A Floresta Amazônica aparenta, pelo menos para os que são de fora, ser uma região de águas abundantes e infinitas. Eu morei por quase dois anos na região, quando trabalhei nas obras de construção da rede coletora de esgotos de Porto Velho – Rondônia, e aprendi a olhar com mais cuidado para essa questão. Deixem-me explicar:
A cidade de Porto Velho tem aproximadamente 400 mil habitantes e, por mais incrível que possa parecer, enfrenta sérios problemas de falta de água. Não há exatamente falta de água na região – o rio Madeira é um dos maiores afluentes do rio Amazonas, com uma extensão total de 3.250 km. Os problemas estão concentrados na produção e na distribuição de água tratada para a população. As redes do sistema de abastecimento de água da empresa de saneamento local, a CAERD – Companhia de Águas e Esgotos de Rondônia, atendem apenas 50% da população – quem não está ligado à rede pública de abastecimento precisará depender de poços ou cacimbas, escavados nos seus quintais. É aí que, literalmente, mora o problema.
O clima amazônico é dividido em apenas duas estações: um período quente e chuvoso e outro mais quente ainda e seco. O solo da Floresta Amazônica se comporta como uma gigantesca esponja, provavelmente a maior do mundo, que absorve imensos volumes de água no período das fortes chuvas; essa água é liberada gradativamente durante o período da seca, alimentando os igarapés e os rios da grande bacia hidrográfica da Amazônia; uma pequena quantidade da água de alguns rios, como o próprio Madeira, tem origem no derretimento de geleiras ou glaciares da Cordilheira dos Andes. Assim que a temporada das chuvas se encerra, o nível do lençol freático está bem próximo da superfície do solo – se você escavar 10 ou 20 cm, encontrará água. Conforme o período da seca vai evoluindo, o nível do lençol freático se reduz dramaticamente – na região de Porto Velho ele chega a rebaixar em até 50 metros. É justamente neste período de forte baixa do lençol freático que a população começa a sofrer com a falta de água – os poços, que normalmente tem uma profundidade de uns poucos metros, secam completamente. Vive-se uma verdadeira “seca verde”: matas verdejantes, rios e igarapés com baixos volumes de água e poços secos – algo surreal se comparado às fortes secas que assolam o semiárido brasileiro.
O Bioma Amazônia, muito mais do qualquer outro, é altamente dependente da relação água – solo – floresta: por menor que seja uma alteração em qualquer um dos componentes do “tripé”, o sistema todo passa a apresentar alterações e/ou distorções. A derrubada de trechos de matas para a implantação de projetos agropecuários no último meio século já começa a apresentar suas consequências em algumas regiões – o rio Acre, no Estado homônimo, é um exemplo.
De todos os Estados que compõem a nossa República Federativa, o Acre é o mais novo e com uma história das mais atribuladas. Até o início do século XX, o território do Acre fazia parte da Bolívia; porém, desde a década de 1870, a população da região era formada basicamente por seringueiros brasileiros de origem nordestina, que avançaram sobre o território em busca das seringueiras, a famosa Hevea brasiliensis, e o seu cobiçado látex (vide foto). Todos vocês devem se lembrar das aulas de história nos tempos do ensino fundamental e do famoso Ciclo da Borracha. A situação fundiária do território e da população brasileira só foi resolvida em 1903, com a assinatura do Tratado de Petrópolis – o Brasil ficaria com a posse do território e em troca construiria uma ferrovia, a Madeira-Mamoré, que permitiria o escoamento da produção do látex boliviano através da navegação fluvial pelos rios da Bacia Amazônica. A negociação também incluiu a transferência de terras do Estado de Mato Grosso para a Bolívia e o pagamento de uma indenização em dinheiro no valor de 2 milhões de libras esterlinas. Cabe aqui uma rápida explicação: o rio Madeira nasce na Bolívia, onde é chamado de rio Beni: o trecho entre o rio Mamoré, na divisa entre o Brasil e a Bolívia, e Porto Velho, em Rondônia, possui inúmeras cachoeiras e não é navegável – a construção da ferrovia permitiria aos bolivianos resolver este problema de logística.
O rio Acre nasce no Peru e atravessa todo o território do Estado do Acre, seguindo por um trecho do Estado do Amazonas até desaguar no rio Purus, numa extensão total de 1.190 km. O rio Acre foi, durante décadas, o caminho natural da colonização do território e de escoamento da produção local, especialmente do látex. Diversas cidades do Estado são atravessadas pelo rio Acre e dependem das suas águas para o abastecimento de suas populações: Rio Branco, Porto Acre, Senador Giomard, Brasileia e Assis Brasil, entre outras. Depois da abertura e posterior asfaltamento da rodovia federal BR 317 entre as cidades de Boca do Acre, no Estado do Amazonas, e Assis Brasil, no Acre, a navegação do rio Acre perdeu relevância diante do transporte rodoviário.
O Ciclo da Borracha no Acre teve seu apogeu entre as décadas de 1870 e 1910, quando o produto brasileiro passou a perder mercado para a produção dos seringais ingleses plantados na Ásia (relembrando – sementes de seringueira foram contrabandeadas e florestas artificiais foram plantadas no Sudeste asiático). Durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), houve um breve esforço de recuperação da produção local de látex com a chegada dos famosos “Soldados da Borracha”. Com o fim do esforço de guerra, tanto o projeto de produção quanto os soldados foram esquecidos à própria sorte nos confins da Floresta Amazônica. Essa população esquecida e com uma densidade populacional relativamente alta para os padrões amazônicos, passou a viver de pequenos roçados de subsistência e da criação de pequenos rebanhos bovinos. Com o início do período dos Governos Militares em meados da década de 1960, teve início um forte movimento de ocupação dos vazios populacionais do imenso território brasileiro, especialmente na região da Floresta Amazônica – os militares temiam a “Internacionalização da Amazônia”, um suposto projeto liderado pelos Estados Unidos, onde o território da grande floresta seria dividido entre as grandes potencias mundiais. Teve início então um forte estímulo à migração de colonizadores para a região – um famoso slogan da época que me lembro bem dizia que era “uma terra sem homens para homens sem terra”. Milhares de famílias, especialmente da região Sul do Brasil, passaram a ser contempladas com terras na região, com destaque para os Estados de Mato Grosso (depois dividido em Mato Grosso e Mato Grosso do Sul), Rondônia, Acre e Pará. Foi iniciada a construção da Transamazônica, a rodovia da “integração nacional”, além de outras rodovias e aeroportos, integrando a Amazônia ao resto do país.
O intenso desmatamento e implantação de projetos agrícolas e de pecuária em todo o Estado do Acre, mais do que em qualquer outra região da Amazônia, começou a apresentar a “fatura” da conta ainda em 1970: o rio Acre começou a apresentar reduções sistemáticas no seu nível; algumas projeções indicam que, em 2025, o nível do rio Acre não vai passar de 0,5 metro, levando inúmeras cidades ao colapso no abastecimento. Nos últimos anos, o rio Acre já vem apresentando vazões baixíssimas nos períodos de seca, o que tem causado inúmeros problemas para o abastecimento das cidades.
No próximo post vamos detalhar a situação do rio Acre e mostrar os desafios para o abastecimento das populações.
Olá boa noite como tem passado? Muita informação importante esse blog irmao Fernando.parabens!. Um forte abraço!
Cláudia
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[…] naturais para navegação na maior parte do ano – nos últimos anos, porém, vem apresentando secas bem acima da média, o que só reforça a manutenção de uma alternativa de transportes por […]
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