
Ao longo dos últimos dias estamos assistindo com indignação e perplexidade a invasão de um país por tropas militares de uma grande potência nuclear. Dia após dia, vemos imagens de bombardeios, de prédios em chamas, de longas filas de equipamentos militares em deslocamento e também de civis fugindo em desespero dos centros de conflito.
Aqui em nosso território, bem longe dessa área em guerra, também vem se desenrolando uma invasão bem mais discreta e silenciosa. Pequenas criaturas vindas da Argentina e do Uruguai estão entrando gradativamente no Sul do Brasil. Esses invasores são bem menos preocupantes, porém, eles têm um grande potencial para causar uns bons problemas para nós brasileiros.
Falo aqui de estorninhos (Sturmus vulgaris), um pássaro originário da Eurásia e que se transformou em uma espécie invasora em diferentes partes do mundo. Desde 2014, pequenos bandos de estorninhos vêm sendo observados no Sul do Rio Grande do Sul com uma frequência cada vez maior. Desde o final de 2021, o IBAMA – Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, passou a considerar essas aves como uma espécie invasora.
Uma característica marcante dos estorninhos são os grandes bandos que formam durante o voo, executando manobras compactas e sincronizadas que guardam similaridade com grandes cardumes de peixes. Essas evoluções ocorrem com maior frequência no período da reprodução das aves. São esses enormes bandos que transformam essa pequena ave – de menos de 25 cm de envergadura e 100 gramas de peso, em um grande transtorno para os agricultores.
Assim como ocorre com aves carismáticas de nossa fauna como o sabiá e o uirapuru, os estorninhos aparecem em histórias folclóricas e na literatura de muitos países da Europa e da Ásia. Nas obras teatrais de Willian Shakespeare, citando um exemplo, os estorninhos são citados cerca de 60 vezes. Em uma passagem da peça Henrique IV, o personagem Hotspur pensa em ensinar um estorninho a falar um nome.
Essa simpatia de Shakespeare pelo pássaro levou a uma situação inusitada: em março de 1890, um farmacêutico apaixonado por teatro – Eugene Shieffelin, soltou mais de 100 estorninhos no Central Park de Nova York. Esse ato impensado mudaria para sempre a ecologia dos Estados Unidos e de toda a América do Norte.
Por motivos diferentes, essas aves foram introduzidas em vários outros países como a África do Sul, a Austrália e a Nova Zelândia. Estorninhos tem a fama de serem grandes devoradores de insetos, uma característica bastante útil para agricultores que tem suas plantações atacadas por pragas. Buscando introduzir um predador natural, agricultores importaram centenas desses pássaros e os soltaram em suas propriedades. A ideia infeliz trouxe mais problemas que benefícios – os estorninhos se transformaram em mais uma praga agrícola.
Aqui precisamos recordar da introdução dos pardais na cidade do Rio de Janeiro no início do século XX, pelo então Prefeito Francisco Franco de Pereira Passos. A cidade vivia naquele momento uma terrível epidemia de febre amarela, doença transmitido por várias espécies de mosquitos – entre eles o famoso Aedes aegypti. Alguém disse ao Prefeito que os pardais europeus (Passer domesticus) eram grandes devoradores de insetos.
Em 1903, a Prefeitura do Rio de Janeiro importou 200 pardais de Portugal – os animais foram soltos com pompa e protocolo no Campo de Santana pouco tempo depois. As aves não resolveram o problema da epidemia de febre amarela, mas se transformaram em uma importante espécie invasora em todo o Brasil.
Ao que tudo indica, os estorninhos foram introduzidos América do Sul via Argentina na década de 1980. Alguns comerciantes passaram a importar e vender essas aves em petshops como animais de estimação exóticos. Como sempre acaba acontecendo, algumas aves fugiram de seus cativeiros e/ou foram colocadas em liberdade pelos seus donos, colonizando rapidamente toda a região de Buenos Aires.
De fácil adaptação a novos ambientes, bandos de estorninhos passaram a ocupar gradativamente extensas regiões do Centro da Argentina e também o Uruguai. O avistamento cada vez mais frequente de bandos dessas aves no Extremo Sul do Brasil é um sinal claro de um avanço da espécie cada vez mais ao Norte, entrando cada vez mais em nosso território.
Assim como os pardais, os estorninhos são aves robustas e rústicas acostumadas a enfrentar os rigorosos invernos da Europa e da Ásia. Numa competição natural com pássaros nativos aqui do Brasil que ocupam o mesmo nicho ecológico como cambacicas, corruíras, sabiás e sanhaços, os estorninhos terão uma nítida vantagem em termos de força física. Há um risco real de perdas em nossa diversidade de espécies de aves.
Além da grande robustez física, essas aves são onívoras, ou seja, comem qualquer coisa que estiver a sua disposição – insetos, vermes, sementes, frutos, pequenos animais e grãos. Aliás, os estorninhos são famosos por atacar plantações de grãos como trigo, milho e arroz em bandos com milhares de aves, formações que guardam grandes similaridades com nuvens de gafanhotos.
Em muitos países pelo mundo, onde já existe uma convivência milenar com os estorninhos, agricultores se valem de aves de rapina como falcões e gaviões treinados especialmente para afastar as aves invasoras de suas plantações. Grandes perdas nas colheitas, inevitavelmente, ainda assim acontecem.
Qualquer espécie animal ou vegetal é o resultado de um longo processo evolutivo dentro de um determinado tipo de ambiente natural. Essas espécies desenvolvem inúmeras relações ao longo dessa evolução. Plantas fazem “parcerias” com insetos e outros animais que vão ajudá-las em seu processo reprodutivo e na dispersão de frutos e sementes. Animais se especializam no consumo de alguns tipos de alimentos; outros se transformam em presas de outras espécies.
Um dos pontos mais interessantes desses ecossistemas é o equilíbrio criado no tamanho das populações – sempre que uma determinada espécie atinge o limite dos recursos naturais disponíveis, sua população para de crescer. Quando uma determinada espécie animal ou vegetal é retirada do seu meio natural e é introduzida em um outro ecossistema, desequilíbrios acontecem.
Em inúmeras postagens publicadas aqui no blog falamos de diversos desses casos de espécies invasoras: dos castores , salmões e trutas que foram introduzidos em regiões da Patagônia argentina e chilena, dos javalis que fugiram de fazendas na Argentina e que invadiram países vizinhos como o Paraguai, o Uruguai e o Brasil. Dos sapos-cururu da Austrália e do lagostim-vermelho-da-Luisiana na Península Ibérica, entre muitos outros.
Além de espécies animais, existem inúmeros exemplos de plantas como a Palma-da-Guiné, o pinus e o eucalipto, a Ambrosia artemisiifolia. Em todos esses casos, espécies das respectivas faunas e floras locais foram durante afetadas.
Ao que tudo indica, precisaremos incluir os estorninhos a já extensa lista de espécies invasoras existentes aqui no Brasil. Só o tempo nos dirá o tamanho dos estragos de mais essa grande invasão…