Muita gente que ler o título dessa postagem vai achar que estou falando de uma marca de cachaça muito popular em algumas partes da Região Nordeste. A conhecida cachaça Pitu é fabricada em Vitória de Santo Antão, uma cidade no Estado de Pernambuco. Na minha primeira viagem ao Nordeste, por volta de 1990, reparei muitas pessoas bebendo essa cachaça na beira da praia, sob um sol escaldante. Conversando com o dono de uma barraca, descobri que os populares faziam isso por causa do baixo custo da bebida – uma garrafa de cerveja equivalia a umas quatro garrafas de Pitu.
O pitu sobre o qual vamos tratar é o Macrobrachium carcinus, que também é conhecido popularmente como lagosta-de-água-doce, lagosta-de-São-Fidelix, ou ainda como lagosta-do-São-Francisco, entre outros nomes. A palavra pitu é de origem tupi e significa “casca escura”. Trata-se na verdade do maior camarão de água doce nativo do Brasil, que pode chegar até um comprimento de 50 cm e a um peso de 300 gramas. Os petiscos a base de pitu já foram muito populares nas praias do Nordeste, mas, infelizmente, estão ficando cada vez mais raros. E isto não acontece por falta de apreciadores da iguaria – o crustáceo é cada vez mais raro nas águas dos rios.
A primeira citação aos pitus é encontrada na famosa carta de Pero Vaz de Caminha, o escrivão oficial da frota de Pedro Alvares Cabral, escrita ao Rei de Portugal e relatando o descobrimento do Brasil. Caminha ficou admirado com o tamanho desses camarões e citou no seu texto: “alguns índios foram buscar mariscos e apenas acharam alguns camarões grossos e curtos, entre os quais vinha um muito grande camarão e muito grosso, que em nenhum tempo o vi tamanho”.
Os pitus são encontrados em ambientes de águas doces e salobras das regiões de estuário de pequenos a grandes rios da costa do Oceano Atlântico, desde a Flórida, no Sul dos Estados Unidos, passando por toda a América Central e Antilhas, Colômbia, Venezuela e Guianas. No Brasil, os pitus ocorrem do Amapá a Rio Grande do Sul. Os animais tem uma preferência por locais com águas correntes, com fundos rochosos e/ou arenosos e localizadas a altitudes inferiores a 200 metros em relação ao nível do mar.
O crustáceo tem corpo liso e grandes garras, especialmente pronunciadas nos machos da espécie. Os adultos tem uma casca com coloração marrom escura, onde se encontram manchas com cores mais claras. Os pitus apresentam um grande disformismo sexual, apresentando machos bem maiores que as fêmeas. A espécie possui uma altíssima taxa de fertilidade e fecundidade, com fêmeas produzindo entre 100 mil e 250 mil ovos. As larvas procuram ambientes com águas salobras, onde procuram locais com raízes de plantas e pedras para se esconder, fugindo dos seus inúmeros predadores. Conforme os pitus vão atingindo a idade adulta, eles passam a buscar ambientes de água doce.
De hábitos noturnos, o pitu é um predador agressivo, que se alimenta de pequenos peixes e crustáceos, inclusive de outros camarões. O animal também come algas e restos de animais mortos. Durante o dia, os pitus se escondem em brechas entre pedras, tocas no fundo arenoso ou em meio a vegetação, um comportamento que acaba sendo usado pelos pescadores na sua captura. Uma das formas mais comuns de captura dos crustáceos são as armadilhas artesanais feitas com fibras de folha de coqueiros e taquaras, com uma única abertura e onde é colocada uma isca. O pitu entra na armadilha e não consegue sair.
O pitu sempre esteve presente na dieta de populações ribeirinhas, especialmente nas regiões Norte e Nordeste. Entre as formais mais tradicionais de preparo destacam-se o preparo no alho e óleo, cozidos em água e sal, em moquecas e as famosas “pituzadas”, onde o crustáceo é acompanhado de arroz, salada e pirão. Em muitos trechos do litoral, infelizmente, a preparação desses pratos está ficando cada vez menos frequente devido ao desaparecimento dos pitus.
A destruição de áreas de manguezais, um dos habitats da espécie, está entre as causas do desaparecimento dos pitus. Os manguezais são verdadeiras maternidades para uma infinidade de espécies de peixes, crustáceos, vermes e aves, que encontram segurança em meio ao seu complexo e intrincado sistemas de raízes aéreas. É em ambientes desse tipo que as larvas do pitu se abrigam até conseguir atingir um tamanho que lhes possibilite viver em áreas mais abertas e onde estarão sujeitas ao ataque de predadores. Ironicamente, grandes trechos de áreas de manguezais do Nordeste estão sendo destruídos para a construção de tanques para a criação em cativeiro do camarão gigante da Malásia (Macrobrachium rosembergii).
A degradação da qualidade das águas e a redução dos caudais dos rios em virtude da construção de represas de usinas hidrelétricas ou devido à destruição de áreas florestais também tem contribuído para o desaparecimento da espécie. Na faixa do litoral do Nordeste, entre a Bahia e o Rio Grande do Norte, onde a Mata Atlântica foi praticamente devastada e os rios estão altamente degradados, os pitus simplesmente desapareceram. A captura excessiva também contribuiu para o desparecimento dos pitus em várias regiões.
Conforme já comentamos em inúmeras postagens, a faixa litorânea da Região Nordeste foi intensamente explorada ao longo dos primeiros séculos de nossa colonização para o plantio da cana e a produção do valioso açúcar, um dos mais valorizados produtos da nossa época colonial. A consequência mais dramática dessa intensa atividade econômica foi a destruição de todo o trecho nordestino da Mata Atlântica e das águas de muitos dos seus rios. Nas palavras do sociólogo, historiador e ensaísta brasileiro Gilberto Freire (1900-1987), no livro “Nordeste”, as águas límpidas e transparentes que permitiam os banhos de rio, as lavagens de roupas e louças transformaram-se em esgotos:
“O monocultor rico do Nordeste fez da água dos rios um mictório. Um mictório de caldas fedorentas de suas usinas. E as caldas fedorentas matam os peixes. Envenenam as pescadas. Emporcalham as margens. A calda que as usinas de açúcar lançam todas as safras nas águas dos rios sacrifica cada fim de ano parte considerável da produção de peixes no Nordeste.”
Em décadas mais recentes, foi o crescimento da população urbana em toda a Região a grande vilã da destruição das águas. O crescimento dessas cidades não foi acompanhado de obras de infraestrutura, especialmente para a coleta e o tratamento dos esgotos. Os rios da região se tornaram verdadeiras valas de esgotos a céu aberto. Exemplos desse descaso são os rios Capibaribe e Ipojuca, que fazem parte da lista dos 10 rios mais poluídos do Brasil.
A situação da espécie, que está ameaçada de extinção em várias regiões, levou as autoridades ambientais a proibirem a captura e a comercialização dos pitus, medida que, infelizmente, não tem sido muito eficaz – os crustáceos continuam sendo capturados e consumidos pela população. O IBAMA – Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, estabeleceu uma multa de R$ 5 mil para cada exemplar da espécie encontrado com pescadores e em restaurantes. Anos atrás, um restaurante na região da foz do rio São Francisco foi multado em R$ 240 mil pelo fato da fiscalização do IBAMA ter encontrado 24 pitus na geladeira do estabelecimento, o que comprova as dificuldades para a preservação da espécie.
Caso medidas mais efetivas para a preservação do pitu não sejam tomadas em extensas áreas do litoral brasileiro, as novas gerações só terão a chance de ver um exemplar da espécie estampado no rótulo de uma garrafa de cachaça…
Legal.
CurtirCurtido por 1 pessoa
[…] riscos de extinção. Entre as espécies citadas falamos, entre outras, de capivaras, dourados, pitus e piabanhas. A degradação da qualidade das águas e o represamento dos cursos d’água estão […]
CurtirCurtir