HAITI: O PAÍS MAIS POBRE E DESMATADO DAS AMÉRICAS

Terremoto do Haiti 2010

Começo contando uma das minhas histórias favoritas:

Uma das maiores criações dos povos caribenhos foi o rum, uma bebida forte destilada do melaço da cana fermentado. A bebida começou a ser produzida em todo o Caribe a partir do século XVII, quando era considerada um remédio “capaz de exorcizar todos os demônios do corpo”. O rum tem um teor alcoólico entre 40 e 55° GL e ganhou uma enorme popularidade entre os antigos marinheiros, que recebiam parte do seu soldo em garrafas da bebida. 

Uma das melhores marcas de rum há época da colonização do Caribe era produzida na então próspera colônia francesa do Haiti – Aux Cayes (No Cais). Naqueles memoráveis tempos, o Haiti era conhecido como “a pérola do Caribe”. Entre os maiores apreciadores da bebida haitiana se encontravam os marinheiros ingleses, que com o seu sotaque a chamavam “Oh Key”. Segundo alguns linguistas, essa é considerada uma das possíveis origens da palavra inglesa OK, uma das expressões mais usadas em todo o mundo. Esses bons e prósperos tempos do Haiti, infelizmente, são coisas de um passado já bem distante. 

Ocupando uma área com pouco mais de 27 mil km² e com uma população próxima aos 11 milhões de habitantes, o Haiti ou Repiblik Ayiti, em créole haitiano, é o país mais pobre das Américas e também o mais desmatado: mais de 98% das matas nativas locais já foram derrubadas. Além da destruição histórica das matas para a abertura de campos agricultáveis para o plantio da cana, grande parte desse desflorestamento se deveu ao uso de lenha como combustível e de madeira para a construção civil. 

Conforme já comentamos em postagem anterior, o nascimento oficial da Colônia Francesa do Haiti teve início em 1697, quando diversas nações assinaram o Tratado de Ryswick, pondo fim a uma série de disputas territoriais na Europa e em outras partes do mundo. Como parte do acordo, a Espanha cedeu a faixa Oeste da Ilha Hispaniola para a França, que desde 1695 já enviava seus cidadãos como imigrantes para a região. 

Ao longo do século  XVIII, o Haiti se consolidou como a mais próspera colônia da França nas Américas. Junto com o famoso rum, outro importante produto da colônia era o açúcar, uma mercadoria de luxo e extremamente valorizada há época. Além de possuir um grande mercado cativo na França, os engenhos do Haiti eram bastante eficientes e as correntes marítimas e o regime de ventos do Oceano Atlântico Norte favoreciam as viagens das embarcações entre a Europa e o Caribe, e vice-versa.  

A soma de todos esses fatores tornava o produto haitiano bem mais competitivo que o açúcar português produzido no Brasil. Outras colônias da Espanha, da Inglaterra e da Holanda no Caribe também conseguiam produzir grandes volumes de açúcar em condições competitivas, uma situação que produziu uma imensa crise na indústria açucareira do Brasil há época.  

Essa situação só não foi mais crítica devido a uma coincidência histórica – a partir da descoberta das minas de ouro na região das Geraes nos últimos anos do século XVII (1693), a atenção dos portugueses gradativamente foi se voltando para a mineração, com a produção do açúcar sendo abandonada. O auge da mineração do ouro no Brasil se deu ao longo do século XVIII. 

Os rumos do Haiti começaram a mudar nos últimos anos do século XVIII, quando uma revolta dos escravos levou a abolição da escravidão do país em 1794. Depois de dez anos de lutas, os haitianos conseguiram a independência da França em 1804. Essa “aparente” vitória do povo do Haiti acabaria se transformando no começo da decadência da próspera ex-colônia – a França e os Estados Unidos, países até então fortemente escravagistas, criaram um forte bloqueio comercial ao país. 

Foi somente em 1825, já durante a presidência de Jean Pierre Boyer, que o Haiti conseguiu assinar um acordo com a França, pondo fim ao bloqueio comercial. Pelos termos do acordo, o Haiti deveria pagar uma indenização de 150 milhões de francos à antiga Metrópole, valor que acabou sendo reduzido a 90 milhões de francos. Esse acordo não foi espontâneo – o país estava cercado por uma poderosa frota naval da França e não teve outra alternativa. O pagamento dessa indenização exauriu a já combalida economia do país

A decadência econômica foi seguida pelo caos político – ao longo da segunda metade do século XIX, o Haiti teve um total de 20 governantes, sendo que 16 deles acabaram depostos ou assassinados. Essa instabilidade política continuou nos primeiros anos do século XX. Em 1915, sob o velho pretexto de proteger seus interesses no país, os Estados Unidos ocuparam o Haiti, onde permaneceriam até 1934

Mesmo após a saída dos norte-americanos do país, as forças políticas do Haiti não conseguiram atingir a tão esperada estabilidade. Foi então que, em 1957, o médico François Duvalier, mais conhecido como Papa Doc, foi eleito Presidente com apoio dos Estados Unidos. Aproveitando-se do clima conturbado da Guerra Fria vivida entre norte-americanos e russos, Papa Doc impantou uma ditadura sanguinária, que se estenderia até 1986, quando o país já era governado por seu filho Jean-Claude Duvalier, o Baby Doc

Os Duvaliers exploravam todo o misticismo do vudu, uma religião de origem africana popular no Haiti, para subjugar a população. A parte mais visível dessa face do terror eram os tontons macoutes, ou os bichos-papões em creóle, os policiais da guarda pessoal do Presidente. Esses “policiais” eliminavam opositores, prendiam e torturavam jornalistas, padres, professores e quem mais ousasse se opor ao regime. Essa longa ditadura ajudou a consolidar o Haiti na posição de país mais pobre e miserável das Américas. 

O reestabelecimento da democracia após a queda da ditadura dos Duvaliers não foi suficiente para colocar o Haiti dentro das mínimas condições de governabilidade e de desenvolvimento econômico. O exemplo mais dramático da incapacidade do Governo foi demonstrado após o forte terremoto que assolou o país em 2010. Epicentro do cismo, a capital do país, Porto Príncipe, teve cerca de 80% de suas construções destruídas ou seriamente danificadas. As estimativas falam de um total entre 220 mil e 300 mil mortos, 300 mil feridos e perto 1,5 milhão de desabrigados. Mesmo contando com ajuda internacional, o país até hoje não superou a tragédia (vide foto). 

Entre 2004 e 2017, tropas do Exército do Brasil participaram de uma missão de paz internacional da ONU – Organização das Nações Unidas, para restaurar a ordem e ajudar a estabilizar a situação política do Haiti. Além de conter a violência entre os diferentes grupos políticos, os efetivos militares dessa missão de paz foram fundamentais para o socorro e atendimento da população após o terremoto de 2010.

Com um histórico dos mais complicados dos pontos de vista social e econômico, a situação do meio ambiente no Haiti é simplesmente caótica. Restam menos de 2% da cobertura vegetal original do país, o que comprometeu a maioria dos rios e corpos d’água e tem afetado profundamente o abastecimento das populações. Solos perderam a fertilidade e o país precisa importar a maior parte dos laimentos consumidos pela população. A imensa maioria dos haitianos depende da coleta de lenha para cozinhar, o que vem impedindo qualquer recuperação da vegetação – as novas árvores mal atingem um metro de altura e já são cortadas para uso como lenha. 

Nas áreas urbanas, os problemas se multiplicam – à carência de água potável se somam esgotos correndo a céu aberto, falta de coleta de lixo, habitações precárias e falta dos mais elementares serviços públicos como saúde, educação e segurança pública. A situação da população só não é mais crítica devido à criação de postos de trabalho temporários na vizinha República Dominicana há época do corte da cana de açúcar.  

Centenas de milhares de haitianos migram nesse período para o país vizinho, onde se submetem a longas e pesadas jornadas de trabalho no corte e transporte da cana de açúcar, recebendo em troca salários miseráveis. Ao final da colheita da cana, esses trabalhadores voltam para o Haiti (os dominicanos discriminam fortemente os haitianos), onde conseguirão se manter precariamente até a chegada da próxima safra de cana. 

Um resumo da situação ambiental do Haiti pode ser visto na Península de San Nicolás, no Norte do país. A destruição da cobertura vegetal criou o maior “deserto” de todas as ilhas do Caribe, que não para de crescer. Se nada for feito para frear ou reverter essa situação, o Haiti, palavra que na antiga língua dos índios arahuacas significa “terra de montanhas”, em breve poderá ser chamado de terra dos desertos

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