Uma das grandes inovações urbanísticas implantadas em grandes e médias cidades brasileiras ao longo do século XX foi a construção, em larga escala, das chamadas “avenidas de fundo de vale”. Esse tipo de obra começou a ganhar espaço na cidade de São Paulo a partir de 1927 – o então Prefeito da Cidade, João Pires do Rio, havia reunido um grupo de urbanistas e engenheiros com o objetivo de formular alternativas para a infraestrutura da cidade. Essa equipe de profissionais, que tinha entre seus membros o ilustre engenheiro Francisco Prestes Maia, apresentou suas conclusões na forma da Teoria dos Fundos de Vale.
A principal premissa dessa Teoria era o uso dos terrenos alagadiços e desvalorizados das áreas ribeirinhas dos córregos e rios da cidade para a construção de toda uma rede de avenidas e vias radiais e perimetrais que orientariam e estruturariam o crescimento da cidade de São Paulo ao longo das décadas futuras. De quebra, a realização dessas obras permitiria a eliminação de diversas favelas, cortiços e habitações de baixa qualidade que foram tomando esses terrenos e “enfeiavam” a modernista e pujante Pauliceia.
Em 1938, o Engenheiro Prestes Maia foi indicado Prefeito da Cidade de São Paulo e, até o final da sua administração em 1945, realizou cerca de 4 mil km lineares de canalizações e retificações de cursos de córregos, riachos e ribeirões por toda a cidade, construindo diversas avenidas de fundo de vale nos locais “urbanizados”. Os diferentes Prefeitos que o seguiram na administração da cidade continuaram a seguir essa Teoria, que acabou sendo transformada no que eu chamo de “Teoria dos Fundo$ de Vale” (o uso do cifrão na grafia se deve ao uso dessas obras para o desvio de verbas públicas, onde um dos grandes exemplos é a Avenida das Águas Espraiadas). Diversas outras cidades brasileiras acabaram sendo influenciadas por essa “moda urbanística”, criando assim todas as bases para muitas das grandes enchentes que nós estamos assistindo atualmente.
Para mostrar o verdadeiro desastre ambiental criado por muitas dessas obras, gostaria de exemplificar com dois casos práticos: a construção da Avenida do Estado na cidade de São Paulo, a partir da canalização do rio Tamanduateí, e de diversos trechos de importantes avenidas de Belo Horizonte, a partir da canalização do Ribeirão Arrudas.
Conforme já apresentado em postagens anteriores, o Planalto de Piratininga apresentava aos primeiros tempos da colonização uma grande mancha do bioma Cerrado ao largo de uma complexa rede de córregos, riachos e ribeirões. Conforme a fonte de pesquisa, o número de copos d’água na região vai de 300 a 1.200. O Planalto também apresentava vegetação de Mata Atlântica e da Mata das Araucárias. A palavra Piratininga é de origem tupi e significa, literalmente, “lugar onde se encontra o peixe seco”. Na época das chuvas, as grandes áreas de várzea enchiam para acomodar o excesso de água; quando esse período terminava, as áreas de várzea começavam a secar e grandes cardumes de peixes ficavam presos nas poças de água, que por fim secavam. Bastava aos índios sair recolhendo os peixes já secos.
O principal rio da região era o Anhembi, antigo nome do rio Tietê. Seu principal afluente é o rio Tamanduateí, que em tupi signicava algo como “o rio dos tamanduás”. Além dos índios, os peixes secos atraiam as formigas, que por sua vez atraíam os tamanduás, o que acabou dando origem ao nome do rio – simples assim. O rio Tamanduateí nasce no município de Mauá, passando por Santo André e depois entra na cidade de São Paulo, onde segue até sua foz no rio Tietê nas proximidades da Estação Rodoviária e do Parque de Exposições Anhembi. O seu percurso total é de cerca de 35 km.
Até meados do século XIX, o rio Tamanduateí era o principal manancial de abastecimento da cidade de São Paulo. Com o crescimento da cidade e com o aumento da poluição, foi criado o Sistema Cantareira Velho. O Tamanduateí tinha um curso bastante sinuoso e formava grandes áreas de várzea, como era o caso da antiga Várzea do Carmo. Sucessivas obras de retificação e inúmeros aterros aprisionaram o rio numa calha apertada, retilínea e demasiadamente pequena para suportar os grandes volumes de águas pluviais dos verões paulistanos. Estavam dadas as condições para o rio se transformar numa importante fonte de enchentes.
A partir da década de 1950, com o acelerado crescimento da cidade e de sua frota de automóveis, foi iniciado o asfaltamento da Avenida do Estado, criando uma via marginal ao largo do rio Tamanduateí, que ao longo de diferentes administrações passou a ligar a Marginal Tietê ao Município de Santo André. Com a implantação do parque automobilístico na chamada Região do ABC (sigla para Santo André, São Bernardo e São Caetano), a importância da Avenida do Estado aumentou progressivamente, levando a uma intensa urbanização dos bairros ao longo do seu trajeto. A população cresceu exponencialmente na região, grandes áreas de mata foram suprimidas e os solos passaram por um intenso processo de impermeabilização. O resultado – a Avenida do Estado apresenta alguns dos maiores e mais “tradicionais” pontos de alagamento nos verões da cidade de São Paulo.
O outro “personagem” dessa postagem é o Ribeirão Arrudas. Esse Ribeirão tem nascentes na Serra do Rola Moça e atravessa toda a cidade de Belo Horizonte até desaguar no rio das Velhas, no município de Sabará. Ao longo do seu curso de cerca de 40 km, o Ribeirão Arrudas recebe contribuições de uma infinidade de córregos: Jatobá, Barreiro, Bonsucesso, Cercadinho, Piteiras, Leitão, Acaba Mundo, Serra, Taquaril, Navio-Baleia, Santa Terezinha, Ferrugem, Tijuco e Pastinho, entre muitos outros, o que o transforma em um dos principais canais de drenagem de águas pluviais da capital mineira.
Como sempre aconteceu na história da maioria das cidades brasileiras, o Ribeirão Arrudas, desde os primeiros anos da fundação de Belo Horizonte, passou a funcionar como um grande coletor e dispersor de esgotos da cidade: as casas e edifícios foram sendo construídos e as manilhas de esgotos foram instaladas sob as ruas e avenidas, com as saídas de efluentes voltadas para a calha do Ribeirão. Assim como aconteceu com o paulistano rio Tamanduateí, o forte crescimento urbano de Belo Horizonte estrangulou as margens do Arrudas para permitir a construção de grandes avenidas de fundo de vale, entre elas trechos importantes da Avenida do Contorno e da Avenida Andradas. Somando-se isso à destruição de áreas verdes e a impermeabilização dos solos temos as catastróficas enchentes que se repetem a cada verão (vide foto).
Mesmo separadas por uma distância de mais de 600 km, as semelhanças entre as obras de canalizações e de construção das avenidas de fundo de vale ao longo do rio Tamanduateí e Ribeirão Arrudas impressionam – as violentas enchentes e o caos generalizado que se instalam ao longo de suas margens nos sucessivos verões também tem magnitudes semelhantes. São Paulo e Belo Horizonte pagam um alto preço por causa do crescimento urbano desordenado, destruição e ocupação de áreas de várzea e vales, além da intensa destruição da cobertura vegetal e impermeabilização de grandes extensões dos solos urbanos.
Infelizmente, essas duas grandes cidades brasileiras não estão sozinhas nessa trágica sina.
[…] do Estado. Essas avenidas ocuparam, respectivamente, áreas de várzea dos rios Tietê, Pinheiros e Tamanduateí, os três principais rios do Planalto de Piratininga. A foto que ilustra esta postagem mostra a […]
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[…] e muitas delas ocuparam importantes áreas de várzeas. Muitos córregos e rios tiveram seus cursos retificados e/ou canalizados com vistas à liberação de áreas para a especulação imobiliária. Encostas de morros e áreas […]
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[…] da população de Belo Horizonte resultou numa ocupação desordenada dos solos urbanos. Áreas de várzeas foram aterradas para a criação de novos terrenos para a especulação imobiliária, córregos tiveram seus […]
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