Um dos segredos para o sucesso de muitas cidades e regiões industrializadas foram as vilas operárias. Na cidade de São Paulo e vizinhanças ainda restam alguns vestígios de importantes vilas que foram construídas por grandes empresas para a moradia de seus funcionários.
Com o advento do café no Estado de São Paulo a partir de meados do século XIX, passou a existir a necessidade de atração de grandes contingentes de mão de obra para o trabalho nas lavouras. Naqueles tempos, o tradicional uso de mão de obra de escravos africanos já estava em decadência (havia a proibição do tráfico de escravos desde a África, a Lei dos Sexagenários, a Lei do Ventre Livre, entre outras) e os grandes fazendeiros paulistas passaram a se valer do uso de imigrantes livres assalariados, principalmente vindos da Itália. Entre esses imigrantes chegavam diversos técnicos especializados em trabalhos em indústrias.
O pulo do gato das nascentes indústrias paulistas foi o de conseguir identificar e empregar essa mão de obra qualificada. As diversas vilas operárias que já existiam recebiam esses imigrantes e suas famílias. As indústrias ocupavam uma “área central” de uma determinada região e a vila operária se espalhava ao seu redor. Depois foram surgindo as escolas, os comércios, os prestadores de serviço e até as igrejas dedicadas ao conforto espiritual da comunidade que ali surgiu. Muitas cidades do Estado de São Paulo nasceram assim.
No caso dos engenhos de cana do Nordeste Açucareiro do Brasil, que viveram o seu período áureo entre meados dos séculos XVI e XVIII, o quadro era praticamente o mesmo – o engenho era o centro da vida de uma comunidade. Essa estrutura produtiva e social era um resquício do antigo sistema feudal europeu, onde um nobre vivia num grande castelo, cercado por sua corte e por gente do clero. Ao redor do castelo, os servos trabalhavam as terras e realizavam todos os tipos de serviços para manter a nobreza e o clero. A versão tropical desse sistema trocou o castelo pela casa-grande (vide imagem) e os servos pelos escravos trazidos da África – a essência do sistema, entretanto, era a mesma.
Conforme comentamos em uma postagem anterior, naus de traficantes de pau-brasil e contrabandistas de outras nações europeias frequentaram as costas brasileiras ao longo das primeiras décadas após o descobrimento oficial da terra por Portugal. Fazendo amizade com as nações indígenas, essa gente conseguia carregar embarcações com grandes volumes de toras de madeira, peles de animais, algodão, cera, animais como pequenos macacos e papagaios, entre outras mercadorias que davam grandes lucros nos mercados da Europa.
A partir de 1532, a Coroa de Portugal se viu na situação de dar um basta nessa estrutura, sob pena de ver nações rivais se apossando de grandes quinhões de suas terras. Sem dinheiro para levar a cabo a colonização, El-Rei e sua corte criaram o sistema que ficaria conhecido como as Capitanias Hereditárias, uma espécie de “privatização da colonização”.
Quem se predispusesse a abraçar a causa da colonização, receberia vantagens consideráveis: grandes extensões de terra – as Capitanias (a maioria com área superior à de Portugal), além de poderes soberanos para governar tais áreas e explorar suas riquezas de forma ilimitada. Mesmo com todas estas vantagens, somente doze indivíduos de pequena expressão social e econômica se apresentaram para assumir a “sagrada missão”.
El-Rei conservaria apenas direitos de suserania, semelhantes aos que vigoravam na Europa há época do sistema feudal. Em compensação, estes Donatários das Capitanias arcariam com os custos da empreitada. Assemelhando-se ainda mais ao sistema feudal, a posse e os títulos destas Capitanias seriam hereditários. Eles teriam jurisdição civil e criminal sobre todos os cidadãos livres e escravos de suas terras, com penalidades que iam, conforme o caso e a classe social do acusado (rico no Brasil não vai para a cadeia desde muito antes do que você imaginava), do pagamento de multa, degredação ou até mesmo a pena de morte.
Em caso de crime de heresia, traição ou sodomia, o acusado poderia ser entregue ao poder eclesiástico e as penalidades poderiam ir até a pena de morte, qualquer que fosse a qualidade do réu. Nesses casos havia o direito a apelação ou agravo (somente se a pena não fosse capital). Os Donatários tinham autonomia para fundar vilas ao longo da costa e dos rios navegáveis e também em ilhas adjacentes até uma distância de 150 quilômetros da costa. Também era o Donatário o responsável pela nomeação de ouvidores, tabeliães do serviço público e judiciário, além de distribuir a seu critério as terras de sesmarias (exceto à própria mulher ou ao filho herdeiro – nosso famoso nepotismo).
Somente dois dos Donatários resolveram assumir pessoalmente a tarefa de administrar suas Capitanias – Duarte Coelho, da Capitania de Pernambuco, e Martim Afonso de Sousa, da Capitania de São Vicente, não por acaso as duas Capitanias que obtiveram o maior sucesso no início da colonização do Brasil. Todos os demais donatários preferiram continuar vivendo no conforto de suas quintas e palácios em Portugal, terceirizando o trabalho pesado e árduo para funcionários, grande parte de origem humilde. Essa foi a origem de muitos dos senhores de engenho do Nordeste Açucareiro e de muitas “linhagens” de famílias nobres do Brasil.
Um detalhe importante dessa “delegação” de responsabilidades – os escolhidos pelos Donatários para assumir o comando das Capitanias Hereditárias recebiam carta branca para fazer tudo o que fosse necessário em prol de uma meta de produção de açúcar, o que, “ao fim e ao cabo” era o principal objetivo da colonização. Os grandes lucros da operação compensariam, e muito, os maus tratos e a morte de pagãos infiéis, falando aqui dos indígenas e dos escravos africanos, e também a destruição das matas e águas nas terras além-mar, como o que acabou ocorrendo com o trecho nordestino da Mata Atlântica.
A moenda de cana era o coração do engenho. Em nossos tempos atuais, onde as grandes indústrias dispõem de máquinas de usinagem computadorizadas e de robôs inteligentes para fazer os trabalhos de montagem de produtos, é muito difícil imaginar as dificuldades de construção das engrenagens das moendas em pleno século XVI. Eram poucas as fundições com capacidade para produzir essas peças e quem dispunha da tecnologia cobrava muito caro pela venda dos produtos. Banqueiros, principalmente dos Países Baixos, grandes comerciantes e até mesmo gente do Clero, financiavam a compra dos equipamentos, recebendo como garantia a promessa de receber volumes de açúcar no futuro.
Ao redor do engenho eram construídos os depósitos para armazenar as canas colhidas; a casa de purga, onde o melaço era cozido e colocado em formas para secar e decantar, as oficinas onde eram produzidas as caixas de madeira para a embalagem e transporte do açúcar, além de estábulos para os animais de tração e galpões para as ferramentas usadas na agricultura.
O grande destaque das propriedades era a casa-grande, onde vivia o senhor das terras e sua família. A exemplo dos castelos dos antigos senhores feudais, essas casas tinham construções imponentes, sempre elevadas em relação ao solo, com muitas janelas e áreas avarandadas. Aos fundos ficava a senzala, uma construção muito mais precária e que servia como uma espécie de “depósito” para guardar a ferros os escravos durante a noite.
Mais afastadas do núcleo central do engenho se encontravam as casas do corpo “gerencial” – os feitores de escravos, capatazes, carpinteiros e técnicos especializados na construção e operação das moendas, entre outros funcionários administrativos como contadores e tabeliães. No centro dessas pequenas vilas existia sempre uma capela. Muitos desses núcleos, como as vilas operárias que citamos no começo, formariam o embrião de muitas cidades nordestinas. A vida de muitas gerações de brasileiros se desenrolou inteiramente entre os engenhos e essas pequenas vilas, ilhados num mar de cana de açúcar.
Continuamos na próxima postagem.
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