A TRANSPOSIÇÃO DAS ÁGUAS DO RIO PARAÍBA DO SUL PARA O RIO GUANDU, OU A GÊNESE DE UM GRANDE PROBLEMA AMBIENTAL

Rio Paraíba do Sul

Na última postagem falamos rapidamente dos problemas com a qualidade da água fornecida aos consumidores da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, que está chegando nas torneiras com uma cor escura e com um cheiro estranho. Esse tipo de problema normalmente é causado pela presença de algas e cianobactérias em fontes de abastecimento de água contaminadas por esgotos.  

Com a chegada dos meses de verão e de fortes períodos de chuvas, há uma tendência de aumento na quantidade de lixo e detritos carreados para a calha dos rios e represas. O forte calor também atua com um “combustível” para o crescimento de algas e multiplicação de bactérias – os sistemas de tratamento e produção de água não conseguem eliminar completamente esses contaminantes. O resultado é uma água tecnicamente potável, porém com um aspecto e cheiro ruim. 

No caso da cidade do Rio de Janeiro e de alguns municípios da Baixada Fluminense, a origem do problema está na intensa poluição do rio Guandu, o principal manancial de abastecimento de água da Região Metropolitana. O rio Guandu fornece aproximadamente 85% da água consumida pela população da cidade do Rio de Janeiro e  por cerca de 70% do consumo das populações da Região da Baixada Fluminense, especialmente nos municípios de Nova Iguaçu, Duque de Caxias, São João de Meriti, Belford Roxo, Nilópolis, Itaguaí, Queimados e Mesquita. Porém, conforme já apresentamos, esse rio está com suas águas altamente poluídas

Entre outros problemas, o rio Guandu sofre com a baixa qualidade das águas do rio Paraíba do Sul, seu principal “fornecedor” de águas. Ao longo de várias décadas, a Light, empresa canadense de geração e distribuição de energia elétrica, realizou diversas obras hidráulicas para transposição das águas da bacia hidrográfica do Rio Paraíba do Sul em direção da bacia hidrográfica do rio Guandu. Essas águas passaram a ser usadas na geração de energia elétrica em diversas hidrelétricas da empresa no interior do Estado do Rio de Janeiro. Depois de utilizadas, essas águas correm na direção do rio Guandu e garantem o abastecimento de grande parte das populações da Região Metropolitana do Estado. 

O rio Paraíba do Sul é um curso d’água bastante discreto, sendo formado pela junção das águas de pequenos rios com nascentes nas montanhas da Serra do Mar, no Estado de São Paulo. Em tempos geológicos distantes, ele era um dos muitos afluentes formadores do  famoso rio Tietê. Graças ao afundamento de um grande bloco de rochas por forças tectônicas, o que resultou na atual configuração física do Vale do Paraíba, o rio  mudou o seu curso para o Norte e depois para o Leste, passando a correr na direção do Rio de Janeiro, onde se tornou o mais importante curso d’água do Estado. No seu caminho em direção ao Oceano Atlântico, o rio delimita grande parte da divisa entre os Estados do Rio de Janeiro e Minas Gerais. 

Apesar de não ser um rio grande e caudaloso como seus congêneres da gigantesca Bacia Amazônica, o Paraíba do Sul sempre cumpriu o seu papel como fonte de abastecimento de água de populações, para irrigação, indústrias e também para a geração de energia elétrica. Estimativas oficiais afirmam que o rio responde pelo abastecimento de 14 milhões de pessoas nos Estados de São Paulo, Minas Gerais e, principalmente, Rio de Janeiro – são 12 milhões de pessoas no Estado, onde 8 milhões moram na Região Metropolitana do Rio de Janeiro

Mesmo com essa importância ímpar, o rio Paraíba do Sul vem sendo maltratado há várias décadas com o lançamento de grandes volumes de esgotos sem tratamento, além de receber despejos de muito lixo e resíduos sólidos de todos os tipos, resíduos de fertilizantes e de agrotóxicos, além de sofrer com a degradação de margens e destruição de matas ciliares por atividades de mineração – principalmente de areia para a construção civil. O rio Paraíba do Sul é classificado como o 5° rio mais poluído do Brasil.

De acordo com a Ana – Agência Nacional de Águas, de um total estimado de 365 milhões de m³/ano de efluentes domésticos lançados na bacia hidrográfica do rio Paraíba do Sul, apenas 54,5 milhões de m³/ano ou apenas 15% do total de efluentes recebem um tratamento adequado. Quando este dado é analisado a partir das informações de cada Estado, percebe-se uma enorme discrepância nos índices de tratamento: enquanto os municípios da área paulista da bacia hidrográfica tratam, em média, 54,3% dos efluentes domésticos, no Estado de Minas Gerais o valor cai para 7,2% e no Rio de Janeiro são 5,7%.  

Esta distorção também pode ser vista quando se compara a diferença entre os níveis de tratamento de esgotos domésticos entre municípios de uma mesma região: enquanto São José dos Campos, uma das mais importantes cidades do Vale do Paraíba, trata 89% de seus esgotos domésticos, na cidade de Cruzeiro, distante apenas 128 quilômetros a jusante (correnteza baixo), o índice de tratamento cai a 0%, o que mostra que a preocupação com o saneamento básico não é uma unanimidade nem nacional nem regional. 

Outra fonte importante de poluição nas águas do rio Paraíba do Sul são as indústrias. A região atravessada pelo rio está entre as mais industrializadas do país, destacando-se o Vale do Paraíba, no Estado de São Paulo, e a cidade de Volta Redonda, no Estado do Rio de Janeiro, onde está localizada a CSN – Companhia Siderúrgica Nacional, a maior usuária individual de águas do rio, com um consumo de 10 m³/s, equivalente a toda a demanda industrial no trecho paulista do rio. Entre outros problemas, essa intensa poluição das águas tem colocado diversas espécies de peixes em risco de extinção, como é o caso da piabanha.

Fundada em 1946, a CSN foi, durante décadas, uma das maiores poluidoras das águas do Paraíba do Sul. Felizmente, com os avanços da legislação ambiental e das ações de fiscalização nos últimos anos, houve uma grande evolução no controle dos despejos de poluentes pela empresa. Mesmo assim, estudos realizados na região têm encontrado contaminações no solo e nas águas subterrâneas com substâncias tóxicas e cancerígenas como bifenilas policloradas (PCBs), cromo, naftaleno, chumbo, benzeno, dioxinas, furanos e xilenos, resíduos que foram descartados clandestinamente pela empresa  em aterros ilegais antes do ano 2000 e que até os dias atuais contaminam as águas do rio Paraíba do Sul

Também precisamos falar rapidamente dos problemas criados pela extração de areia na calha e margens do rio. Durante várias décadas, os areais do Vale do Paraíba foram a principal fonte desse insumo para a indústria da construção civil das Regiões Metropolitanas de São Paulo e de Campinas. Sem maiores preocupações com a fiscalização das autoridades estaduais, os areeiros devastaram imensas áreas de matas ciliares para atingir os valiosos depósitos de areia e deixaram no seu lugar gigantescas crateras, que foram abandonadas após o esgotamento do recurso. Sem qualquer compromisso com a recuperação dessas áreas, esses areeiros simplesmente partiam em busca de “terras virgens” para a instalação de novas cavas. Só bem recentemente, após o endurecimento da legislação ambiental no país, é que a atividade passou a ter um controle maior.

Cavas de areia no rio Paraíba do Sul

De acordo com estudos da AGEVAP – Associação Pró-Gestão da Bacia Hidrográfica do rio Paraíba do Sul, somente para atender as determinações do Código Florestal e garantir a recuperação mínima da cobertura vegetal na região (vide foto no alto), será necessário o plantio de 583 mil hectares de matas, algo equivalente a 147 vezes a área da Floresta da Tijuca. Os custos estimados para essa iniciativa superam a casa de RS 1 bilhão. Também se fazem necessários pesados investimentos em sistemas de coleta e tratamento de esgotos, de coleta e destinação de resíduos sólidos, no tratamento de efluentes industriais, entre outras iniciativas, visando a recuperação dos caudais e da qualidade das águas do rio Paraíba do Sul.

Enquanto nada disso é feito, as águas sofridas e poluídas do rio Paraíba do Sul continuam sendo responsáveis por mais de 60% dos caudais transferidos para a bacia hidrográfica do rio Guandu e pelo abastecimento de milhões de cariocas e fluminenses. Continuaremos no assunto na próxima postagem. 

6 Comments

    1. Muitos ainda estão presos aos tempos da carta de Pero Vaz de Caminha (1500), onde o escrivão da frota de Pedro Álvares Cabral informava ao Rei de Portugal que “as águas dessa terra são infinitas…”. Um ótimo dia!

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