
Os “deuses” do meio ambiente da Índia têm andado bastante ocupados nesses últimos dias. Na semana passada, a população da Capital do país – Nova Déli, foi surpreendida com uma altíssima concentração de poluentes em sua atmosfera. Ontem, foi a vez de circularem notícias que dão conta da tomada da superfície do sagrado rio Yamuna com espumas tóxicas flutuantes.
Relembrando, há poucos dias atrás o Governo da Índia se recusou a acelerar o ritmo de redução das suas emissões de gases de Efeito Estufa. O pedido havia sido feito pela cúpula dos países participantes da COP26. Esses países estavam pressionando a Índia a atingir a marca dos 40% de redução nas suas emissões até o ano de 2030. O Governo da Índia disse não e afirmou que vai manter todos os acordos fechados anteriormente.
Coincidência ou não, graves problemas ambientais do país começaram a aparecer logo após esse posicionamento do Governo indiano. Vamos entender o caso do rio Yamuna.
O rio Yamuna ou Jamuna nasce nas montanhas Himalaias no Norte da Índia e percorre cerca de 1370 km até desaguar no rio Ganges, do qual é um dos principais afluentes. Segundo a mitologia hindu, a deusa deste rio é irmã de Yama, o deus da morte. Segundo um dos livros sagrados da Índia, o Mahabharata, o deus Krishna passou a sua infância nas águas desse rio, que passou a ser considerado um dos rios mais sagrados da Índia.
O vale do rio Yamuna corta alguns dos Estados mais populosos da Índia – Déli, Uttar Pradesh e Haryana. Ao longo do seu curso o rio corta cidades importantes como Nova Déli, Mathura, Vrindavan, Agra, Etawah e Kalpi. Cerca de 60 milhões de pessoas dependem diretamente das águas do rio Yamuna para seu abastecimento. As águas também são fundamentais para irrigação de campos agrícolas.
Junto com outros importantes rios da Índia, de Bangladesh e do Paquistão, o Yamuna forma a Grande Planície Indo-gangética, uma extensa faixa de terras férteis que vem sendo habitada desde a mais remota antiguidade. Na época da Monção, uma temporada de fortes chuvas anuais que atingem o Subcontinente Indiano e Sudeste da Ásia, os rios da região transbordam e cobrem as planícies com sedimentos férteis. Assim que as águas baixam, essas terras começam a ser trabalhadas por milhões de agricultores.
Desgraçadamente, essa verdadeira “dadiva” divina não recebeu a atenção necessária por parte dos homens. A poluição das águas nessa região, especialmente na Índia, transformou rios em verdadeiras valas de esgotos a céu aberto. O maior exemplo dessa degradação é o rio Ganges, o maior, mais importante e mais sagrado rio da Índia e de Bangladesh.
Na bacia hidrográfica do rio Yamuna, as grandes fontes de poluição hídrica são os despejos de esgotos domésticos e industriais. Como acontece na maioria dos países em desenvolvimento, onde se inclui o Brasil, os governantes indianos priorizam a construção de redes de abastecimento de água, investindo quase nada em redes de coleta e em estações de tratamento de esgotos.
Com uma população beirando os 1,4 bilhão de habitantes, a Índia precisa criar 1 milhão de empregos a cada mês somente para absorver os jovens que estão entrando no mercado de trabalho. Para dar uma “pequena” ajuda para os empresários, os Governos de todos os níveis acabam fazendo vista grossa para muitos problemas ambientais gerados nos processos industriais.
A Índia tem uma forte tradição na produção de algodão, uma das fibras têxteis mais populares do mundo. A bacia hidrográfica do rio Yamuna concentra uma grande quantidade de empresas dos ramos de fiação e tecelagem, além de grandes empresas farmacêuticas. Os efluentes gerados nos processos industriais dessas empresas possuem altas concentrações de produtos químicos, principalmente corantes têxteis. Sem maiores restrições de controle ambiental, a maioria dessas empresas despeja esses efluentes sem qualquer tratamento nas águas dos rios.
Outra gravíssima fonte de poluição são os despejos das indústrias que trabalham nos segmentos de tratamento e tingimento do couro. Apesar de parcela expressiva da população indiana ser adepta do hinduísmo e venerar bois e vacas como animais sagrados, o país é um dos maiores exportadores mundiais de carne (principalmente de búfalos) e um grande produtor de couro. Agra, uma das cidades atravessadas pelo rio Yamuna, é a capital indiana dos calçados, concentrando milhares de empresas – de oficinas familiares a grandes fábricas desses produtos. Essa produção gera uma enorme demando por couro.
O couro animal é um tecido vivo, que se não for tratado corretamente apodrece em um curto espaço de tempo. As peças que chegam dos frigoríficos passam inicialmente por um processo de limpeza, onde são removidos restos de carne, gordura e pelos – esses resíduos correspondem a 70% do peso do couro cru. Essa limpeza consome muita água e os resíduos orgânicos que gera são altamente poluentes.
Numa segunda etapa, o couro passa por processos de mumificação, amaciamento e tingimento. As indústrias utilizam produtos químicos, tintas e solventes que contém substâncias altamente tóxicas como mercúrio, arsênico e, principalmente, sais de cromo. Os resíduos desses produtos são em grande parte misturados aos efluentes que são despejados sem qualquer tipo de tratamento na calha de córregos e rios.
Para curtir 1 tonelada de couro são gastos entre 20 e 80 m³ de água, onde são adicionados cerca de 250 mg/l de sais de cromo e cerca de 50 mg/l de sulfeto, entre outros produtos químicos. Todo esse volume de efluentes é descartado nos rios após a conclusão do processo de tratamento do couro – são raras as empresas da Índia que tratam seus efluentes adequadamente (ou pelo menos em parte).
Em altas concentrações, estes compostos podem causar diversos problemas à saúde humana, indo desde problemas respiratórios, infecções, infertilidade e deficiências congênitas. Lançado junto com os efluentes nas águas dos rios, o cromo pode causar problemas nas guelras dos peixes e também provocar alguns tipos de câncer em animais e populações humanas que bebam ou mantenham contato com estas águas.
O somatório de todos esses produtos químicos e resíduos orgânicos gera, de tempos em tempos, verdadeiras nuvens de espuma tóxica flutuante sobre as águas do rio Yamuna, como essa que estamos assistindo agora. É essa água tóxica que é captada pelas empresas de saneamento básico da região para abastecimento das populações e que também são usadas na irrigação de plantações agrícolas, atividades que também contribuem para a poluição das águas com resíduos de fertilizantes e agrotóxicos.
Nos últimos dias foi realizado nessa região da Índia o Chhath Puja, um festival religioso hindu em homenagem ao Deus Sol. Um dos pontos altos da festa é um banho que os religiosos tomam nas “’águas sagradas” do rio Yamuna. Muitos fieis fizeram questão de manter viva a tradição e mergulharam nas águas sujas e cobertas com espumas fétidas (vide imagem).
É sempre importante lembrar que a raiz linguística de ecologia é oikos, uma palavra grega que significa casa ou lar. Fazer um “estrago” desse tamanho em nossa própria casa não vai acabar nada bem…
E a “casa” dos indianos, como visto, está muito bagunçada.
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