Durante algumas poucas décadas, naqueles que foram chamados de Ciclos da Borracha, a Região Amazônica ganhou notoriedade dentro e fora do Brasil. Essa fama, porém, foi efêmera e a Região não tardou a voltar ao esquecimento por parte da maioria da população brasileira. No imaginário popular, a Amazônia continuou sendo sinônimo de mata fechada, grandes rios, índios e animais selvagens.
Até a metade do século XX, a população da Região Amazônica era muito pequena, esparsa e muito mais pobre do que nos dias atuais. A grande concentração de seringueiras em algumas regiões, como no caso do Acre, levou a uma concentração maior de populações. No geral, porém, a maior parte dos rios e matas da grande Floresta permaneciam praticamente inexploradas e formavam grandes vazios no mapa do país.
Ao longo de mais de quatro séculos de história, a maior parte da população brasileira se concentrava em áreas litorâneas com “vista para o mar” ou, para sermos mais precisos, ao longo de uma faixa costeira com talvez 500 km de largura. Uma das poucas grandes cidades que fugia a esta regra era Manaus, que está distante cerca de 1.300 km do Oceano Atlântico, mas que tem à sua frente uma imensidão de águas doces muito parecidas com um mar. Cidades localizadas em pontos mais distantes da costa como Cuiabá e Goiás Velho, sempre sofreram com o isolamento e com as dificuldades de comunicação com o resto do Brasil.
Em grande parte do país, as coisas só começariam a mudar a partir do final do século XIX, quando o Exército Brasileiro passou a desenvolver trabalhos para a instalação de linhas telegráficas e a construir estradas nos confins dos sertões. Um dos nomes de maior destaque desse período foi o militar e sertanista Candido Rondon (1865-1958), que a partir de 1892 começou a trabalhar nas regiões de Goiás, Mato Grosso e Território do Guaporé, mais tarde batizado como Estado de Rondônia em sua homenagem. Os trabalhos pioneiros de Rondon e de sua equipe ajudaram a abrir muitos dos caminhos para o interior do país, uma tarefa monumental, mas que deixou muitos vazios desses sertões ainda a serem descobertos – o Sul da Amazônia era um destes “vazios”.
Em 1943, durante o Governo de Getúlio Vargas e ainda na época dos Soldados da Borracha, foi criada uma expedição que desbravaria uma parte importante dos sertões da região Norte e que abriria as primeiras portas para o contato com inúmeras tribos indígenas isoladas e desconhecidas da Amazônia. Falamos da Expedição Roncador-Xingu, um marco na antropologia e na etnografia brasileira até hoje. A expedição foi gestada num momento onde se vivia a política da “Marcha para o Oeste“, quando o Governo Federal passou a criar incentivos para a migração de colonos e trabalhadores rurais rumo às terras desabitadas do interior do Brasil. E olhem que não estamos falando de nada tão distante assim – a região Oeste do Estado de São Paulo, citando um exemplo, era muito pouco habitada na época e um dos destinos desta ocupação pioneira.
O nome escolhido para chefiar a expedição foi o do Coronel Flaviano de Mattos Vanique, um militar de carreira do tipo “linha dura”, que recrutou um grupo com cerca de quarenta sertanistas do Mato Grosso. O perfil ideal para a escolha destes sertanistas era “quanto mais analfabeto, melhor”. Dentro da mentalidade do Coronel Flaviano, analfabetos trabalhavam mais e não perdiam tempo fazendo perguntas. Esse “perfil” de expedicionário sem educação formal criou uma série de problemas para alguns irmãos paulistas, oriundos da classe média alta e com um alto nível educacional: Orlando, Cláudio e Leonardo Villas-Bôas (vide foto).
Bem vestidos, barbeados e demonstrando modos refinados, os irmãos Villas-Bôas foram prontamente descartados pelo Coronel Flaviano quando tentaram ingressar na Expedição Roncador-Xingu. Obcecados com a ideia de explorar uma das regiões mais distantes e isoladas do Brasil, os Villas-Bôas não desistiram: passados alguns meses da dispensa, eles se reapresentaram barbudos, malvestidos, envergonhados e mostrando um comportamento típico dos matutos dos sertões – foi assim que conseguiram entrar para a tão sonhada Expedição.
Trabalhando inicialmente em atividades braçais, que iam desde os trabalhos em hortas a construções, os Villas-Bôas rapidamente foram ganhando a confiança dos líderes da Expedição e passaram a ocupar postos cada vez mais importantes dentro do grupo. Em 1949, já sob o comando de Orlando Villas-Bôas, o mais velho dos irmãos, a Expedição atingiu o Alto rio Xingu e faz contato com dezessete tribos isoladas da região. Percebendo rapidamente os problemas e as consequências que o choque cultural que seria criado após o encontro entre os “brancos” (a cor tem um significado diferente aqui, o de “civilizado”) e indígenas, Orlando Villas-Bôas propõe uma mudança drástica nos objetivos da Expedição: ao invés de criar núcleos de povoamento para colonos e agricultores, ele decide desenvolver trabalhos para a manutenção da integridade dos territórios e da cultura indígena nas terras do Alto rio Xingu.
As ideias e os trabalhos dos irmãos Villas-Bôas repercutiram fortemente nos meios acadêmicos e políticos do Brasil ao longo dos anos. Em 1961, no Governo do Presidente Jânio Quadros e com o apoio do antropólogo Darcy Ribeiro, que trabalhava na época para o Serviço de Proteção ao Índio, foi criado o Parque Nacional Indígena do Xingu, nome mudado depois para Parque Indígena do Xingu. O Parque foi a primeira área indígena homologada pelo Governo Federal. O Marechal Cândido Mariano da Silva Rondon, falecido em 1958, foi um dos maiores apoiadores do projeto dos irmãos Villas-Bôas para a criação dessa área indígena, apesar de algumas divergências pontuais. Aqui é importante comentar que Rondon era de origem indígena e que foi o mais importante estudioso e registrador das etnias indígenas do Brasil no início do século XX. Esse seu trabalho foi fundamental para a criação do Serviço de Proteção aos Índios em 1910.
A criação do Parque Indígena do Xingu visava tanto a preservação das comunidades e culturas dos povos indígenas, quanto a preservação ambiental de uma extensa área da Amazônia. Localizado no Norte do Estado do Mato Grosso, o Parque é formado por uma área de 27 mil km², numa região de transição entre o Cerrado e a Floresta Amazônica. O rio Xingu, o principal curso d’água que atravessa a área, acabou dando nome ao Parque Indígena. Além do Xingu, o Parque conta com inúmeros dos seus afluentes: Kulene, Tanguro, Kurisevo, Ronuro, Suiá, Miçu, Maritsauá, Auiá Miçu, Uaiá Miçu e Jarina.
O trabalho pioneiro dos irmãos Villas-Bôas na criação do Parque Indígena do Xingu levaria à criação de diversas outras áreas indígenas por toda a Região Amazônica. Apesar dos inúmeros problemas enfrentados nessas áreas, onde se incluem a invasão e os desmatamentos feitos por madeireiros, grileiros e garimpeiros, essas Terras Indígenas balizaram os limites para todo um processo de colonização e povoamento que viria a ser implementado por toda a Amazônia a partir de meados da década de 1960.
Após mais de 24 anos de trabalho, grande parte sob o comando dos irmãos Villas-Bôas, a Expedição Roncador–Xingu resultou na criação de mais de 40 cidades e 16 campos de pouso em regiões longínquas da Amazônia Legal, além é claro da criação do Parque Indígena do Xingu, que atualmente abriga mais de 6 mil índios de 16 etnias diferentes. Também permitiu o mapeamento cartográfico de uma extensa região, retirando um dos grandes vazios do mapa do país e escrevendo um importante capítulo da história da Amazônia.
Para saber mais:
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[…] saga que ajuda a explicar o que eram esses vazios populacionais foi a Expedição Roncador-Xingu, iniciada em 1949, e que ajudou a colocar grande parte da Região Centro-Oeste no mapa do Brasil. […]
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