A simpática “figura” que ilustra a postagem de hoje é um gorila-de-Grauer, a maior subespécie de gorilas e maior primata do planeta, com alguns exemplares atingindo um peso de 180 kg. Chamado por muitos de “gorila esquecido”, esse animal é encontrado em pequenos bandos vivendo escondido nas florestas do Leste do Congo.
A pergunta que, imagino, deve estar passando na cabeça de muitos dos leitores – o que um gorila tem a ver com o tema que vem sendo comentado nessa série de postagens, onde estamos falando de lixo eletrônico e exploração de minerais raros como o coltan?
Conforme já comentamos, 75% das reservas mundiais de coltan, um mineral raro e fundamental para a fabricação de importantes componentes eletrônicos, estão localizadas na República Democrática do Congo. Devastado por uma guerra civil que se desenrola há vários anos e que já matou mais de 6 milhões de pessoas, o Congo é um país caótico, dominado por senhores da guerra, líderes tribais funcionários públicos e militares corruptos. Essa mineração, como não poderia deixar de ser, é altamente predatória e dominada pelos diferentes grupos que mandam no país.
As populações que moram nas áreas rurais e que se dedicam à agricultura e a pecuária são frequentemente expulsas de suas terras pelos grupos mineradores, que rapidamente transformam os terrenos em um mar sem fim de crateras. Trabalhadores em regime de escravidão e semiescravidão, muitas vezes observados sob a mira de armas, vasculham a terra em busca de minerais como coltan, diamantes e ouro. Essa é uma rotina que toma conta do Congo há várias décadas.
As populações expulsas de suas terras ancestrais saem em busca de outros lugares para viver e as áreas cobertas por florestas acabam se transformando em refúgios para um recomeço da vida. Clareiras são abertas para a formação de roçados rudimentares para uma agricultura de subsistência, muitas vezes utilizando o fogo para finalizar a limpeza dos terrenos, numa técnica muito semelhante à coivara dos indígenas brasileiros. Esse é um movimento silencioso que está devastando grandes extensões da floresta equatorial do Congo.
É esse avanço contra as florestas que tem encurralado grupos de gorilas-de-Grauer em pequenos fragmentos florestais, o que torna os animais presas fáceis para os caçadores. O consumo de carne de macacos, chimpanzés e gorilas é tradicional entre as populações de muitas regiões da África e um animal de grande porte como esses gorilas é uma presa disputada. A caça é feita por um lado pelos mineradores, que dada as condições degradantes de trabalho se valem da caça predatória para sobreviver e por outro pelos agricultores, que de uma hora para outra foram forçados a abandonar uma vida estruturada em suas terras e partir em busca de outras formas para se sobreviver.
O discreto gorila-de-Grauer (Gorilla beringei Graueri) é uma das espécies de primatas menos estudadas da África. De acordo com dados da WCS – Sociedade de Conservação da Vida Selgavem, na sigla em inglês, e da Fauna & Fora International, a população estimada dessa espécie caiu de 17 mil indivíduos em 1995 para cerca de 3.800 animais nos dias atuais. Como existem poucos gorilas-de-Grauer em zoológicos e unidades de conservação, o risco de desaparecimento da espécie é muito grande.
Essa espécie de gorila foi descrita pela primeira vez pelo zoólogo austríaco Rudolf Grauer na virada do século XX. Esses animais são muito parecidos com os gorilas-da-montanha (Gorilla gorilla beringei), e por muito tempo foram considerados como uma única espécie. Grauer observou que essa subespécie tinha os membros mais longos, pelos mais curtos e preferem viver em habitats com altitudes mais baixas, entre 60 e 290 metros acima do nível do mar. O pesquisador também observou que os gorilas-de-Grauer tem um apetite mais voraz que os gorilas-da-montanha.
Os gorilas são caçados por populações humanas desde os tempos imemoriais da pré-história. Essa pressão ecológica forçou os animais a buscar os recantos mais profundos das florestas e das montanhas para sobreviver, o que manteve suas populações em relativa segurança e possibilitou que os bandos mantivessem números confortáveis de indivíduos. A partir da chegada dos primeiros exploradores europeus e do encontro desses com os dos gorilas, passou a existir uma poderosa “indústria” para a caça e captura desses animais para exposição em zoológicos e circos de todo o mundo.
Como sempre acontece com espécies silvestres caçadas e colocadas em cativeiro para venda como animais de estimação e de exibição, para cada exemplar de gorila que chegava vivo na Europa e Estados Unidos, entre outros destinos, pelo menos dez animais caçados morriam no caminho vítimas de ferimentos, doenças, fome e maus tratos.
Uma outra fonte de pressão para caça desses animais surgiu em função de uma moda absurda da venda de mãos e pés de gorilas mumificadas, que eram usadas em muitos casos como cinzeiros. As cabeças dos gorilas foram transformadas também em um souvenir disputado por caçadores e turistas que visitavam a África. Uma das maiores defensoras dos gorilas, mais especificamente dos gorilas-das-montanhas, foi a primatóloga norte-americana Dian Fossey (1932-1985), que inclusive foi assassinada por caçadores de gorilas em Ruanda. A história da polêmica Dian Fossey e de sua luta na defesa dos gorilas foi transformada em um filme em 1988 – Gorillas in the Misty ou A Montanha dos Gorilas.
Além de sofrerem com a destruição dos seus habitats e com a caça predatória, os gorilas-de-Grauer poderão enfrentar novos problemas, desta vez vindos dos Estados Unidos. A legislação norte-americana cria alguns embaraços para as empresas do país que compram minerais de áreas de conflito, como é o caso da República Democrática do Congo. A Lei dos Minerais de Conflito foi aprovada em 2010 com apoio bipartidário no Congresso dos Estados Unidos. Essa Lei exige que as empresas divulguem as compras de minerais feitas nas chamadas zonas de conflito, algo que torna as empresas expostas ao crivo da opinião pública e alvo dos grupos de direitos humanos e ambientalistas.
Está em tramitação um memorando presidencial que poderá alterar essa política por um prazo de 2 anos – caso esse documento venha a ser aprovado e assinado pelo Presidente Donald Trump, ouro, estanho, tântalo, coltan e tungstênio originários da bacia hidrográfica do rio Congo poderão ser comprados livremente por empresas americanas. Com a abertura desse gigantesco mercado, a mineração no Congo, que já não segue regra nenhuma, ganhará ainda mais fôlego e colocará em um patamar de risco ainda maior as florestas equatoriais do país e suas espécies, incluindo-se na lista os gorilas-de-Grauer.
Ou seja, para tornar os smartphones, tablets, computadores e outros produtos eletrônicos produzidos por empresas norte-americanas mais baratos e competitivos, uma legislação que ajuda a proteger as florestas e animais selvagens do Congo poderá ser alterada. E como consequência, teremos a geração de mais lixo eletrônico, que inclusive poderá ser exportado no futuro para países africanos, e o risco de desaparecimento de espécies animais fascinantes como os gorilas-de-Grauer.
Muito triste.