
Ictiofauna, em ecologia e em ciências da pesca, é o conjunto de espécies de peixes, dos menores aos maiores, que existem numa determinada região biogeográfica. Falamos aqui de um trecho de um mar, de um lago ou de um rio ou trecho de rio. A análise dos dados populacionais e a distribuição dessas espécies são ótimos bioindicadores da qualidade ambiental das águas.
O surubim do Jequitinhonha (Steindachneridion amblyurum) é uma das maiores e mais emblemáticas espécies de peixe da bacia hidrográfica do rio e uma das mais ameaçadas. A carne do peixe é muito saborosa e apreciada pelas populações ribeirinhas, qualidades que transformaram a espécie numa das mais valorizadas para os pescadores. Muitas comunidades ribeirinhas viveram por muito tempo da pesca do surubim.
Porém, está ficando cada vez mais difícil encontrar um exemplar do peixe nas águas do rio. A superexploração da espécie e a degradação das águas estão na raiz do desaparecimento do surubim do Jequitinhonha – o mesmo problema vivido pelos famosos surubins do rio São Francisco, e também de outras espécies do rio.
A foto que ilustra essa postagem veio do Programa Peixe Vivo da CEMIG – Companhia Energética de Minas Gerais, uma das muitas iniciativas para a recuperação da ictiofauna do rio Jequitinhonha e dos seus afluentes. E um detalhe: o surubim fotografado é bem jovem e ainda vai crescer bastante.
As primeiras observações científicas registradas sobre a ictiofauna do rio Jequitinhonha e dos seus afluentes foram feitas por Johann Baptist Emanuel Pohl, mineralogista e botânico austríaco, e pelo botânico francês Augustin François César Prouvençal de Saint-Hilaire.
Pohl chegou ao Brasil em 1817 junto com a Missão Austríaca ao Brasil, mas acabou se desligando do grupo e fez uma expedição de quatro anos por conta própria pelas províncias do Rio de Janeiro, Minas Gerais e Goiás. Saint-Hilarie participou de diversas expedições científicas no Brasil Colônia entre 1816 e 1822.
Entre as principais observações desses cientistas destaca-se o uso generalizado e abusivo do pãri, uma técnica de pesca usada por povos de todo o mundo e conhecida pelos indígenas de todas as Américas. Paredes de pedra são construídas em trechos do rio de modo a afunilar as águas – os peixes acabam sendo conduzidos para armadilhas feitas com madeiras ou taquaras.
Essa técnica tem o inconveniente de capturar os peixes sem qualquer critério de tamanho ou espécie, destacando-se aqui as fêmeas em período de desova e reprodução. Saint-Hilarie já previa que o uso constante do pãri seria fatal para o futuro de muitas espécies de peixes do rio Jequitinhonha:
“este gênero de armadilha (…) certamente seria proibido em um país em que fosse possível exercer alguma fiscalização.”
José de Cortés Duarte, um escritor pernambucano que viveu por muitos anos em Minas Gerais e que nos legou diversos livros com narrativas regionais, observou em 1920 a já desastrosa situação da ictiofauna do rio Jequitinhonha:
“Na pesca, o crime [de destruição da natureza] ainda foi maior, a imprevidência mais revoltante: matando surubins na desova, deixando mais da metade da pescaria desumana aos urubus – por falta de sal, como se desculpavam – os pescadores do Jequitinhonha conseguiram, em quarenta anos, extinguir a espécie, revelando-se mais bárbaros, imprevidentes e muito mais perniciosos aos vindouros do que os selvagens que limitam suas pescarias às próprias necessidades.”
Passados mais de 200 anos desde as primeiras observações registradas por Pohl e Saint-Hilarie, ainda existem inúmeras dúvidas e falta de conhecimentos sobre a ictiofauna do rio Jequitinhonha, a começar pela quantidade de espécies. Existem três listas de espécies da bacia hidrográfica: a primeira, feita em 1999, encontrou 42 espécies, sendo que 14 ainda não haviam sido descritas.
Em 2005, um outro estudo encontrou 50 espécies, sendo que 5 ainda não estavam descritas. A lista mais atualizada possui 53 espécies, sendo que 11 espécies, como o robalo e o xaréu, são marinhas e migram para o rio Jequitinhonha em algumas épocas do ano em busca de alimentos. Além do surubim do Jequinhonha, merecem destaque a piaba (Nematocharax venustus), o bagre (Rhandia jequitinhonha) e a piabanha (Brycon devillei) – todas ameaçadas de extinção.
Com relação a essa última espécie, existem dúvidas quanto a sua relação com a piabanha do rio Paraíba do Sul (Brycon insignis) – é possível, inclusive, que seja uma população isolada da mesma espécie de peixe. Isso ilustra a quantidade de dúvidas que ainda pairam sobre a ictiofauna do rio Jequitinhonha e dos seus afluentes.
Considerando-se o tamanho do rio Jequitinhonha, que têm mais de 1 mil km de extensão e tem uma bacia hidrográfica que abrange uma área de mais de 70 mil km², esse número total de espécies é muito baixo. Um exemplo é o vizinho rio Mucuri, que nasce no Nordeste de Minas Gerais e deságua no Sul da Bahia, que tem apenas 321 km de extensão e apresenta uma quantidade maior de espécies que o rio Jequitinhonha.
De acordo com as projeções feitas por pesquisadores, onde são comparadas as populações de diversos rios da América do Sul, o rio Jequitinhonha deveria apresentar, pelo menos, 80 espécies endêmicas. Essa projeção levanta duas questões: ou existem 30 espécies de peixes ainda a serem descobertas no rio ou essas espécies já foram extintas por ações humanas.
Os estudos sobre a ictiofauna do rio Jequitinhonha ganharam um forte impulso com a construção de barragens para duas usinas hidrelétricas na calha do rio: em 1999 foi concluída a barragem da Usina Hidrelétrica de Itapebi na Bahia e em 2002, a barragem da Usina Hidrelétrica de Irapé, também conhecida como Presidente Juscelino Kubitschek, nos municípios de Grão Mogol e Berilo, em Minas Gerais.
Esses estudos formaram parte importante dos processos de licenciamento ambiental dessas obras. Além de identificar e descrever novas espécies de peixes nativos da bacia hidrográfica, os estudos identificaram 10 espécies invasoras com origens diferentes. No médio rio Jequitinhonha, foram encontradas a pioa (Prochilodus costatus), o trairão (Hoplias lacerdae) e a tilápia (Tilapia sp.).
Além dessas espécies, também foram encontradas no baixo Jequitinhonha uma outra espécie de tilápia (Oreochromis niloticus), o barrigudinho (Poecilia reticulata) e o apaiari (Astronotus ocellatus). Em outros trechos do rio foram encontradas a carpa (Hypophthalmichthys molitrix) e o surubim “ponto e vírgula” (híbrido de Pseudoplatystoma corruscans e Pseudoplatystoma fasciatum).
Na região da barragem da Hidrelétrica de Irapé foi registrada a pirambeba (Serrasalmus sp.) e o bagre africano (Clarias gariepinus). Em 2002, técnicos da FADETEC – Fundação de Apoio Tecnológico da Escola Agro Técnica Federal de Salinas, encontraram tucunarés (Cichla sp.) numa barragem no rio Salinas. É apenas uma questão de tempo para a fuga e disseminação dessa espécie por toda a calha do rio Jequitinhonha.
Essas espécies exóticas podem ter chegado à bacia hidrográfica do rio Jequitinhonha a partir da fuga de tanques de criadores e dos chamados pesque-e-pague, por meio de descartes de aquaristas ou ainda podem ter sido introduzidas propositalmente por pescadores. A introdução de espécies exóticas, tanto animais quanto vegetais, pode levar espécies nativas de um bioma à extinção.
Um caso muito conhecido foi a introdução de peixes-mosquito (Gambusia affinis) em rios da Austrália para o controle de populações de mosquitos. Além de comer as pupas dos mosquitos, os peixes também comiam as ovas de peixes nativos, o que colocou inúmeras espécies em risco de extinção. Outro caso que está tendo grande repercussão atualmente é a invasão das carpas asiáticas (Cyprinus carpio) em rios dos Estados Unidos. Aqui no Brasil um grande exemplo é o mexilhão-dourado (Limnoperna fortunei), que está tomando conta das nossas bacias hidrográficas.
Além de todos os problemas criados pela falta de conhecimento e pela introdução de espécies exóticas, a ictiofauna do rio Jequitinhonha também vem sofrendo sérias ameaças pela degradação ambiental da bacia hidrográfica. São desmatamentos, uso inadequado de solos pela agricultura e carreamento de sedimentos por processos erosivos, redução dos caudais, poluição por lançamentos de esgotos e descartes de resíduos sólidos urbanos, carreamentos de resíduos de fertilizantes e pesticidas, construção de barragens, entre outros.
Recentemente, veterinários da Universidade Federal de Minas Gerais atribuíram a ocorrência de lesões encontradas em peixes capturados no rio Jequitinhonha à má qualidade da água em diversos trechos do rio. Esse problema, que preocupa muitas comunidades ribeirinhas e pescadores profissionais, está ligado ao excesso de matéria orgânica (entenda-se aqui esgotos), a redução do oxigênio dissolvido e a amplitude térmica da água. Estressados, os peixes se ferem em pedras, madeiras e raízes submersas de vegetação, apresentando lesões e feridas por todo o corpo, além de amputação de partes das nadadeiras.
Parafraseando um antigo ditado popular, o “rio Jequitinhonha não está para os peixes” – nem para as espécies já conhecidas, nem para aquelas ainda a serem descobertas. Sinal que a saúde do rio vai muito mal.
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