A DURA VIDA NA ANTIGA VILA DE SÃO PAULO DE PIRATININGA

Lavadeiras de Roupa

Na minha última postagem falamos muito rapidamente do grau de deterioração das fontes de água na cidade de São Paulo, destruídas por causa do crescimento da cidade e, especialmente, pelo despejo diário de milhões de litros de esgotos – hoje, a cidade é fortemente dependente de fontes externas para suprir as suas necessidades de abastecimento.

Durante vários séculos da sua história, as fontes de abastecimento da população paulistana eram os inúmeros riachos e, depois, as fontes públicas instaladas em praças, a partir dos quais a água podia ser consumida despreocupadamente, sem necessitar de qualquer tipo de tratamento. Vamos tentar reconstruir um pouco desta história:

Além das tradicionais funções de prover água para o abastecimento da população, para as atividades agropecuárias, para a dispersão de esgotos e de detritos, e também para a navegação e transporte de cargas e de passageiros, os antigos riachos e rios paulistanos se destacavam em outros usos: fornecimento de areia e argila para a construção civil – destaque para a argila. As antigas construções da pequena cidade eram feitas em taipa de pilão e em pau a pique.

As atividades de lavagem de roupas (vide foto), dos curtumes e tecelagens, pesca e lazer (especialmente para as crianças); também eram a base de trabalho de muitas categorias profissionais que há muito não existem mais – os aguadeiros, operadores e zeladores de fontes e chafarizes, vigias de pontes, moleiros (isto é, trabalhadores dos moinhos de grãos impulsionados pela força da água), oleiros ou ceramistas, caçadores, entre outros.

Durante séculos, estas águas garantiram o trabalho e o sustento de parte significativa da população de Piratininga (só relembrando que este topônimo significa “lugar onde se encontra o peixe seco” em tupi-guarani, o que indica uma relação ancestral entre terras e águas).

Apesar da fama construída a partir das epopeias dos antigos bandeirantes, a cidade de São Paulo era, até o final do século XIX, irrelevante dentro do cenário nacional. Em 1589, época em que a cidade de Salvador já era a capital da Colônia, São Paulo de Piratininga tinha 150 residências e aproximadamente 750 habitantes (índios não eram contabilizados); quase duzentos anos depois em 1775, o censo encontrou 460 moradias e 1.894 habitantes, sendo “793 homens e 1.101 mulheres”.

Há um fato curioso que justifica esta diferença no número de habitantes por gênero – as bandeiras organizadas pelas tradicionais famílias dos “paulistas” eram um verdadeiro sorvedouro de homens, que morriam “aos montes” durante as expedições. Essa pequena população se concentrava na atual área ocupada pelo centro velho da cidade, ao redor a atual Praça da Sé, e em dois pequenos núcleos mais distantes nos atuais bairros do Pari e de Pinheiros.

Nos primeiros anos de existência, a Vila de São Paulo de Piratininga era simplesmente paupérrima. Pela simples falta de moedas metálicas ou qualquer outro ativo circulante como peças em ouro e prata, tanto a administração da Vila quanto os moradores utilizavam-se de diferentes artifícios para pagar suas dívidas – um registro da Câmara Municipal de 1592 mostra que um funcionário recebeu o  salário do mês em palha (material muito usado na construção dos telhados da época); trocas a base de toucinho, milho, algodão e marmelada eram usuais no comércio.

O grande historiador, professor  e intelectual catarinense Afonso d’Escragnolle Taunay (1876-1958), nos deixou alguns registros curiosos destes tempos difíceis em seu livro História da Cidade de São Paulo:

“uma casa no ponto central da Vila valia o mesmo que uma espada ou espingarda. Valia mais um vestido de fazenda europeia do que um prédio.”

Nestes primeiros tempos, as principais mananciais de água da cidade eram os rios Tietê e Tamanduateí, usados especialmente para o transporte de cargas e de passageiros, o rio Anhangabaú – usado para dispersar os detritos e o lixo dos habitantes, além de um conjunto de riachos que forneciam a água para o abastecimento: Yacuba, Saracura e Bexiga, afluentes do rio Anhangabaú; Cabuçu Pequeno, Cabuçu de Cima e Cabuçu de Baixo, afluentes do rio Tamanduateí.

Na margem oposta do Rio Anhangabaú se encontravam o Tanque do Arouche e o Córrego do Carvalho, que desaguavam no baixo Rio Tamanduateí, na região onde encontramos hoje o atual bairro do Bom Retiro. Durante mais de dois séculos, toda a vida dos habitantes da cidade dependia das águas deste pequeno grupo de corpos d’água, a maioria, imagino eu, desconhecidos por vocês.

As famílias mais abastadas da época contavam com grandes grupos de índios escravizados (escravos africanos eram extremamente valorizados e caros neste período e estavam concentrados nas atividades ligadas inicialmente à produção do açúcar e depois na mineração do ouro). Todos os trabalhos domésticos eram realizados por estes índios, inclusive o abastecimento contínuo de água das casas – alguns destes escravos passavam o dia inteiro buscando água em cântaros de barro num dos mananciais da Vila.

Um registro importante: até o final do século XVIII, os isolados paulistas falavam Nheengatu, a língua geral indígena, quando o Governo Colonial impôs, a força, o uso da língua portuguesa. A população mais pobre, formada por pessoas livres e sem quaisquer recursos como sempre, já morava na beira dos córregos, o que facilitava o transporte da água para o abastecimento das casas e os serviços de limpeza.

No próximo post vamos detalhar um pouco mais esta história e falar de uma verdadeira revolução na vida cotidiana dos paulistanos – a construção das primeiras fontes públicas e chafarizes de água.

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