
Dentro da nossa tradição religiosa judaico-cristã, Deus fez um “paraíso na terra” logo depois de criar o homem e a mulher. Esse lugar foi chamado de Jardim do Éden, onde o Criador proveria moradia e todas as necessidades materiais para a nascente humanidade.
A descrição dos livros sagrados dessas religiões – a bíblia cristã por exemplo, deixa muito clara a localização desse paraíso: uma terra entre as águas dos rios Tigre e Eufrates, dentro do atual território do Iraque. Nos séculos seguintes, essa região passou a ser conhecida no Ocidente com o nome de Mesopotâmia, palavra composta de origem grega que significa, literalmente, “terra entre rios“.
Segundo inúmeras evidências arqueológicas, essa região foi ocupada por volta do 7° milênio a.C. pelos primeiros agrupamentos humanos civilizados. As linhas de pesquisa apontam que a agricultura em larga escala começou a ser desenvolvida nas terras férteis do Sul a partir do 5° milênio a.C., inclusive com o uso de sistemas de irrigação.
Com a fartura de águas oferecidas pelos rios Tigre e Eufrates, a Mesopotâmia rapidamente se transformou num dos celeiros do mundo antigo, recebendo, em conjunto com o Vale do rio Nilo, o nome de Crescente Fértil.
Sucessivas civilizações floresceram nessas terras: sumérios, acadianos, caldeus, babilônicos e assírios. Grandes impérios como o dos medos, dos persas e os antigos gregos, entre outros, não pouparam esforços para conquistar a região. A Mesopotâmia sempre foi uma região rica, disputada e instável.
Nos dias atuais, a outrora rica Mesopotâmia é apenas uma sombra do que foi no passado. Depois de décadas de uma ditadura sanguinária e de uma sucessão de conflitos, primeiro com potências estrangeiras e atualmente entre diferentes grupos em busca do poder, o atual Iraque é o mais completo símbolo da decadência. Na vizinha Síria, a população está convivendo há mais de dez anos com uma sangrenta guerra civil.
Uma das maiores expressões dessa decadência pode ser vista na degradação dos históricos rios Tigre e Eufrates, que compõem uma única bacia hidrográfica e que apresentam águas cada vez mais poluídas e com caudais cada vez mais reduzidos. Além de sofrer com os efeitos do forte calor e de uma grave seca regional, esses rios tem suas águas cada vez mais disputadas pelos países que formam a sua grande bacia hidrográfica: Turquia, Síria e Iraque.
Com aproximadamente 1.900 km de extensão, o rio Tigre tem suas nascentes na região dos Montes Tauro, na Turquia, país que está se aproveitando da guerra civil na Síria e da instabilidade política do Iraque para explorar ao máximo as suas águas.
Além de autorizar a construção de cerca de 150 pequenas barragens e açudes em pequenos afluentes do rio e de ter planos para a construção de outras 1.700 outras estruturas para o armazenamento das águas, a Turquia inaugurou no final de 2021, a polêmica barragem Ilisu (vide foto). Além de ser o maior reservatório de água do rio Tigre, a hidrelétrica instalada na estrutura deverá responder por cerca de 4% de toda a energia elétrica gerada no país.
A grandiosa obra forçou o deslocamento de cerca de 100 mil pessoas, principalmente de etnia curda, que viviam em cerca de 200 aldeias e pequenas cidades. O investimento consumiu o equivalente a 750 milhões de Euros e provocou o alagamento de um trecho de 136 km do rio Tigre e a formação de um lago com 313 km2. A hidrelétrica possui uma capacidade de geração de 1,2 GW.
A situação do rio Eufrates não é muito diferente – a Turquia construiu mais de 20 represas na calha do rio dentro do seu território sem maiores consultas ou preocupações com as necessidades hídricas dos seus vizinhos. O rio Eufrates, que tem um comprimento total de 2.800 km, tem suas nascentes dentro de áreas montanhosas do Leste turco e corre por mais de 1.200 dentro do território do país.
Como consequência direta desse grande aproveitamento das águas no trecho turco da bacia hidrográfica, apenas 1/3 dos caudais dos rios Tigre e Eufrates estão chegando ao território da Síria e do Iraque quando comparada às vazões históricas. Um exemplo prático dos problemas – o trecho outrora caudaloso do rio Tigre na altura da cidade de Bagdá, capital do Iraque, agora pode ser facilmente atravessado a pé com, no máximo, água até a cintura.
A baixa vazão também está comprometendo todo o trecho final da bacia hidrográfica. Os rios Tigre e Eufrates se encontram na altura da cidade de Al Qurna, no Sul do Iraque, formando o canal de Xatalárabe, rio que corre por cerca de 200 km até encontrar sua foz no Golfo Pérsico. Com a redução drástica dos caudais, grande parte do trecho final do rio está sendo salinizado por causa da invasão das águas do oceano.
A disponibilidade de água é agravada pelos grandes desperdícios nos usos na agricultura. Os produtores locais se valem de antigas técnicas de irrigação por alagamento, um dos métodos que mais desperdiçam água devido aos grandes volumes evaporados por causa do forte calor.
A região onde fica localizada a bacia hidrográfica dos rios Tigre e Eufrates possui um clima temperado de deserto, com temperaturas máximas e mínimas extremas. No pico do inverno os termômetros podem chegar próximo a -20° C nas áreas montanhosas e no verão chegam facilmente aos 50° C nos trechos dos desertos, o que nos dá uma ideia das perdas de água por evaporação.
Dentro dos climas desértico e semiárido que predominam na região, as águas dos rios Tigre e Eufrates são, de longe, as mais importantes fontes para o abastecimento de populações, dessedentação de rebanhos e insumo para a produção agrícola. O desequilíbrio no uso por parte da Turquia, a poluição das águas, especialmente no Iraque, e a salinização no baixo curso da bacia hidrográfica ameaçam a sobrevivência de mais de 40 milhões de pessoas.
Todos esses problemas ainda estão sendo agravados pelo aquecimento global. Conforme já tratamos em postagem anterior, estudos feitos pelo Instituto Max Planck de Química e do Centro de Pesquisa do Clima e Atmosfera do Instituto Chipre sugerem que o Oriente Médio, região onde está inserida a bacia hidrográfica dos rios Tigre e Eufrates, e o Mediterrâneo Oriental poderão sofrer um aumento de temperaturas de 5° C ou mais até o final do século.
Ou seja – nas próximas décadas assistiremos uma redução gradativa dos volumes de chuvas e de precipitação de neve nas cadeias montanhosas de toda a região da bacia hidrográfica, o que resultará em caudais ainda menores nas calhas dos rios e disputas cada vez mais ferrenhas pelos direitos de uso da água, inclusive com o uso de forças militares.
E a histórica e ancestral Mesopotâmia, um dos mais antigos berços da civilização humana, poderá ficar inabitável num futuro muito próximo. Quanta ironia!
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O problema dessas sucessivas barragens nem é só o aumento do uso da água: com a maior área alagada, a evaporação aumenta proporcionalmente. Ainda mais em regiões quentes como o oriente médio. É semelhante ao problema enfrentado pelo Velho Chico, onde só a barragem de sobradinho, por ex, evapora por ano volume de água maior que o consumo hídrico de toda a cidade de São Paulo.
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[…] Um exemplo que mostra a fragilidade política e administrativa do Iraque foi a decisão da Turquia de construir diversas represas nos rios Tigre e Eufrates dentro do seu território e sem dar qualquer tipo de satisfação aos iraquianos. Essas obras impactaram, e muito, nesses dois rios que são as principais fontes de água do Iraque. […]
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[…] O SÚBITO DESAPARECIM… em TIGRE E EUFRATES: A AGONIA DE… […]
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