Os topônimos de origem indígena estão presentes em nosso dia a dia em nomes de ruas, acidentes geográficos, cidades e, especialmente, nos nomes de muitos rios. No meu caso, onde escrevo diariamente falando dos rios e das suas áreas de entorno, esses topônimos muitas vezes fornecem pistas interessantes para entendermos a história ambiental de toda uma região.
Citando um rápido exemplo: minha cidade, São Paulo, foi fundada entre dois rios – o Tamanduateí e o Anhangabaú. O Tamanduateí era um rio muito piscoso e de águas límpidas, que eram usadas para o abastecimento da população. Nos períodos das chuvas, esse rio enchia e ocupava toda a região da várzea. Quando as águas baixavam, muitos peixes ficavam presos nas poças remanescentes, onde morriam após a água secar. Os índios que viviam na região coletavam esses peixes e chamavam essa área de várzea de Piratininga – “lugar onde se encontra o peixe seco”. Muitos desses peixes mortos eram comidos por formigas, o que atraía inúmeros tamanduás – o rio passou a ser conhecido como Tamanduateí ou “o rio dos tamanduás”. Já o rio Anhangabaú, palavra que significa “água dos maus espíritos”, era um lugar considerado mal-assombrado pelos índios e passou a ser usado pela população para o descarte do lixo, resíduos e esgotos da Vila de São Paulo de Piratininga.
Na cidade do Recife, capital do Estado de Pernambuco, a referência geográfica mais importante é o rio Capibaribe, palavra composta que provém da junção dos termos em tupi kapi, wara, y e pe. Kapi’wara, ou “comedor de capim” é o nome que os indígenas davam às capivaras. A palavra “y”, presente em uma infinidade de topônimos brasileiros, significa rio. Já a palavra “pe” é um advérbio de lugar. Capibaribe significa, literalmente, “o rio das capivaras”. Qualquer um que navegar pelas águas do rio Capibaribe atualmente, vai encontrar um corpo d’água altamente impactado pelo crescimento da cidade, margens urbanizadas e aterradas, águas muito poluídas, pouquíssimos remanescentes dos antigos e extensos manguezais e, com muita sorte, até poderá avistar uma ou outra capivara solitária teimando em sobreviver.
A triste sina das capivaras, que também é estendida a toda a fauna aquática ou semi-aquática que habitava a calha do Capibaribe – peixes, crustáceos, répteis, mamíferos e aves, está ligada diretamente à herança (no pior sentido da palavra) deixada pela cultura da cana-de-açúcar dos tempos coloniais, quando a cidade do Recife era o centro político e econômico da atividade açucareira do Brasil Colônia.
Quando os primeiros exploradores portugueses desembarcaram nas costas brasileiras em abril de 1500, toda a faixa litorânea entre o Rio Grande do Norte e o Rio Grande do Sul era coberta por uma densa floresta, que chamamos hoje de Mata Atlântica. Nas Regiões Sul e Sudeste, a Mata Atlântica avançava para o interior do continente, com alguns trechos chegando até o Paraguai e a Argentina. Na Região Nordeste, a Mata Atlântica ocupava uma faixa ao longo da costa, que tinha uma largura que variava entre 60 e 80 km. Os diferentes ecossistemas, que se formaram ao longo de todo um mosaico de sistemas florestais tropicais e subtropicais, concentravam uma das mais ricas biodiversidades do mundo.
A indústria da cana-de-açúcar na região Nordeste ocupou uma faixa de terra ao longo do litoral que ia do Estado do Rio Grande do Norte até o Sul da Bahia, na altura da cidade de Porto Seguro, nos antigos domínios da mata Atlântica. Os limites dessa faixa foram delimitados ao Norte pelos domínios da vegetação de babaçu e terras arenosas do Rio Grande do Norte e pelos ferozes índios aimorés do Sul da Bahia e Espírito Santo, que resistiram heroicamente e por um longo período ao avanço colonial. Zona de solo rico e profundo, com terrenos de decomposição e de sedimentação, com relativa abundância de chuvas, essa faixa de terra se espremia entre o mar e as serras da zona agreste, se alargando nas zonas de várzeas e brejos.
Agricultura e florestas são duas forças que não se combinam muito – tratamos disso em uma série de postagens anterior. A partir da década de 1530, quando teve início a colonização efetiva do Brasil e chegaram as primeiras mudas de cana-de-açúcar, começou um intenso processo de supressão da cobertura florestal para a formação de campos agricultáveis. Na região Nordeste, os profundos e férteis solos de massapê, garantiram excepcionais safras de cana e impulsionaram um sem número de engenhos produtores de açúcar, especialmente no trecho entre a foz do rio São Francisco, na divisa dos atuais Estados de Alagoas e Sergipe, e a Ilha de Itamaracá, em Pernambuco.
Esse paraíso tropical da agricultura colonial tinha, porém, um pequenino problema: as fortes chuvas “lavavam” os solos desnudos dos campos agrícolas, arrastando grandes volumes dos solos de massapê na direção das calhas dos rios e do oceano. Bastavam umas poucas colheitas de cana-de-açúcar para as terras perderem completamente a sua fertilidade. Isso, na época, não era um grande problema – existiam “infinitas” matas sobre os ricos solos de massapê, o que levou a uma contínua derrubada da floresta para a expansão das plantações de cana-de-açúcar.
Além da necessidade de espaço para as plantações, a indústria canavieira também tinha grandes necessidades de energia térmica para a produção do açúcar. A conta era relativamente simples – para produzir 1 kg de açúcar, os engenhos precisavam queimar cerca de 20 kg de lenha, o que implicava na necessidade de se derrubar cada vez maiores áreas de floresta. O resultado de todo esse conjunto de agressões ambientais ao longo de quase cinco séculos da indústria canavieira no Nordeste brasileiro foi a aniquilação quase total da Mata Atlântica local, o que, de quebra, levou junto vários rios da região.
A degradação que vemos atualmente nas águas da região nada mais é do que um reflexo de todo esse ambiente histórico e socioeconômico. No rio Capibaribe, a situação foi agravada pelo forte crescimento das populações urbanas, onde as agressões ambientais geradas pelas atividades agrícolas foram reforçadas com os lançamentos de esgotos e resíduos de todos os tipos, construção de aterros sobre antigas áreas de mangues para permitir o crescimento das cidades, ocupação de encostas de morros com supressão de fragmentos florestais remanescentes e caça predatória de animais. As capivaras aqui são um destaque: populações ribeirinhas afirmam que a carne do animal tem o mesmo sabor da carne de porco, com a vantagem de ser menos gordurosa.
Diferente de outros rios altamente poluídos como o Tietê e o Pinheiros, na cidade de São Paulo, onde as populações de capivaras voltaram a recolonizar as margens e a prosperar, no rio Capibaribe isso não acontece. Em São Paulo, apesar da intensa poluição dos rios, existem áreas naturais razoavelmente preservadas ao longo das calhas dos rios, que dão suporte à vida dos animais. Em Pernambuco, isso não acontece – as poucas capivaras remanescentes no rio Capibaribe se viram “ilhadas” em meio a mancha urbana, os canaviais e o Oceano Atlântico. A adaptação de um velho ditado popular resume bem a situação dos animais: se ficar, a poluição das águas pega; se correr, a população ribeirinha come.
Na esteira do desaparecimento das capivaras do rio Capibaribe, também se foram os peixes-boi, muitos jacarés-do-papo-amarelo, diversas espécies de peixes, guarás e outras aves, além de uma infinidade de outros animais que habitavam as matas e manguezais que existiam na região e que são encontrados numa frequência cada vez menor. Até os importantíssimos caranguejos dos manguezais, uma das fontes de proteína mais tradicionais das populações pobres dos mucambos (ou mocambos) e das áreas ribeirinhas, está cada vez mais raro. O Capibaribe é atualmente o 7° rio mais poluído do Brasil.
Chegou-se a um ponto tal onde, ou se muda o nome do rio Capibaribe, ou se realizam trabalhos sérios para a recuperação ambiental do rio e de sua importante bacia hidrográfica.
Legal!.
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