A AGRICULTURA IRRIGADA DESTRUIU O MAR DE ARAL NA ÁSIA CENTRAL

Na última postagem fizemos um breve resumo da trágica história do Mar de Aral. Localizado numa grande depressão entre o Cazaquistão e o Uzbequistão, na Ásia Central, o espelho d’água desse lago ocupava uma área total de 68 mil km², o que equivale a três vezes e meia a área do Estado de Sergipe. Com a retirada de grandes volumes de águas dos seus principais rios formadores para uso em projetos de agricultura irrigada, o lago praticamente secou. 

O Mar de Aral era a parte final da grande bacia hidrográfica endorreica formada pelos rios Amu Daria e Syr Daria. Nesse tipo de bacia hidrográfica, as águas não correm na direção dos oceanos, mas sim na direção de uma depressão no terreno, onde forma um lago ou uma planície alagável – a água se perde por evaporação.  

Como exemplos de bacias hidrográficas endorreicas podemos citar o Mar Morto, ponto terminal do rio Jordão, no Oriente Médio; o Lago Chade, na África Subsaariana; o Lago Titicaca, entre o Peru e a Bolívia, e também o Delta do rio Okavango, na África Austral. 

Os rios Amu Daria e Syr Daria são formados a partir de nascentes com origem no degelo de glaciares no alto da Cordilheira do Himalaia. O rio Syr Daria se forma a partir de duas nascentes no Quirguistão e uma no leste do Uzbequistão, percorrendo um total de 2.212 km até o Mar de Aral. O rio Amu Daria nasce nas Montanhas Pamir, na fronteira entre o Tadjiquistão, a China e o Paquistão, percorrendo cerca de 2.400 km até desaguar no Mar de Aral. 

Esses dois rios de águas permanentes são os maiores e mais importantes da Ásia Central. Desde tempos imemoriais, suas águas, juntamente com as águas do Mar de Aral, vêm sendo usadas pelas populações nômades e das cidades para dessedentação de rebanhos de animais, para o abastecimento de populações e para uso na agricultura. 

A história da Ásia Central e dos seus rios mudaria completamente com a formação da URSS – União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, após a Revolução de 1917. Desde meados do século XIX, a região já se encontrava dentro da área de influência política e econômica da Rússia, uma situação que se ampliou após a formação do grande bloco de repúblicas socialistas. 

Dentro da estrutura organizacional criada pelo Governo Central da URSS, cada região do bloco recebia um determinado grupo de atribuições econômicas. À Ásia Central coube o papel de produção de commodities agrícolas como trigo, cevada, milho e algodão. Os planejadores do Governo Central decidiram que a grande disponibilidade de água nos rios Amu Daria e Syr Daria viabilizaria o uso intensivo de sistemas de irrigação agrícola. 

Sem maiores estudos sobre os impactos ambientais e sem maiores questionamentos ao poder central da URSS, os Governos das Repúblicas Satélites da Ásia Central obedeceram cegamente às determinações de Moscou. Inicialmente, as grandes plantações se concentravam ao longo das margens dos rios. Grandes sistemas de adutoras e tubulações captavam a água e bombeavam até campos a poucos quilômetros da margem dos rios. 

Visando aumentar o total de terras irrigadas, os planejadores iniciaram diversos programas para a construção de grandes canais de irrigação. O primeiro desses projetos foi o Grande Canal de Ferghana, no Uzbequistão. Esse canal tem 270 km de extensão e foi construído em apenas 45 dias ao longo de 1939. Cerca de 160 mil trabalhadores uzbeques e tadjiques trabalharam na obra, “mostrando ao mundo a força dos povos da União Soviética

Ao longo dos anos seguintes, outros grandes canais de irrigação foram construídos por toda a Ásia Central. No final da década de 1940 foram concluídos canais em Kizil-Orda no Cazaquistão e na região de Taskent no Uzbequistão. Na década de 1950, foram construídos o Kara Kum, um canal com 800 km de extensão entre o rio Amu Daria e Ashkhadab, o sistema de irrigação de Mirzachol Sahra, o canal Chu no Quirguistão e o Reservatório de Bahr-i Tajik no Tadjiquistão. 

Com o uso intensivo de água em sistemas de irrigação, a produção agrícola das repúblicas da Ásia Central aumentou exponencialmente, um feito comemorado a extremos na propaganda oficial da União Soviética. Os altos custos ambientais desse triunfo agrícola, entretanto, jamais foram citados pelos dirigentes do Partido Comunista. 

O volume total de água do Mar de Aral era calculado em 1.100 km³ antes do início do uso da água dos rios Amu Daria e Syr Daria em grandes projetos de irrigação. Cerca de 10% desse volume de água se perdia anualmente por evaporação e era reposto pelos aportes de água desses dois rios. Com o início dos grandes projetos de agricultura, cerca de 20 km³ de água passaram a ser retirados a cada ano dos rios, um volume que foi crescendo ao longo das décadas seguintes. 

No início da década de 1960, a maior parte da água dos rios Amu Daria e Syr Daria já era desviada para uso em sistemas de irrigação por toda a Ásia Central. Entre os anos de 1961 e 1970 passou a ser observada uma redução anual de 20 cm no nível do Mar de Aral, uma redução que cresceu 350% até 1990. A partir de 1987, toda a faixa central do lago passou a ser tomada por grandes bancos de areia e o espelho d’água se dividiu em duas áreas distintas, uma ao Norte e outra ao Sul. 

Entre os anos de 1960 e 2000, o desconhecido Uzbequistão, país sem qualquer tradição na produção de grandes volumes de produtos agrícolas, passou a ocupar o 3º lugar entre os maiores produtores de algodão do mundo. As vizinhas Repúblicas do Cazaquistão, Tadjiquistão, Uzbequistão e Quirguistão também passaram a se destacar na produção agrícola, especialmente a de algodão. Por trás de todo esse sucesso se encontravam os ineficientes sistemas de irrigação agrícola da URSS. 

A redução do volume de água do Mar de Aral foi seguida pelo colapso da indústria pesqueira local, que chegou a responder por 1/6 de todos os pescados consumidos pelas populações da URSS. Além da redução dos volumes, as águas do Aral passaram a apresentar níveis de salinidade até cinco vezes acima do normal, condições inadequadas para a sobrevivência de peixes de água doce. A redução do espelho d’água também levou à destruição de bosques e florestas que circundavam todo o Mar de Aral. 

Duas regiões que perderam a maior parte de sua cobertura vegetal foram os deltas dos rios Amu Daria e Syr Daria. Um animal que abundava nessas matas era o rato-almiscarado (Ondatra zibethicus), um mamífero de origem norte-americana que foi introduzido na Ásia no início do século XX. A caça desse animal rendia uma produção de cerca de 500 mil peles por ano, uma “indústria” que foi completamente destruída junto com o Mar de Aral. Também se extinguiram inúmeras outras espécies de mamíferos, aves e répteis que viviam nas matas e águas dessa região. 

A maior parte da área que antes era ocupada pelo Mar de Aral agora forma um grande deserto de areias salgadas, conhecido entre os locais como Aral Kum. Além dos elevados níveis de sal, essas areias concentram grandes quantidades de resíduos de fertilizantes e defensivos agrícolas que foram usados nas plantações ao longo de várias décadas. Essas areias tóxicas são espalhadas pelos fortes ventos, provocando inúmeras problemos respiratórios nas populações remanescentes das poucas cidades que resistiram na região, problema semelhante ao que ocorre na região do Lago Salton, no Sul da Califórnia. 

O único trecho remanescente do lago é conhecido como Mar do Norte de Aral e corresponde a apenas 10% da área original. Esse pequeno corpo d’água sobreviveu graças aos esforços do Governo do Cazaquistão, que construiu uma barragem com cerca de 13 km nas proximidades do delta do rio Syr Daria, permitindo o acúmulo dos reduzidos caudais que chegam ao Aral. 

Resumindo – a agricultura irrigada em alta escala da antiga URSS – União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, destruiu o Mar de Aral e provocou uma das maiores tragédias ambientais de nossos tempos! 

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