Falar de tragédias provocadas pelas chuvas, infelizmente, é coisa frequente aqui no blog ano após ano. Depois do rompimento de uma barragem de armazenamento de água há poucas semanas atrás na região Nordeste do Estado da Bahia, as fortes chuvas agora estão castigando a faixa litorânea Leste da Região Nordeste. Uma das regiões mais castigadas vem sendo a Região Metropolitana do Recife, onde já se registraram 12 mortes. Vamos falar um pouco sobre isso hoje.
Há cerca de 20 dias atrás, minha irmã organizou um jantar em sua casa para receber alguns dos nossos primos que vemos muito raramente. Entre os presentes estava uma prima que mora na Holanda há muitos anos; ela estava acompanhada da filha, que tem cerca de 8 anos, e do marido, um pernambucano da Cidade do Recife, que mora em Amsterdam desde criança. Enquanto conversávamos, esse “primo” fez uma pergunta sobre a sua cidade natal que, bem pôr acaso, eu conheço muito bem. Há alguns anos atrás, eu publiquei uma extensa monografia, onde mostro os impactos negativos da cultura da cana de açúcar e da criação de bois no trecho nordestino da Mata Atlântica e da Caatinga – o Estado de Pernambuco está bem no centro de todos esses problemas.
Em umas duas horas de conversa, falei desde a chegada de Duarte Coelho, o primeiro donatário da Capitânia, da cana e do início do Ciclo do Açúcar, da invasão holandesa e dos grandes feitos de Maurício de Nassau na Suickerland, da destruição do trecho pernambucano da Mata Atlântica, das boiadas do sertão nordestino, entre muitas outras histórias.
Ontem, vi uma postagem desse “primo” numa rede social, com o texto em holandês e com fotos de ruas alagadas – ele e a família foram visitar parentes no Recife e estavam presos numa residência há dois dias, sem energia elétrica e com dificuldades no acesso à rede de telefonia e a internet. Numa postagem recém-publicada, ele informou que as águas estavam baixando e que era hora de ajudar os familiares a fazer uma faxina no condomínio. Repensando cuidadosamente toda a nossa conversa semanas atrás, eu percebi que esqueci de falar das grandes enchentes que assolam a capital pernambucana ano após ano – uma falha imperdoável.
Enchentes catastróficas na cidade do Recife não são novidade para ninguém – o primeiro registro histórico de uma enchente no Capibaribe data do ano de 1632, pouco tempo depois da invasão holandesa. Registros da época informam que as chuvas foram muito fortes, “causando perdas de muitas casas e vivandeiros estabelecidos às margens do Rio Capibaribe”. Anos mais tarde, em 1638, o Conde Maurício de Nassau autoriza a construção da primeira barragem do Rio Capibaribe – o Dique dos Afogados, com o objetivo de proteger a cidade do Recife das constantes enchentes. Há registros históricos de uma infinidade de enchentes na cidade: 1824, 1842, 1854, 1862, 1869, 1914, 1920, 1960, 1966, 1970, 1977, 2004 e 2005 – a lista é muito maior e estou apenas citando alguns casos.
Entre os dias 17 e 18 de julho de 1975, a cidade do Recife viveu a maior catástrofe natural da sua história: o transbordamento do rio Capibaribe atingiu 31 bairros e alagou 80% da superfície da cidade – 350 mil pessoas foram desalojadas de suas casas e, tragicamente, 104 pessoas morreram. As fortes enchentes também atingiram outros 25 municípios da bacia hidrográfica do rio Capibaribe. Esta não foi nem a primeira, nem a última grande enchente do rio Capibaribe, mas sem dúvida é uma das mais trágicas da história. Já se passaram quase 45 anos desde essa grande tragédia e, desgraçadamente, percebemos que a cidade do Recife e toda a sua Região Metropolitana ainda não estão preparadas para conviver com a temporada das chuvas, um fenômeno natural que se repete todos os anos.
Até a noite de ontem, dia 25/07/2019, já haviam sido confirmadas 12 mortes, a grande maioria provocada por deslizamentos de encostas de morros (vide foto). Dessas mortes, 4 ocorreram em Olinda, cidade famosa pelos seus morros e ladeiras. A ocupação irregular das encostas dos morros da cidade está na origem dessas tragédias – sempre que as chuvas começam na região, a população já espera pelo pior. Em outra cidade da Região Metropolitana – Abreu e Lima, as aulas estão suspensas e cerca de 6 mil alunos foram afetados. Os serviços públicos estão muito prejudicados pela falta de funcionários, que não conseguem chegar aos seus locais de trabalho por causa dos alagamentos e paralização dos sistemas de transporte.
Em outra cidade, Vicência, a grande preocupação é a barragem da adutora do Siriji, que atingiu o seu nível máximo e está “sangrando” desde o dia 23/07. O risco de rompimento da estrutura não está descartado e famílias que vivem nas áreas de risco estão sendo removidas para áreas mais seguras sob orientação da Defesa Civil. Em Igarassu, pelo menos 6 casas localizadas em áreas de risco já desabaram. Existem cerca de 100 pessoas abrigadas em escolas municipais da cidade. De acordo com informações da Secretaria de Educação e Esportes de Pernambuco, 155 das 351 escolas da Rede Estadual de Ensino na Região Metropolitana do Recife estão com as atividades suspensas.
A ocupação irregular de encostas de morros e das áreas de várzea é uma triste realidade na maioria das grandes e médias cidades brasileiras. O intenso processo de urbanização vivido pelo país nas últimas décadas não vem sendo acompanhado por políticas públicas para a construção de moradias populares. E sem um ordenamento do crescimento das cidades, explodiram os casos de ocupações irregulares, com favelas e cortiços surgindo nos lugares mais inadequados. Tradicionalmente, os terrenos mais desvalorizados de uma cidade são aqueles localizados nas proximidades dos córregos e áreas de várzeas, lugares sujeitos a alagamentos e enchentes nas épocas das chuvas. As áreas de morros e os terrenos mais acidentados e de difícil acesso também entram nessa lista e, até décadas bem recentes, ainda se encontravam cobertos por vegetação nativa.
Com o crescimento vertiginoso das cidades nas últimas décadas, essas áreas passaram a ser intensamente ocupadas, seja a partir da invasão de áreas públicas e privadas por favelas, seja pela formação de loteamentos irregulares, onde os terrenos eram vendidos a “preços” populares e parcelados a “perder de vista”. As precárias condições técnicas desses terrenos para a construção de moradias, que vão da declividade excessiva e baixa resistência dos solos até as dificuldades de drenagem nas áreas excessivamente planas, foram grandemente pioradas pelas construções.
A supressão de remanescentes florestais e o corte dos terrenos nas encostas de morros para a construção de casas está na origem da maioria dos desmoronamentos que assistimos na época das chuvas. Quando os solos desses morros ficam saturados por água, tem início processos de escorregamentos, levando grandes volumes de lama, pedras e construções “morro abaixo”, soterrando construções localizadas nas partes mais baixas. Nos terrenos planos das antigas áreas de várzea, são as enchentes que provocam as grandes tragédias. Sem espaço na calha dos córregos e rios, as águas das chuvas invadem as ruas e as casas sem pedir licença, causando todos os tipos de problemas para as populações pobres que, sem outras opções, passaram a viver nesses locais.
Na Região Metropolitana do Recife, todos esses problemas são agravados por uma longa história de degradação ambiental – desde o início da colonização da região, a partir de década de 1530, houve uma intensa derrubada da cobertura vegetal original, a Mata Atlântica, e um intenso processo de assoreamento dos corpos d’água. Sem a vegetação para proteger os solos e com os canais naturais de drenagem completamente assoreados, temos a receita perfeita para as grandes enchentes e os desmoronamentos de encostas de morros.
E mais uma vez, os cerca de 4 milhões de pernambucanos que vivem nessa região ficam sujeitos às enchentes, aos riscos de soterramento, às doenças de veiculação hídrica e sem saber a quem recorrer.
[…] AS CHUVAS, OS DESLIZ… em A VÁRZEA E AS ENCHENTES […]
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