Nessa sequência de postagens, estamos mostrando algumas histórias da ocupação da Amazônia durante o Ciclo da Borracha que, entre meados do século XIX e o ano de 1920, trouxe prosperidade e muita riqueza para uma pequena elite equatorial. Para centenas de milhares de seringueiros pobres, grande parte arregimentada nas áreas mais miseráveis dos sertões do Nordeste, essa aventura nos confins da Floresta Amazônica resultou em suor, lágrimas e pobreza num “inferno verde”.
Ao contrário do que essas histórias possam sugerir, a saga da exploração do látex não ficou limitada ao trecho brasileiro da Amazônia – essas tragédias se espalharam por toda a Bacia Amazônica; onde houvessem seringueiras, as árvores produtoras do látex, surgiriam seringalistas e seringueiros à suas sombras.
Conforme comentamos em postagens anteriores, a seringueira, cujo nome científico é Hevea brasiliensis, é uma árvore nativa da Amazônia e, não custa lembrar, a grande Floresta se distribui entre Brasil, Bolívia, Peru, Equador, Colômbia, Venezuela, Suriname, Guiana e Guiana Francesa. Como mais de 60% da Floresta Amazônica se encontra em território brasileiro, nosso país teve todas as condições naturais para se tornar o maior produtor mundial de látex. Porém, nossos vizinhos também partilharam, em maior ou menor grau, das riquezas e das tragédias sociais geradas pela exploração, processamento e exportação do látex. No caso da região do rio Putumayo, é impossível falar desses problemas sem lembrar de Julio Araña, um personagem sui generis da história da Amazônia e que era conhecido por seus pares como o “rei do Putumayo“.
O rio Putumayo, que no trecho final dentro do território brasileiro recebe o nome de rio Içá, é um dos grandes afluentes formadores do rio Solimões. O Putumayo nasce nos contrafortes orientais da Cordilheira dos Andes, numa região conhecida como Nudo de Los Pastos, na Colômbia. O rio tem aproximadamente 1.800 km de extensão (algumas fontes falam de 1.650 km) e ao longo do seu curso ele faz a divisa entre a Colômbia e o Equador, e depois entre a Colômbia e o Peru. Os principais rios formadores do Putumayo são Guamúrez, San Miguel e Igara Paraná. O nome Putumayo é de origem quéchua, uma importante língua indígena andina, e significa algo como “rio das vasilhas”, numa referência a uma fruta de casca dura que os indígenas usavam para fazer vasilhames, algo semelhante às nossas cabaças.
O rio Putumayo é navegável em praticamente toda a sua extensão, sendo uma importante via de transportes e comunicação para as populações das regiões Amazônicas do Equador, Peru e Colômbia, além de permitir a comunicação por via fluvial com a Amazônia brasileira. A Cordilheira dos Andes, uma imponente cadeia montanhosa que se estende por toda a face oeste da América do Sul desde a Terra do Fogo até o Norte da Colômbia, é um divisor natural entre as populações que vivem na costa do Oceano Pacífico e aquelas que vivem a Leste da Cordilheira – no nosso caso, as populações da Floresta Amazônica. Para essas regiões ao Leste da Cordilheira dos Andes, a navegação pelos rios da bacia Amazônica é uma importante atividade social e econômica, pois lhes permite uma saída para o Oceano Atlântico, em condições muito superiores às saídas existentes para o Oceano Pacífico em seus respectivos países.
Julio César Araña del Águila, muito provavelmente, é um ilustre desconhecido para a maioria dos leitores – porém, nos áureos tempos do Ciclo da Borracha, o empreendedor e depois político peruano comandou um gigantesco império gomífero, com uma área do tamanho da Bélgica. Em 1907, para que todos tenham uma ideia do tamanho de seu patrimônio, Julio Araña registrou sua empresa em Londres, a Companhia Peruana da Amazônia, onde declarou um patrimônio de 1 milhão de libras esterlinas. A empresa tinha a sua sede em Iquitos, no Peru, e diversas associações com empresas da Europa.
Com o passar dos anos, Julio Araña foi estendendo os seus domínios para toda a região da bacia hidrográfica do rio Putumayo, incorporando seringais na Colômbia e no Equador. Uma das alcunhas “conquistadas” por Julio Araña ao longo dos anos foi a de “el Rey del Putomayo” – ele foi, provavelmente, o maior produtor individual de látex da Amazônia. Por questões de “civilidade”, Araña enviou sua esposa e filhos para viver no Sul da França, onde professores ingleses poderiam proporcionar uma “melhor” educação para os seus herdeiros.
Uma característica da exploração do látex em terras brasileiras, fato que teve enormes repercussões após a publicação dos relatos de Euclides da Cunha durante a Comissão Mista Brasileiro-Peruana de Reconhecimento do Alto Purus, realizada entre 1904 e 1905, foram as observações acerca do regime de semi escravidão imposto aos trabalhadores pelos seringalistas. No caso do Império de Julio Araña, a exploração do látex era feita por indígenas escravizados – a famosa foto que ilustra esta postagem, publicada por um jornal em 1913, mostra alguns dos seus “trabalhadores” indígenas acorrentados.
As péssimas condições de vida nos seringais e as jornadas de trabalho extenuantes para se conseguir atingir as cotas de produção de látex custaram, segundo algumas fontes, a vida de 30 mil indígenas (é possível que o número de mortos tenha sido bem maior). Segundo alguns cálculos feitos por historiadores, isso significa que, para cada jogo de quatro pneus fabricado a partir do látex produzido nos seringais de Julio Arana, um indígena morreu.
Jornais do Peru, da Colômbia e do Equador começaram a receber inúmeras denúncias sobre a tortura e a morte de trabalhadores, estupro sistemático de mulheres indígenas nos seringais e das condições de vida absolutamente insuportáveis nos centros de produção de Julio Araña. Reportagens investigativas se multiplicaram, acompanhadas de editoriais cheios de denúncias e com provas irrefutáveis de tudo o que acontecia dentro do Império de Julio Araña. “Inexplicavelmente”, nenhuma denúncia contra ele ou contra as suas empresas jamais conseguia prosperar dentro no Peru.
Foi somente no final de 1912, depois de intensa pressão internacional, que o Congresso peruano decidiu instalar um Comitê Parlamentar para investir a procedência das acusações contra Julio Araña. Esse comitê teve duração de seis meses – Julio Araña negou ter conhecimento de qualquer uma das acusações e colocou a culpa de eventuais ocorrências em seus funcionários, afirmando inclusive que esses agiram por conta própria, sem que ele fosse consultado. De acordo com declarações registradas, Julio Araña alegou que suas empresas “estavam ajudando a civilizar regiões do interior da Floresta Amazônica“. Por “falta de provas”, o Governo do Peru não processou o empreendedor.
O Governo Britânico tentou abrir processos judiciais internacionais contra Araña, inclusive pressionando o Brasil e os Estados Unidos a colaborar nas causas. Com o início da Primeira Guerra Mundial em 1914, o assunto acabou sendo deixado de lado. As empresas de Julio Araña mantiveram as suas operações até 1920, quando a concorrência com os seringais do Sudeste Asiático inviabilizou a produção do látex na Amazônia.
Julio Araña conseguiu se manter impunemente no mundo dos negócios até 1932, quando conflitos armados entre a Colômbia e o Peru pela disputa de fronteiras fez com que ele perdesse a maior parte de suas terras e acabasse falido. O destino, porém, sorriu mais uma vez para Julio Araña – com o prestígio dos tempos de “el Rey del Putumayo” e de sua enorme popularidade, conseguiu se eleger como senador, vivendo tranquilamente com a “imunidade parlamentar” até sua confortável morte aos 88 anos, em 1952.
Qualquer semelhança com políticos brasileiros na atualidade não é mera coincidência – tratam-se de estruturas políticas e econômicas criadas, desde sempre, em toda a América Latina para proteger e favorecer as classes ricas e poderosas.
Para saber mais:
[…] JULIO ARANÃ: O REI DO LÁTEX NA AMAZÔNIA PERUANA E SEUS MILHARES DE ESCRAVOS INDÍGENAS […]
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Foi m. boa historia reportagem sobre o Látex, mas faltou ao modo de preparar o látex para a aplicação no tecido a ser encauchado, como dizem os ribeirinhos
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