DIÁSPORA CAIÇARA, OU LEMBRANDO DAS RAÍZES DA TRAGÉDIA NO LITORAL NORTE DE SÃO PAULO 

Todos devem estar acompanhando o desenrolar das buscas e o trabalho de atendimento às vítimas das fortes chuvas que devastaram bairros inteiros em cidades do Litoral Norte do Estado de São Paulo. 

Os números oficiais confirmam um total de 46 mortes, sendo 45 em São Sebastião, o município mais fortemente atingido, e 1 em Ubatuba. Os bombeiros trabalham para localizar entre 30 e 40 pessoas desaparecidas. Existem 1.730 desalojados e 766 desabrigados na região. 

Além dos incansáveis esforços no atendimento às vítimas, também estão sendo feitos importantes trabalhos para a recuperação da infraestrutura destruída e/ou danificada pelas chuvas, especialmente a reabertura das vias de acesso aos bairros mais distantes e também as rodovias. 

A mais importante dessas rodovias é o trecho local da BR-101, mais conhecida como Rodovia Rio-Santos. A BR-101 é uma das mais importantes rodovias do país, com uma extensão total de 4.650 km. Ela começa no município de Touros, no Rio Grande do Norte, e acompanha a faixa litorânea até São José do Norte, no Rio Grande do Sul. 

Essa rodovia foi construída durante as décadas de 1950 e 1960, onde se aproveitaram diversos trechos de estradas já existentes. Dentro do território do Estado de São Paulo e também no Sul do Estado do Rio de Janeiro, as obras de construção da BR-101 tiveram um importante papel no deslocamento de antigas populações caiçaras – grande parte das vítimas das chuvas no Litoral Norte de São Paulo descendem dessas populações. 

Antes da chegada dos portugueses no Brasil, todo o litoral do país era ocupado por diferentes tribos indígenas como os Tupis, os Tamoios, os Tabajaras, os Caetés, os temidos Botocudos, entre outros. Muitos desses povos eram inimigos ferrenhos. 

Após o chamado Descobrimento do Brasil em 1500, e início da colonização, muitas desses povos acabaram se aliando aos portugueses, tendo colaborado inicialmente com a exploração do pau-brasil e início do plantio da cana-de-açúcar. O povo brasileiro, lembrando aqui da chamada Matriz Tupi de Darcy Ribeiro, começou a surgir a partir da miscigenação de brancos europeus com mulheres indígenas. 

Entre a região central do litoral do Estado do Rio de Janeiro e o litoral do Paraná, essa miscigenação criou os caiçaras, um brasileiro típico da faixa litorânea da Região Sudeste e de parte do Sul. Com o passar do tempo, esse grupo passou a incorporar também negros, especialmente quilombolas, fugitivos das antigas fazendas de cana e de café. 

Isolados entre o mar e as serras, esse grupo desenvolveu uma cultura e costumes próprios. Vivendo da pesca e de pequenos roçados, esse grupo manteve vivo costumes e crenças religiosas dos tempos iniciais da colonização, além de preservar um português arcaico repleto de palavras indígenas. 

Essa verdadeira “cápsula do tempo” em que os caiçaras viveram por mais de quatro séculos foi quebrada no final da década de 1960, época em que começaram os trabalhos de construção da Rodovia Rio-Santos. 

Um dos primeiros trabalhos a serem feitos para a construção de uma rodovia é a desapropriação da chamada faixa de domínio da estrada. Essa faixa inclui a área onde a rodovia será construída, além de faixas ao longo das margens das pistas. 

O trecho do Litoral Sul do Estado do Rio de Janeiro e Norte de São Paulo tem características muito particulares. A Serra do Mar, no trecho paulista, e a Serra da Bocaina, no trecho fluminense, praticamente se encontram com a faixa de areia. Os caiçaras, literalmente, sempre viveram espremidos entre o mar e as montanhas. 

Para liberar a faixa de terras para a rodovia, grande parte das vilas dessas populações tiveram de ser desapropriadas. Sem nos alongarmos muito nos métodos que foram usados pelas autoridades para conseguir essa liberação, podemos afirmar que os caiçaras saíram com um enorme prejuízo. 

Sem ter uma noção exata do valor de suas terras, essas pessoas acabaram aceitando valores irrisórios – há relatos de moradores que simplesmente trocaram suas terras por objetos comuns como ferramentas e até botas. Expulsos da beira do mar, essas populações buscaram refúgio nas encostas das serras, dando origem a diversos dos bairros devastados pelas chuvas dos últimos dias. 

A abertura da Rodovia Rio-Santos criou um segundo fenômeno nessa faixa litorânea – uma forte especulação imobiliária. A grande beleza cênica entre o mar e as montanhas deu ao lugar o nome de Costa Verde. Essa faixa de litoral engloba os municípios de Mangaratiba, Angra dos Reis, Itaguaí, Parati, todos no Estado do Rio de Janeiro, e Ubatuba, Caraguatatuba, São Sebastião e Ilhabela, no Estado de São Paulo. 

As vilas de pescadores caiçaras que conseguiram sobreviver ao processo de construção da Rodovia Rio-Santos agora passaram a conviver com o cerco de corretores de imóveis e especuladores de terras. Foram muitas as promessas de uma vida melhor com “dinheiro no bolso”. Não foram poucas as vilas tradicionais que simplesmente desapareceram do mapa nesse processo. 

A expulsão dos caiçaras da beira do mar, uma história que não é muito conhecida da maioria da população e que eu costumo chamar de diáspora em referência ao processo de expulsão e dispersão dos judeus no ano 70 pelas tropas romanas, foi muito além de uma mudança de endereço. Sem ter acesso ao mar, todos os hábitos de vida e de trabalho mudaram para sempre. 

Morando em casas improvisadas nas perigosas encostas das serras, essas populações acabaram transformadas em empregados das mansões e dos apartamentos de fins de semana e de férias dos “endinheirados de fora. Os orgulhosos pescadores de outrora viraram caseiros, porteiros, jardineiros, faxineiros, vigias, cozinheiros e pedreiros, entre outros tipos de trabalhos braçais. 

Sem conseguir prosperar economicamente e mudar para áreas com terras melhores, essas comunidades caiçaras não tiveram outra opção senão a de avançar continua e perigosamente encostas de serras acima. Imigrantes pobres vindos de outros regiões do país também passaram a se refugiar e a construir suas casas nessas regiões de encostas. 

As fortes chuvas e os deslizamentos de mais essa “tragédia anunciada” também atingiram casas e comércios nas áreas mais nobres das cidades. Entretanto, quem mais sofreu e está sofrendo com a tragédia são os pobres das encostas dos morros – em sua grande maioria descendentes dos antigos caiçaras. 

O resgate e o atendimento a essas populações, como se vê, precisa ser bem mais profundo do que todos nós imaginamos. 

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