Rios não são eternos.
Começar uma postagem com uma afirmação tão forte quanto essa pode deixar muita gente preocupada. Infelizmente, isso é uma grande verdade – deixem-me citar um exemplo extremo: o rio Nilo.
Famoso por ter abrigado uma das mais importantes civilizações do passado, o rio Nilo é uma verdadeira artéria que dá vida ao Egito, país do Norte da África que tem perto de 95% de seu território formado por desertos de areias escaldantes. É bastante difícil imaginar o país sem seu famoso rio e sem suas margens verdejantes, que garantem pastagens e campos agricultáveis para sustentar uma população de mais de 150 milhões de habitantes. Mas, acredite se quiser, até algo como 7 ou 8 mil anos atrás, o rio Nilo não cruzava o Egito como vemos hoje.
A partir de suas diversas nascentes – a mais distante fica no Burundi, o rio Nilo seguia primeiro para o Norte e depois virava para o Leste, atravessando toda a região onde encontramos hoje o Deserto do Saara, até atingir a sua foz, que naqueles tempos ficava no Oceano Atlântico. Naqueles tempos, o clima do Norte da África era bem mais chuvoso e a região era coberta com uma vegetação de Savana. Ao longo das margens do antigo rio Nilo se encontravam matas de galeria, campos alagáveis, pântanos e outras formações vegetais importantes. A região pulsava de vida, com grandes rebanhos de zebras, antílopes, girafas, gnus, elefantes, rinocerontes e outros animais típicos da fauna africana. Pinturas rupestres que encontramos atualmente em cavernas e formações rochosas por todo o Deserto do Saara mostram imagens com todos esses animais.
Em algum momento desse período, movimentos de placas tectônicas provocaram uma mudança brusca no curso do rio Nilo, que passou a seguir somente para a direção Norte, passando a ter sua foz no Mar Mediterrâneo. Para piorar a situação, alterações climáticas regionais mudaram a zona de chuvas alguns graus para o Sul, transformando todo o Norte da África na sucessão de áreas desérticas e semiáridas que vemos hoje. O Lago Chade é um resquício dessa época. Praticamente seco nos dias atuais, esse lago já foi gigantesco – relatos romanos da época de Jesus Cristo afirmavam que o Chade ocupava uma área do tamanho da Alemanha. A abundância de água do passado virou, literalmente, areia.
No caso do rio São Francisco, acredito que não corremos riscos imediatos de uma mudança tão brusca como a que ocorreu com o rio Nilo – o Brasil está localizado no centro da Placa Tectônica Sul Americana e a atividade sísmica por aqui é relativamente pequena. Por outro lado, as ações antrópicas, ou seja, as ações e atividades humanas, já fizeram um estrago considerável na bacia hidrográfica do Velho Chico. Vamos começar falando dos sucessivos barramentos de usinas hidrelétricas nos últimos 70 anos.
O rio São Francisco possui atualmente 9 usinas hidrelétricas instaladas em sua calha, a saber: Paulo Afonso I, II, III e IV, Sobradinho, Luiz Gonzaga, Moxotó, Xingó e Três Marias. A imensa maioria desses empreendimentos é anterior a 1986, ano em que foi implantada a Política de Meio Ambiente brasileira e a partir da qual começaram a ser exigidos estudos prévios de impacto ambiental. A cada barragem construída, um trecho do rio foi isolado, matas ciliares e de galeria foram suprimidas, espécies animais perderam seus habitats, milhares de pessoas que viviam nas áreas sujeitas ao alagamento tiveram de ser realojadas, a dinâmica das águas do rio foi alterada, entre outros problemas. E, justamente pela falta de uma política ambiental válida na época das obras, esses empreendimentos não foram obrigados a realizar compensações ambientais pelos estragos que provocaram no rio São Francisco.
Outro gravíssimo problema é o intenso assoreamento e entulhamento das calhas de todos os rios da bacia hidrográfica. O começo desse problema remonta ao século XVII, quando teve início a exploração e a mineração desenfreada do ouro. Pode-se especular que cada metro quadrado da calha dos rios, especialmente na região das Geraes, foi revirado por aventureiros de todos os tipos na busca do ouro de aluvião. Esgotadas essas reservas, a exploração passou a se concentrar as margens e barrancos dos rios, onde toda a vegetação foi suprimida. Sem a proteção das matas, as chuvas passaram a carrear milhões de metros cúbicos de sedimentos de todos os tipos para a calha dos rios. Em épocas mais recente, foram os grandes projetos de mineração que fizeram seus estragos, aumentando ainda mais o açoreamento nos rios.
A mineração em larga escala criou um outro problema – a derrubada intensiva de matas para a produção de carvão vegetal. A produção e o processamento de metais como o ferro e o aço requer imensas quantidades de energia térmica, o que, na maior parte dos grandes países industrializados, é gerada a partir da queima do carvão de origem mineral. O Brasil é extremamente pobre em reservas de carvão, quando comparado a outros países, reservas essas concentradas nos Estados da Região Sul, especialmente em Santa Catarina. Na falta desse importante insumo, as empresas passaram a se valer do carvão vegetal. Extensas áreas de matas foram derrubadas e a madeira ardeu primeiro nos improvisados fornos de barro, onde era intenso o emprego de mão-de-obra infantil, e depois nos altos-fornos das siderúrgicas.
Em décadas mais recentes, esse desmatamento foi reforçado pela abertura de novas frentes agrícolas. Com o desenvolvimento de técnicas para a correção da forte acidez dos solos do Cerrado e com a criação de variedades de cultivares adaptadas ao clima e aos solos do bioma, especialmente grãos como a soja e o milho, grandes extensões de matas nativas passaram a sumir do mapa, surgindo em seu lugar gigantescas plantações. O principal impacto desse avanço da agricultura sobre áreas do Cerrado se dá na forma de redução dos caudais dos inúmeros tributários do rio São Francisco com nascentes no bioma. A vazão média na foz do São Francisco era, décadas atrás, de cerca de 3 mil metros cúbicos por segundo. Em anos recentes, essa vazão chegou a cair para apenas 1/6 desse volume em períodos de seca.
Todo esse conjunto de agressões ambientais sistemáticas no rio São Francisco resultaram, entre outros males, na perda de biodiversidade da fauna aquática e na destruição da navegação em importantes trechos do rio. Um dos peixes mais famosos do rio, o surubim, é cada vez mais raro e corre risco iminente de extinção. Na navegação, um importante trecho com mais de 1.200 km entre Pirapora, no Norte de Minas Gerais, e as cidades de Juazeiro, na Bahia, e Petrolina, em Pernambuco, há muito deixou de ser viável tecnicamente para embarcações maiores. A redução dos caudais do rio expôs inúmeras formações rochosas na superfície e passaram a surgir inúmeros bancos de areia ao longo desse trecho, criando todo tipo de riscos para a navegação.
No baixo curso do São Francisco, a redução progressiva dos caudais tem facilitado a intrusão de água salgada do mar, o que tem prejudicado o abastecimento de inúmeras cidades e inviabilizado o uso da água em projetos de irrigação. A navegação nesse trecho do rio, que sempre foi importante para muitas cidades de Alagoas e de Sergipe, ficou muito arriscada devido aos baixos níveis do rio, o que criou inúmeros trechos com corredeiras e afloramentos rochosos.
Enfim, apesar de não haver riscos ou ameaças naturais à existência do rio São Francisco, os seres humanos tem se “esforçado” muito para transformá-lo em um leito seco e sem vida.
Desgraçadamente, é capaz de conseguirmos lograr êxito nesta empreitada…