AS CAPIVARAS DOS RIOS TIETÊ E PINHEIROS

Capivara do rio Tietê

Na última postagem, nós falamos de um tema bastante polêmico e que tem revoltado muita gente – capivaras que vivem dentro de um condomínio residencial em Itatiba, cidade do interior de São Paulo, estão sendo capturadas e abatidas por uma empresa especializada. O motivo – um morador desse condomínio morreu no início de 2018, vítima da febre maculosa. Essa doença é provocada pela bactéria Rickettsia rickettsii, que é transmitida pelo carrapato-estrela (Amblyomma cajennense). As pobres capivaras tiveram o azar de ser uma das espécies hospedeiras desse carrapato e, por tabela, acabaram envolvidas no imbróglio. E a parte mais triste dessa história – o abate das capivaras foi determinado pela Secretaria de Infraestrutura e Meio Ambiente do Estado de São Paulo, que passou a considerar o local como uma área de risco para a febre maculosa

A capivara (Hidrochoerus hydrochaeris) é o maior mamífero roedor do mundo. Elas estão incluídas no mesmo grupo de roedores onde estão as cutias, as pacas, os preás e os porquinhos-da-índia. O animal poder atingir mais de 90 kg de peso e um comprimento de 1,2 m. O corpo é recoberto por uma pelagem densa e escura, totalmente adaptada para passar longos períodos dentro d’água, e com tons que vão do avermelhado ao marrom. É uma animal exclusivo da América do Sul, onde se distribui em rios, lagos e pântanos das grandes bacias hidrográficas a Leste da Cordilheira dos Andes e em altitudes inferiores a 1.200 m. 

O famoso Planalto de Piratininga, onde foi fundada a cidade de São Paulo em 1554, já foi um habitat com características das mais excepcionais para a vida das capivaras. O Planalto era cortado por uma complexa rede hidrográfica, com grandes rios como o Tietê, Tamanduateí e Pinheiros, além de centenas de pequenos rios e córregos. Estudos recentes demonstram que a região já foi uma grande mancha do bioma Cerrado, cercado por vegetação de Mata Atlântica e da Mata das Araucárias. Com o crescimento das cidades em toda a região do Planalto de Piratininga, a poluição das águas e a canalização em massa de riachos e córregos, os habitats naturais e as capivaras foram desaparecendo da região. 

Em meados de 1992, começaram a surgir relatos de muitas pessoas, afirmando que um jacaré estava nadando nas águas altamente poluídas do rio Tietê – essa notícia acabou se confirmando logo depois. Teimoso, nome que a população deu ao heroico jacaré, deu um verdadeiro baile em bombeiros e especialistas, só sendo capturado cerca de dois meses depois. Numa próxima postagem falaremos dessa incrível história. A saga do Teimoso, que teve um final feliz, inspirou os paulistanos a olhar para o sofrido rio Tietê com outros olhos – e foi justamente esse novo olhar que permitiu que um fenômeno que estava ocorrendo discretamente viesse a luz: as capivaras estavam voltando a recolonizar as margens dos grandes rios urbanos da cidade de São Paulo. 

Minha primeira experiência com essas capivaras se deu em 2003, ano em que passei a atuar na área da construção civil pesada e do meio ambiente, quando trabalhei nas obras de extensão de um grande complexo viário na Zona Leste da cidade de São Paulo. Uma das “obras de arte” (nome que se dá a obras como pontes e viadutos) do projeto era uma ponte sobre o rio Tietê. Uma pequena equipe de operários foi instalada nas margens do rio, encarregada de fazer os trabalhos de corte da vegetação e preparação do terreno para a instalação do canteiro de obras. 

Na manhã de uma sexta-feira, recebi uma preocupante notícia via “rádio-peão” (o famoso boca-a-boca que existe entre os funcionários); os operários daquela frente de obras haviam capturado uma capivara e estavam se preparando para transformá-la no prato principal de um churrasco no final de semana. Desesperado com os impactos que esse churrasco teria na obra (a Polícia Ambiental já estava em nosso cerco por causa de alguns problemas no licenciamento ambiental da obra), procurei imediatamente o chefe da Segurança no Trabalho, que também já havia ouvido a mesma notícia. Juntos com alguns outros encarregados da obra, seguimos para a beira do rio para conversar com esse grupo. Após muita negação, a equipe acabou confessando e se comprometeu a libertar a capivara. Passado o susto, tive tempo de parar e chegar na beira do rio Tietê pela primeira vez em minha vida. A pouco mais de dez metros dali, uma capivara e seus filhotes pastavam calmamente. 

Essas capivaras “paulistanas”, muito provavelmente, migraram desde áreas do Alto Tietê, trecho inicial da bacia hidrográfica ainda preservado e com grandes trechos ainda apresentando as mesmas características ambientais dos tempos do início da colonização do Planalto de Piratininga. Seguindo a calha do rio, grupos de capivaras passaram a ocupar trechos das margens onde há abundância de vegetação e também nascentes com água relativamente limpa. O nome capivara vem do tupi-guarani kapi-wara e significa, literalmente, “comedor de grama”. Com a garantia de comida e água “potável”, os animais usavam as águas do rio Tietê apenas para nadar e se locomover, seguindo cada vez mais longe. 

No final da década de 1990, o Governo do Estado de São Paulo iniciou um grande projeto de revitalização da calha do rio Tietê com vistas ao controle das enchentes, onde estavam previstas obras de aprofundamento da calha do rio e urbanização das margens. Um grande número de capivaras precisou ser retirado das margens e levado para o Parque Ecológico do Tietê, localizado no extremo Leste da cidade. Mesmo com todos esses cuidados, as capivaras fugiam do Parque e voltavam a se aventurar ao longo da calha do Tietê. Essa intensa corrente migratória atravessou boa parte da mancha urbana e atingiu a bacia hidrográfica do rio Pinheiros, na Zona Sul da cidade. Atualmente, bandos de capivara podem ser vistos ao longo da Marginal do rio Pinheiros.  

As margens do rio Pinheiros, que continuam cobertas por vegetação, acabaram transformadas numa espécie de “paraíso das capivaras”, onde podem ser vistas às centenas (vide foto). Uma ciclovia com mais de 20 km de extensão, que foi implantada ao longo das margens do rio, ajudou a transformar as capivaras em mais uma das atrações turísticas da cidade. As cabeceiras do rio Pinheiros também abrigam as represas Billings e Guarapiranga que, apesar de muito maltratadas pelo crescimento desordenado das cidades, ainda apresentam muitas áreas verdes e trechos com águas de boa qualidade, que também passaram a atrair esses animais. As capivaras retomaram pouco a pouco seus antigos domínios. 

Apesar das boas condições de vida e do bom relacionamento com os visitantes, as capivaras enfrentam alguns problemas. As margens dos rios Tietê e Pinheiros são cercadas por importantes vias expressas – as famosas Marginais; de vez em quando, um ou outro animal invade alguma das pistas da Marginal e acaba morrendo atropelado. Em vários trechos das margens também existem trilhos das linhas de trens urbanos, onde também já ocorrem muitos atropelamentos de animais. Outro risco são alguns moradores das muitas “comunidades” que existem ao longo das Marginais – há notícias de muitas capivaras que foram capturadas e transformadas em ingredientes de ensopados e churrascos

Os casos de febre maculosa que têm surgido em algumas regiões do Brasil também trazem seus riscos para as capivaras “paulistanas”. São Paulo tem uma população de mais de 11 milhões de habitantes e, caso surja algum surto da doença na cidade, é quase certo que muitos dedos serão apontados para esses animais. Numa situação dessas, não seria muito difícil que alguma autoridade ordenasse o abate dos animais. 

Como se vê, a vida de uma capivara “paulistana” não é nada fácil… 

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