A “DESPREZADA” FLORESTA AMAZÔNICA E O TRATADO DE TORDESILHAS

Foz do rio Amazonas

Nos últimos dias, têm surgido vozes em todos os cantos do mundo gritando a plenos pulmões que “a Amazônia é nossa”, ou que “a Floresta é o pulmão do mundo”, entre outros mantras nessa mesma linha. A razão de tudo isso são as queimadas de verão, grande parte ligada a desmatamentos para ampliação de campos agrícolas e pastagens. Essas queimadas ocorrem tradicionalmente nos meses de seca e vem se repetindo há pelos menos meio século, desde que começaram os esforços do Governo brasileiro para o povoamento das regiões do Cerrado e da Amazônia.

Por mais incrível que possa parecer hoje, a Região da Floresta Amazônica ficou relegada a um segundo plano nos primeiros 350 anos da história do Brasil e, muito pior: até meados do século XVII, nem Portugal nem Espanha mostravam um maior interesse pela gigantesca floresta no coração da América do Sul. Vamos entender essa história: 

A história das navegações e dos descobrimentos no continente americano estão ligadas diretamente ao Tratado de Tordesilhas, assinado entre os Reinos de Portugal e Castela em 1494 com o aval do Papa Alexandre VI. Esse tratado representou um ajuste da Bula Papal Intercoetera, assinada em 1493, que dividia o mundo entre os portugueses e espanhóis a partir de uma linha imaginária, ou meridiano, localizada a 100 léguas a Oeste da costa das Ilhas de Cabo Verde. O Tratado de Tordesilhas deslocou esse meridiano mais para o Oeste, passando a ficar a 370 léguas das Ilhas de Cabo Verde. Todas as terras descobertas a Oeste do Meridiano de Tordesilhas pertenceriam à Castela e as terras descobertas a Leste pertenceriam a Portugal. 

É importante lembrar que a intensa competição entre Portugal e Espanha para o desenvolvimento da navegação e a conquista de novos territórios estava sendo acompanhado pela cúpula da Igreja Católica há muitas décadas. Em 1454, o Papa Nicolau V havia publicado a Bula Romanus Ponfilex, onde estabelecia as normas para a colonização de novos territórios e, especialmente, a conversão dos pagãos que viessem a ser encontrados nessas terras à fé católica. Essa Bula deu forma jurídica e canônica ao capitalismo comercial que surgiria a partir das navegações dos Ibéricos. 

Um dos principais motivos para a assinatura desses Tratados foram os importantes avanços da tecnologia naval entre os portugueses, que davam grande vantagem para o pequeno Reino Ibérico. Com o acúmulo de conhecimentos sobre correntes marinhas, ventos, meteorologia e técnicas para a construção de naus, os portugueses estavam avançando rapidamente sobre o Oceano Atlântico. Um dos grandes feitos dos Lusos teria sido uma expedição comandada por João Vaz Corte Real que, em 1472, teria chegado na Terra Nova, no Leste do Canadá, e depois teria descoberto a foz do rio Hudson, onde fica a atual cidade de Nova York, e também o rio São Lourenço, na fronteira entre os Estados Unidos e Canadá. Essas descobertas, que teriam ocorrido 20 anos antes da chegada da expedição espanhola liderada por Cristóvão Colombo e foram mantidas em sigilo, davam uma larga vantagem nas conquistas territoriais para Portugal

O primeiro comentário a ser feito trata da localização exata do Meridiano de Tordesilhas. No século XV ainda não existiam instrumentos astronômicos que permitissem a localização precisa de um ponto na superfície terrestre, o que hoje é feito com a sobreposição da Latitude e da Longitude. A Latitude, que é o ângulo entre o plano do Equador e os Pólos Norte e Sul, podia ser determinada com razoável precisão há época com instrumentos como o astrolábio. Já a Longitude, que mede a distância ao longo da Linha do Equador a partir do Meridiano de Greenwich, só viria a ser medida com alguma precisão a partir da invenção do cronômetro naval no século XVIII. 

Na localização mais aceita, o Meridiano de Tordesilhas corta o território brasileiro ao Norte, nas proximidades da cidade de Belém do Pará, e ao Sul, nas proximidades de Florianópolis. Mas existem outras opiniões, mais especificamente de Pedro Nunes (1537), cosmógrafo-mor do Reino de Portugal, João Teixeira Albernaz (1631), considerado o mais prolífico cartógrafo português do século XVII, e de José da Costa Miranda (1688), que para muitos era o “único sujeito do Reyno que sabia fazer cartas para marear nos fins do século XVII”. Na opinião desses cartógrafos, todos ligados à corte portuguesa, o Meridiano de Tordesilhas cruzava o nosso território a Oeste da Ilha do Marajó, ao Norte, e ao Sul, passava nas proximidades da cidade de Campo Grande, capital do Estado do Mato Grosso do Sul. 

Essa interpretação, que aumentava a área do território de Portugal na América do Sul, não era compartilhada por cartógrafos ligados à corte de Castela. De acordo com Planisfério de Cantino, uma carta náutica publicada em 1502 por Alberto Cantino, o Meridiano de Tordesilhas cruzava o nosso território ao Norte, na altura da cidade de Fortaleza, no Ceará, e ao Sul na altura da cidade de Campos dos Goytacazes, no Estado do Rio de Janeiro. De acordo com as crônicas de Gonzalo Fernández de Oviedo y Valdés, de 1545, historiador e escritor espanhol, o Meridiano cruzava ao Norte na altura do Delta do Rio Paranaíba, no Piauí, e ao Sul nas proximidades da cidade do Rio de Janeiro. Observem que em todas essas interpretações, a maior parte ou a totalidade da Floresta Amazônica fica dentro do território da Espanha. 

Outro item em favor de Castela se deu pela descoberta do rio Amazonas pelo navegador espanhol Vicente Yañez Pinzón em 1500. A expedição de Pinzón partiu da Espanha em dezembro de 1499 com quatro naus, zarpando de Palos de La Fronteira e rumando primeiro para as Ilhas Canárias, seguindo depois na direção da Ilha de Santiago, no arquipélago de Cabo Verde. No dia 26 de janeiro, essa expedição atingiu um cabo, que recebeu o nome de Santa Maria de la Consolación. De acordo com o historiador brasileiro Adolfo de Varnhagen (1816-1878), esse cabo é a Ponta do Mucuripe, na cidade de Fortaleza, no Ceará. 

Seguindo rumo ao Oeste, a expedição percebeu a certa altura que estava navegando em águas doces e encontrou “uma boca de 15 léguas que saía no mar com grande impacto”. Essa boca era a foz do rio Amazonas (vide foto), e o impacto era um fenômeno que passou a ser conhecido como pororoca. Pinzón batizou o grande rio como Santa Maria de La Mar Dulce. A expedição espanhola chegou a navegar pelas águas do grande rio, onde encontraram uma densa floresta cheia de selvagens. O grande volume de água que chegava na foz fez com que os espanhóis deduzissem que se tratava de uma grande área continental, porém, a expedição não se interessou em fazer maiores descobertas. As naus retornaram ao Oceano Atlântico e seguiram o litoral rumo ao Norte. A descoberta do grande rio se transformou numa mera curiosidade nas páginas do diário de bordo 

No lado português dos territórios recém descobertos no Novo Mundo, descobriu-se que as terras ao longo da faixa litorânea eram de excepcional fertilidade e se prestavam ao cultivo da cana e produção do açúcar, um dos produtos mais valorizados há época. Os portugueses se concentraram nessas áreas e na produção do açúcar por quase três séculos, sem dedicar muita atenção ao resto do seu território. 

Nos territórios de Castela no Novo Mundo, o avanço dos espanhóis permitiu a conquista do Império Asteca no México e o encontro de um fabuloso tesouro na forma de ouro e prata. Anos depois, uma expedição comandada por Francisco Pizarro subjugou o Império Inca no Peru e se apossou de outra gigantesca fortuna constituída de grandes volumes de metais preciosos. Em 1545, os espanhóis descobririam as minas de prata de Potosi, na Bolívia, onde ficariam ocupados pelos próximos 200 anos, sem demonstrar interesse pelas matas e índios da Floresta Amazônica. 

Três expedições exploratórias, duas espanholas e uma luso-brasileiro, mudariam para sempre os rumos de toda a Amazônia. Falaremos dessas expedições a partir da próxima postagem. 

Para saber mais:

A NOSSA AMAZÔNIA

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