“Vista do Atlântico, a Terra Brasilis parece ser coberta por um infinito tapete verde. Até onde a vista alcança, pode-se perceber os mais diferentes tons da vegetação, contrastando com o azul intenso do céu. Uma esbelta linha branca mostra o limite da terra, onde a areia se confunde com a espuma branca do quebrar das ondas.
Os ventos alísios sopram com força o velame da nau; o madeiramento range de popa a proa e vibra à medida que avança rumo à costa. As folhas verdes dos chuços de cana de açúcar plantados nas caixas de madeira vibram intensamente, como se soubessem que estão próximos de sua nova morada. Em breve, os diferentes tons de verde da Mata Atlântica sucumbirão ao monótono verde folha da cana de açúcar. Grandes clareiras no meio da mata, onde outrora imperava o pau-brasil, estão com os sulcos já arados à espera da saccharum officinarum.
Em outras naus da frota é o gado vacum que se agita, talvez sentindo o cheiro da relva fresca que se aproxima. Trazido das ilhas d’além mar, será sua força bruta que dará vida às moendas fazedoras do valioso açúcar, suas pernas fortes puxarão os carros carregados de cana e, por fim, sua carne saborosa é que vai saciar a fome dos implacáveis colonizadores…”
O título da postagem e o texto inicial são de um capítulo de um dos meus livros, onde descrevo aquele que foi, a meu ver, o momento da chegada das primeiras mudas de cana de açúcar a terras brasileiras. Existem algumas dúvidas sobre a data exata, mas a maioria das fontes se referem aos primeiros anos da década de 1530. O litoral descrito pode ser o da Capitania de Pernambuco, destino da expedição colonizadora de Duarte Coelho, ou o da Capitania de São Vicente em São Paulo, destino de Martin Afonso de Sousa e de seu irmão, Pero Lopes de Sousa – essas duas Capitanias foram as mais bem sucedidas no início da colonização do Brasil. Por enquanto, vamos nos concentrar na Região Nordeste.
Em Pernambuco, Duarte Coelho implantou o primeiro engenho, provavelmente, em 1535, sob a invocação de Nossa Senhora da Ajuda. Entretanto, alguns historiadores afirmam que já em 1526, Pernambuco e Itamaracá produziam açúcar. Em 1536, há registros de dois engenhos à beira-mar e um à margem do rio Beberibe em Pernambuco
“… nas colinas olindenses, à sombra dos laranjais de túnicas perfumosas, captadas as águas correntes do Beberibe para o entre mover da roda da moenda.”
Em 1576, poucos anos antes da Coroa Portuguesa ser unificada à Coroa Espanhola, então governada pela Casa dos Habsburgo, Pero de Magalhães Gândavo (c. 1540 – c. 1580), historiador e cronista português, lançou o livro História da Província de Santa Cruz a que vulgarmente chamamos de Brasil, onde faz um recenseamento do número de engenhos de açúcar em operação no Brasil:
‘Itamaracá – um engenho de açúcar e dois em construção’; ‘Pernambuco – 23 engenhos movidos a bois ou a água, com produção de 50 a 70 mil arrobas de açúcar (no Brasil e em Portugal há época, a arroba equivalia a 14,688 kg; na Espanha variava de 10,4 a 12,5 kg conforme a região)’; ‘Bahia – 18 engenhos’; ‘Ilhéus – 8 engenhos’; ‘Porto Seguro – 5 engenhos’; ‘Espírito Santo – 1 engenho’; ‘São Vicente – 4 engenhos”.
De acordo com a História Geral do Brasil de Francisco Adolfo de Varnhagen, existiam, entre os anos de 1580 e 1590, 127 engenhos no Brasil, mais do que o dobro do número informado por Pero de Magalhães Gândavo em 1576. A distribuição desses engenhos pelas Capitanias:
“6 em São Vicente; 3 no Rio de Janeiro (São Tomé); 6 no Espírito Santo; 36 na Bahia, 2 em Porto Seguro e 3 em Ilhéus (essas capitanias formaram, posteriormente, o Estado da Bahia); 66 em Pernambuco (incluindo neste total 7 engenhos de Alagoas), 3 em Itamaracá (região que hoje pertence ao estado de Pernambuco) e 2 na Paraíba (Rio Grande)”.
Observem que, independentemente da fonte pesquisada, a imensa maioria dos engenhos ficavam na Região Nordeste. Além do empenho dos senhores das Casas Grandes da Região, é preciso destacar que a grande produtividade de cana estava diretamente ligada a alta qualidade dos solos de massapê da faixa litorânea, tema que trataremos na próxima postagem. Além de bons solos e grande disponibilidade de água, era preciso dotar os canaviais nordestinos da mão-de-obra necessária para as operações de plantio e corte da cana e também para a produção do açúcar nos engenhos:
“Como se fizessem sentir, depois de 1550, falta de braços em todo o Brasil, permitiu o Rei de Portugal, por édito de 1559, que cada engenho importasse 130 escravos do Congo, com o que o número total de escravos negros se elevou, até 1584, a cerca de 10.000.”
Projeções populacionais, que consideram tanto o aumento vegetativo da população quanto a entrada no país de novos contingentes de escravos importados da África, indicam que no ano de 1600, o número total de escravos negros no Brasil atingiu a marca de 30.000; em 1700, atingiu o número de 150.000, concentrados na Região Nordeste.
Além do fundamental açúcar, um dos produtos mais valiosos do comércio mundial naqueles tempos, os engenhos reservavam uma parte da cana de açúcar para a produção da aguardente – a nossa famosa cachaça. Além de grande consumo entre a população das Capitanias, a cachaça era exportada para a costa africana, onde era utilizada como moeda de troca (escambo) na aquisição de escravos.
Uma outra cultura agrícola acessória que se popularizou a partir do início do século XVII foi o tabaco (Nicotiana tabacum), planta conhecida desde longa data pelos indígenas americanos e que teve crescente aceitação na Europa. O tabaco produzido no Brasil, entretanto, tinha um outro destino: ele era utilizado em conjunto com a aguardente em escambos na compra de escravos. Essas relações de “troca” de aguardente e tabaco, vergonhosamente, persistirão até o início do século XIX.
A implantação dos primeiros canaviais em terras brasileiras seguiu a trilha deixada pelas atividades de extração e exportação de pau-brasil em décadas anteriores. Para a atracação das naus e para as operações de embarque das cargas, os primeiros exploradores já haviam identificado trechos do litoral e áreas em embocaduras de grandes rios com boa profundidade e abrigadas das fortes ondas do mar. Nesses locais foram construídos atracadouros improvisados para as naus, que muito facilitaram a chegada e o desembarque dos primeiros contingentes de colonizadores.
As antigas explorações de pau-brasil também haviam criado toda uma rede de feitorias ao longo da costa, que nada mais eram que grandes clareiras abertas em meio a densa floresta tropical, onde já existiam algumas construções. As populações indígenas que moravam nas vizinhanças dessas feitorias já estavam “habituadas” ao convívio com os europeus – mesmo que não se prestassem aos trabalhos penosos e sistemáticos nas plantações de cana e nos engenhos de produção de açúcar, função que caberia aos escravos trazidos da África, esses indígenas também pouco atrapalhariam.
Foi a partir dessas clareiras já abertas na Mata Atlântica que teve início o brutal processo de devastação das matas pela força do fogo – as áreas eram queimadas sistematicamente até que só restassem os solos de massapê cobertos por uma grossa camada de cinzas. Era hora de arar a terra e de plantar as valiosas mudas de cana de açúcar trazidas d’além mar…
Continuamos na próxima postagem.
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