
Em nossa última postagem falamos do “súbito” desaparecimento do Lago Sawa, um pequeno e famoso lago de águas salgadas no Sul do Iraque. Com águas consideradas medicinais e ricas em minerais como sódio, potássio, cálcio, magnésio, enxofre, cloro e carbonatos, esse lago costumava atrair verdadeiras multidões.
Toda a região da antiga Mesopotâmia, uma grande extensão de terrenos alagáveis entre os rios Tigre e Eufrates, vem sofrendo com a falta de chuvas e com a forte seca nos últimos anos. Parte da culpa pelo desaparecimento do Lago Dawa pode ser creditado a esse fenômeno.
Entretanto, a questão dos recursos hídricos nessa antiga e importante região vai muito além disso. Uma verdadeira guerra pela posse das águas dos grandes rios da Mesopotâmia vem se desenrolando há vários anos e o enfraquecido Iraque está sendo o maior perdedor até o momento.
De acordo com a tradição judaico-cristã a que nós ocidentais estamos mais acostumados, logo depois de criar o homem e a mulher, Deus fez um “paraíso na terra” para que eles pudessem habitar: o Jardim do Éden. E a descrição dos livros sagrados dessas religiões deixa muito clara a localização desse paraíso: uma terra entre as águas dos rios Tigre e Eufrates.
Nos séculos seguintes, essa região passou a ser conhecida no Ocidente com o nome de Mesopotâmia, palavra composta de origem grega que significa, literalmente, “terra entre rios“.
Segundo evidências arqueológicas, os primeiros grupos humanos “civilizados” ocuparam essa região por volta do 7° milênio a.C. As linhas de pesquisa apontam que a agricultura em larga escala começou a ser desenvolvida nas terras férteis do Sul a partir do 5° milênio a.C., inclusive com o uso de sistemas de irrigação.
Com a fartura de água oferecida pelos rios Tigre e Eufrates, a Mesopotâmia rapidamente se transformou num dos celeiros do mundo antigo, recebendo, em conjunto com o Vale do rio Nilo, o nome de Crescente Fértil. Sucessivas civilizações floresceram nessas terras: sumérios, acadianos, caldeus, babilônicos e assírios. Grandes impérios como o dos medos, dos persas e os antigos gregos, entre outros, não pouparam esforços para conquistar a região. A Mesopotâmia sempre foi uma região rica, disputada e instável.
A maior parte da Mesopotâmia fica dentro do território onde encontramos hoje o Iraque. A bacia hidrográfica dos rios Tigre e Eufrates ocupa uma área bem maior, englobando territórios da Síria, da Turquia e do Irã. As nascentes dos rios formadores da bacia hidrográfica ficam em regiões montanhosas desses dois últimos países.
O Iraque, como deve ser do conhecimento de todos, vive um caos político há décadas. O país fez parte do Império Otomano até 1919, quando então passou para a administração do Império Britânico. Em 1932, o Iraque se tornou “independente” e experimentou diversos regimes políticos: monarquia, presidencialismo e um sem número de ditaduras.
O último “grande líder do país”, um jeito irônico de citar um ditador, foi Saddam Hussein, que governou entre 1979 e 2003, ano em que foi retirado do poder por uma coalisão militar de diversos países liderados pelos Estados Unidos. Desde então, diversos Governos vêm tentando administrar o país sem maiores sucessos.
O desgoverno no Iraque e também na Síria, país que convive há mais de 10 anos com uma sangrenta guerra civil, abriu espaço para que os demais países formadores da grande bacia hidrográfica dos rios Tigre e Eufrates desenvolvessem seus próprios projetos de aproveitamento das águas sem que precisassem dar maiores satisfações aos demais países.
Aqui é importante lembrar que as águas de um rio ou de uma grande bacia hidrográfica são um bem comum de todas as populações que vivem em suas margens ou áreas da bacia hidrográfica. O aproveitamento das águas por um grupo ou por um país deve sempre respeitar os interesses dos demais grupos e/ou países.
É bem verdade que os interesses de alguns costumam desrespeitar os interesses dos demais, como é o caso do Rio Nilo. Interesses coloniais do Reino Unido estabeleceram, ainda na década de 1950, que o Egito e o Sudão teriam direito a 80% das águas do rio Nilo.
Os demais países da bacia hidrográfica – Etiópia, Uganda, Tanzânia, Quênia, República Democrática do Congo, Burundi e Ruanda foram obrigados a se contentar com os 20% restantes. Essa situação causa enormes descontentamentos e há, inclusive, risco da disputa pelas águas se transformar em um conflito armado num futuro não muito distante.
Usando como desculpa os problemas internos do Iraque e também da Síria, a Turquia e o Irã passaram a construir diversas represas em importantes rios formadores da bacia hidrográfica com vistas ao aproveitamento das águas para usos agrícolas, para o abastecimento de cidade e também para a geração de energia elétrica.
Essas represas têm provocado uma redução sistemática do volume dos caudais desses rios, o que está criando enormes problemas para as populações, especialmente no baixo curso da bacia hidrográfica no Sul do Iraque e parte do Sudoeste do Irã, uma área úmida que ocupava aproximadamente 300 mil km².
Para permitir o aumento da produção agrícola no Iraque, um país que tem grande parte do seu território formado por solos desérticos, o Governo iniciou um grande programa de dragagem dessas áreas para a formação de terrenos agrícolas na década de 1970, o que reduziu as antigas paisagens naturais para cerca de 10% da área original.
Esses pântanos remanescentes vinham abrigando dezenas de pequenas vilas, onde as populações se dedicavam à criação de búfalos. A redução drástica do volume de águas que chega até essa região provocou a morte de milhares de búfalos e o deslocamento de grande parte dos habitantes nos últimos anos.
A redução do volume de águas também está impactando a agricultura irrigada da região, que definha ano após ano. E, como sempre acontece em regiões deltaicas e de foz de rios junto ao oceano, a redução dos caudais de água doce provocam o avanço das águas salgadas do mar e a salinização dos solos, aumentando ainda mais o tamanho do problema.
Na falta de Governos com forte representatividade tanto no Iraque quanto na Síria, caberia a organismos internacionais como a ONU – Organização das Nações Unidas, e seus diversos órgãos associados, uma intervenção mais forte nessa questão.
Do jeito que as coisas andam, os cursos médio e baixo dos rios Tigre e Eufrates vão se transformas em leitos secos dentro de bem pouco tempo.
[…] O DESAPARECIMENTO DAS ÁREAS PANTANOSAS DO SUL DO IRAQUE […]
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