A inauguração do Canal do Panamá em 1914, abriu uma nova era nas navegações e deixou o mundo “um pouco menor”. Conforme comentamos nas postagens anteriores, a abertura de uma via navegável através do Istmo do Panamá era um sonho antigo que vinha sendo acalentado desde o século XVI pela coroa da Espanha. Ao longo do século XIX, foram feitos inúmeros esforços para a efetivação desse sonho – as obras de construção até chegaram a ser iniciadas por empresários franceses em 1881, porém, a selva tropical acabou sendo mais forte que os homens.
No início do século XX, os norte-americanos interviram politicamente na região apoiando grupos revolucionários que lutavam pela independência do Panamá, até então parte da Colômbia. Logo após a declaração da independência em 1903, os norte-americanos compraram a concessão da Zona do Canal do Panamá junto ao novo Governo do país. Compraram também os direitos de concessão dos franceses e retomaram a construção em 1904. Desde então, o Canal do Panamá se transformou em uma espécie de área de segurança nacional dos Estados Unidos, mesmo após a entrega da administração do empreendimento ao Panamá em 1999.
Um lado dessa história que não é muito comentado é que existia um plano B para a construção de um canal de navegação através da América Central caso os norte-americanos não conseguissem levar a cabo seu “plano” para o domínio do Panamá. Falo aqui do projeto do Canal da Nicarágua, uma opção que vinha sendo estudada desde o início do século XIX. Com o sucesso da “política externa” do Presidente Theodore Roosevelt e a concessão do Canal do Panamá para os Estados Unidos, esse plano foi completamente esquecido.
Passados quase um século desde a inauguração do Canal do Panamá e depois de muitas e muitas voltas na história do mundo, surgiu a notícia que empresários chineses estavam trabalhando para retomar o projeto da construção de um canal na Nicarágua. Uma empresa com sede em Hong Kong – HK Nicaragua Canal Development Investment Co. Limited, dirigida pelo magnata das comunicações da China Wang Jing, obteve em 2014 a concessão junto ao Governo do país para a construção e operação, ao longo de 50 anos, do canal. Os investimentos estimados eram da ordem de US$ 40 bilhões.
O projeto do Canal da Nicarágua previa a criação de uma via navegável através do país com aproximadamente 280 km de extensão, sendo que 105 km desse trajeto seriam feitos através da navegação nas águas do Lago Cocibolca (vide foto), o maior corpo de água doce da América Central. As vias de navegação desse canal teriam cerca de três vezes a largura das vias do Canal do Panamá, o que possibilitaria a passagem dos modernos supercargueiros marítimos.
Em 2011, época em que surgiram as primeiras notícias da retomada da ideia da construção dessa via interoceânica, o Canal do Panamá se encontrava saturado e ultrapassado tecnicamente. A largura de suas vias navegáveis limitava o tráfego de embarcações a uma capacidade até 110 mil toneladas, classe de navios cargueiros conhecidas como “Panamax”. Nas últimas décadas, porém, haviam surgido novos supercargueiros com capacidade para 250 mil toneladas de carga e até 455 metros de comprimento. Essa classe, conhecida como “pós-pós-Panamax”, pode receber a impressionante carga de até 14 mil contêineres. Armadores da China estão entre os maiores operadores dessa nova classe de supercargueiros.
Para a Nicarágua, a perspectiva de construção desse novo canal significaria uma verdadeira revolução econômica. Os investimentos previstos correspondiam a quatro vezes o tamanho do PIB – Produto Interno Bruto, nicaraguense e tinham potencial para a geração de 50 mil empregos. Além dos investimentos para a construção e operação do canal, o projeto previa a construção de portos, aeroportos, uma área de livre comércio, além de investimentos em turismo e hotelaria. O Presidente da Nicarágua, Daniel Ortega, era o maior entusiasta do projeto.
Entretanto, nem tudo era um “mar de rosas” no projeto desse novo canal – a construção da via interoceânica trazia em seu bojo uma série de problemas ambientais e sociais. Um dos maiores problemas ambientais da obra se relacionavam ao Lago Cocibolca, principalmente os riscos de salinização das águas devido a abertura de uma via de ligação com o Oceano Pacífico. Outro sério problema seriam os impactos em diversas áreas indígenas que seriam atravessadas pelos canais de navegação. Segundo as estimativas de grupos ecologistas locais e internacionais, as obras teriam impactos diretos sobre 400 mil hectares de terras úmidas, praticamente um terço do território do país.
A perspectiva de criação de uma via navegável concorrente ao Canal do Panamá, é claro, enfrentaria uma fortíssima oposição política dos Estados Unidos. Cerca de 5% do tráfego comercial de cargas marítimas do mundo passam pelo Panamá, país historicamente controlado pelos Estados Unidos – um canal concorrente controlado pela China não seria nada conveniente. O Governo do Panamá, inclusive, foi o que mais elevou o tom contra a eventual construção do Canal da Nicarágua.
Uma notícia que começou a “circular” na imprensa e nas redes sociais da internet afirmavam que a HK Nicaragua Canal Development Investment Co. Limited era na realidade uma empresa de fachada e que o Governo da China era quem estava por trás do projeto. Outros projetos para a construção e operação de linhas de transporte terrestre – os “canais secos”, entre o Mar do Caribe e o Oceano Pacífico na Colômbia, na Guatemala e em El Salvador, também passaram a ser acusados de estarem sendo financiados pelo Governo da China. Esses “canais secos” seriam potenciais concorrentes do Canal do Panamá.
Diversas “fontes” anônimas ligadas aos mais diferentes organismos de comércio internacional passaram a vazar declarações contrárias ao “sonho chinês” de controlar um canal interoceânico na América Central. Essas declarações iam desde os riscos de uma concorrência desleal entre os custos de passagem entre os dois canais, onde os chineses poderiam baixar artificialmente os preços para prejudicar o Canal do Panamá, até riscos de uma expansão militar da China na região, lembrando que o Governo ditatorial de Daniel Ortega é de esquerda.
Além de iniciar uma guerra de informações, o Panamá (leia-se aqui Estados Unidos) alavancou todo um conjunto de obras para ampliação da largura e profundidade dos canais de navegação, além de ampliação dos sistemas de comportas do Canal do Panamá. Essas obras visavam ampliar a capacidade do Canal para receber os novos supercargueiros em operação atualmente no mundo. Coincidência ou não, o Governo de Daniel Ortega entrou em um processo de desestabilização, com grandes protestos e convulsão social. Como toque final, o Governo do Panamá assinou um acordo estabelecendo relações diplomáticas com a China em 2017.
Dentro de todo esse rol de más notícias para o Canal da Nicarágua, começaram a circular informações sobre a possível falência do bilionário chinês Wang Jing, mentor do projeto. Até 2015, Wang Jing era uma das pessoas mais ricas do mundo, com uma fortuna avaliada em US$ 10,2 bilhões – em 2017, sua fortuna estava “reduzida” a apenas US$ 1,1 bilhão, de acordo com informações de uma empresa de dados e tecnologia para o mercado financeiro, a norte-americana Bloomberg.
A empresa de telecomunicações do magnata, a Xinwei Telecom Technology Group, com sede em Pequim, teve 35% de suas ações suspensas, abrindo caminho para a sua ruína financeira. O empresário também passou a ser investigado por serviços de investigação internacionais por operações suspeitas na aquisição de empresas do ramo aeronáutico na Ucrânia.
A soma de todos esses problemas e acontecimentos, no mínimo, de uma coincidência impressionante, enterraram, ao menos temporiamente, o sonho da construção do Canal da Nicarágua e a ambição dos chineses de controlar uma via navegável transoceânica na América Central.
O já combalido meio ambiente da região e seus inúmeros problemas sociais agradecem.
[…] terra” entre as Américas do Norte e do Sul, onde encontramos sete países: Panamá, Costa Rica, Nicarágua, Honduras, El Salvador, Guatemala e Belize. Essa região compreende territórios com uma área […]
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