CASOS DA “DOENÇA DA URINA PRETA” IDENTIFICADOS EM QUATRO ESTADOS BRASILEIROS 

Na última postagem falamos rapidamente do Nipah, um novo vírus potencialmente letal que vem fazendo vítimas fatais no Sul e Sudeste da Ásia. Diversas espécies de morcegos dessa região são hospedeiros naturais desse vírus sem sofrer qualquer tipo de problemas – quanto seres humanos tem contato com o Nipah, entretanto, as chances de contrair uma doença fatal ficam entre 40 e 79%. 

Além das imensas preocupações relativas à saúde de centenas de milhões de pessoas que vivem nessa extensa região, o vírus Nipah traz à tona uma relevante questão ambiental: a destruição contínua de grandes áreas de floresta tropical tem forcado muitas espécies de animais silvestres – onde se incluem os morcegos, a viverem em locais cada vez mais próximos dos assentamentos humanos. É nessa perigosa “convivência entre vizinhos” que, literalmente, mora o perigo da contaminação. 

Doenças associadas direta ou indiretamente a problemas decorrentes da devastação de áreas florestais tendem a se tornar cada vez mais comuns em nosso mundo. Existem bilhões de tipos diferentes de vírus vivendo em simbiose com plantas e animais silvestres que, em um eventual contato com seres humanos, podem criar verdadeiras pandemias. Um desses casos suspeitos é o Corona, vírus causador da Covid-19. 

A destruição da cobertura vegetal também pode expor veios de minerais pesados como o chumbo, o mercúrio e o cádmio, metais esses que podem ser arrastados na direção de rios e outros corpos d`água. Outra fonte de problemas é a mineração – principalmente do ouro, onde grandes quantidades de mercúrio são usadas para separar o precioso metal das impurezas. 

Um problema de saúde que pode estar associado a esses problemas (ainda não há confirmação científica) é a Doença de Haff, conhecida popularmente como “doença da urina preta”. Quatro Estados brasileiros – Amazonas, Pará, Ceará e Bahia, estão enfrentando surtos da doença nesse momento. Ninguém sabe ao certo se a causa da doença é uma toxina, um vírus ou uma bactéria encontrada em peixes e crustáceos. 

A doença foi descrita pela primeira vez em 1924 em Könisberg Haff, uma região litorânea no Mar Báltico no atual território russo de Kaliningrado. Os médicos passaram a atender pacientes com quadros de rigidez muscular súbita, acompanhados de urina escura. Os casos da doença foram registrados nessa região ao longo dos nove anos seguintes. 

Os médicos observaram que os casos da doença ocorriam principalmente entre o verão e o outono e, segundo foi possível apurar, os pacientes sempre relatavam o consumo de peixes e crustáceos. A hipótese levantada pelos médicos era a da presença de algum contaminante na carne dos animais consumidos. Outros surtos da doença foram descritos posteriormente em outras Repúblicas da então União Soviética, na China e nos Estados Unidos. 

Os primeiros casos registrados no Brasil ocorreram entre os anos de 2008 e 2009. Um dos surtos mais graves da doença ocorreu na Bahia em 2017, quando ao menos 71 pessoas foram diagnosticadas com a doença, sendo que 66 dos casos ocorreram na cidade de Salvador. 

Os relatos mostram que os primeiros sinais da doença aparecem poucas horas depois da ingestão de peixes e crustáceos. Os pacientes não têm febre e apresentam dor muscular nas regiões do trapézio, dos ombros e do pescoço. Muitos doentes reclamam de náuseas, dor no peito, falta de ar, sensação de dormência, tontura e fraqueza. Um dos sintomas mais característicos é a eliminação de uma urina escura, “cor de café”. 

Os estudos científicos já realizados não conseguiram isolar o suposto contaminante (químico ou biológico) que estaria presente na carne dos peixes e dos crustáceos, por isso a dificuldade de se afirmar se há realmente uma origem ambiental no problema. Existem casos de toxinas que surgem nas águas de rios e mares devido a problemas de poluição, contaminação por metais pesados e também pela presença de cianobactérias, muitas vezes associadas a poluição das águas por esgotos.  

Essa contaminação nas águas também pode estimular a proliferação de colônias de bactérias e também de espécies animais e vegetais que hospedam vírus. Esses contaminantes seguem ao longo da cadeia alimentar, afetando algas, insetos, vermes, crustáceos e peixes. Apesar de ainda não ter sido comprovada, essa é uma das principais hipóteses defendidas por muitos pesquisadores. 

Uma outra hipótese sugere que são problemas ligados ao transporte e armazenamentos de peixes e crustáceos entre as áreas de produção e os consumidores. Existem muitas espécies de peixes originários da Bacia Amazônica e de regiões litorâneas do Nordeste que são largamente consumidos em outros Estados do país. Um desses casos é o cachara, um peixe amazônico que é muito consumido como um “genérico” do surubim. 

O surubim já foi o peixe símbolo do rio São Francisco. Devido à degradação do rio, a espécie é cada vez mais rara nas águas e nos restaurantes ribeirinhos. O cachara é muito parecido com o surubim e, já há muitos anos, vem sendo servido em muitas mesas com se fosse um “autentico” peixe desse rio. 

A Doença de Haff provoca a rabdomióse, que é uma destruição progressiva das fibras que formam os músculos esqueléticos, os responsáveis pelas contrações e movimentos. Essa destruição resulta no despejo de células musculares mortas na corrente sanguínea, um problema que muitas vezes acaba gerando insuficiência renal. A mioglobina, um dos elementos formados das células musculares, é uma enzima tóxica para os rins. 

Uma vez confirmado o diagnóstico da Doença de Haff, o que pode ser feito a partir da análise dos sintomas ou de exames laboratoriais, a principal indicação médica é um reforço na hidratação do paciente – quanto maior a concentração de água no organismo mais fácil será a diluição das toxinas e a sua eliminação pelos rins. Em casos mais graves, quando os rins já foram comprometidos, pode ser necessária a hemodiálise. Raramente os pacientes com a “doença da urina preta” morrem. 

O atual surto de Doença de Haff está fortemente concentrado no Estado do Amazonas, onde já foram identificados mais de 60 casos em 10 cidades, com uma vítima fatal. A cidade mais afetada é Itacoatira, localizada a cerca de 270 km de Manaus, com 34 casos relatados. 

Autoridades da Vigilância Sanitária do Estado do Amazonas tem recomendado que a população não consuma peixes até que o surto da doença seja devidamente controlado. Esse tipo de recomendação é muito pouco eficaz na região – pescados são a principal proteína consumida pelas populações das cidades da Amazônia, principalmente as mais pobres. Mesmo assim, muitos comerciantes tem reclamado da redução nas vendas de pescados e crustáceos. 

As dúvidas que cercam a origem da Doença de Haff mostram o quanto ainda temos a aprender com a natureza e também nos lembra da importância da preservação ambiental. Mesmo que algum dia se comprove que a origem do problema é outra, todos sairemos ganhando com um meio ambiente melhor conservado. 

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