de um local muito especial: o Vale do Mulembá, que fica no bairro Joana D’Arc em Vitória.
Existem notícias da fabricação de panelas de barro em Vitória há mais de 400 anos. A técnica de produção foi criada pelos indígenas que viviam na região e foi aperfeiçoada ao longo dos tempos, recebendo inclusive contribuições feitas pelos escravos africanos que foram trazidos para o Espírito Santo. As panelas são modeladas manualmente, queimadas a céu aberto e depois recebem a aplicação de uma tintura de tanino, substância retirada das cascas de árvores dos mangues vermelhos.
O segredo da qualidade e da beleza das panelas produzidas no Manguezal das Goiabeiras está nas argilas amarelas e cinzas utilizadas. Estudos químicos feitos nessas argilas encontrou misturas de diversos tipos de sedimentos fino-arenosos, matéria orgânica e pouca sílica livre. Essas argilas são formadas por partículas muito pequenas e com altos teores de silicatos hidratados de alumínio e ferro, contendo ainda elementos alcalinos e alcalinos terrosos. Ou seja – é um tipo de argila muito especial!
Existe aqui um problema preocupante: a exploração contínua dessas argilas num mesmo local há centenas de anos está levando a uma situação crítica – o esgotamento do recurso está muito próximo. Sem as argilas especiais do Vale do Mulembá, a produção das famosas panelas de barro ficaria comprometida e muito pior – o preparo das tradicionais moquecas e da torta capixaba poderia estar ameaçado.
A surpreendente salvação da lavoura, ou melhor, das cozinhas, veio do lugar menos improvável que se poderia imaginar – da ETE – Estação de Tratamento de Esgotos, Mulembá, operada pela CESAN – Companhia Espírito Santense de Saneamento, e que fica muito próxima das áreas de extração das argilas. Durante os trabalhos de sondagem no terreno para a ampliação das instalações da estação em 2009, os técnicos encontraram veios de argila, sendo duas amarelas e uma cinza com aspecto muito similar àquelas usadas na produção das panelas de barro.
Amostras dessas argilas foram encaminhadas para análise no CETEM-ES, Centro de Tecnologia Mineral do Campus Avançado de Cachoeiro de Itapemirim. Duas dessas amostras, uma argila amarela e a cinza, se mostraram compatíveis com as argilas já usadas pelas paneleiras. Ou seja, graças à necessidade de ampliação do tratamento dos esgotos da cidade de Vitória, foi encontrada uma nova fonte de matéria prima no terreno da estação, que poderá ajudar a suprir as futuras necessidades de produção das paneleiras do Manguezal das Goiabeiras.
Os mais tradicionais pratos da culinária capixaba e a sobrevivências de centenas de paneleiras estão garantidos por muito tempo. Bom demais!
Moral da história: saneamento básico faz bem ao meio ambiente e também para a cultura.