
Em uma postagem anterior, falamos da gigantesca rede de corpos d’água do antigo Planalto de Piratininga, região onde nasceram e cresceram muitas das cidades da Região Metropolitana de São Paulo. Grande parte dessa enorme rede de rios, córregos e ribeirões acabou desaparecendo sob os solos da cidade – a maior parte foi canalizada para “criar” novos solos urbanos, para a construção de avenidas de fundo de vale ou simplesmente encobertos por razões estéticas.
Os grandes rios da região – Tietê, Pinheiros e Tamanduateí, passaram por grandes obras para a retificação dos seus e liberação de grandes áreas das antigas várzeas para a expansão da mancha urbana.
Se existiu uma outra região com características muito similares às do antigo Planalto de Piratininga esses eram o Campos de Curitiba, região onde nasceu e cresceu a cidade homônima e outras cidades da Região Metropolitana. Existem muitas controvérsias sobre a origem do nome da região, mas um grande número de especialistas afirma que a origem mais provável vem do tupi ku’ri tuba – “lugar com muitos pinheiros”.
A região onde se encontra a atual cidade de Curitiba era formada originalmente por uma imensa teia de rios, riachos e arroios, como se diz na região Sul do Brasil – os pequenos cursos d’água que se encontravam por todos os lados. Algumas fontes afirmam que, somando-se tudo, chegaremos próximo de 5.000 cursos d’água de todos os tamanhos como os formadores do famoso rio Iguaçu (palavra que, não por acaso, significa “rio grande” em língua tupi).
Em uma região tão úmida, os anfíbios encontraram um habitat perfeito. Conta-se que, por estas razões, a cidade de Curitiba era conhecida no século XIX como Sapolândia – a terra dos sapos. Inclusive, o curitibano há época era chamado de “o sapo”. Outro apelido bastante simpático e que não requer maiores explicações, é associado ao grande número de dias chuvosos na cidade: Chuviritiba.
Como aconteceu com São Paulo e outras grandes cidades brasileiras, conforme Curitiba foi crescendo, muitos rios e córregos da cidade foram sendo canalizados para liberar áreas para a construção de imóveis e avenidas. Na área central de Curitiba, para citar um exemplo, existem alguns rios e trechos de rios que foram canalizados e só são lembrados pela população quando alguma galeria desaba e suas águas são expostas à luz do dia – destaque para os rios Ivo, Belém, Água Verde e Juvevê, além de uma infinidade de córregos já canalizados e há muito esquecidos.
Uma das funções mais elementares dos córregos, riachos e rios de uma bacia hidrográfica é permitir o escoamento das águas excedentes nos períodos das chuvas – a famosa drenagem das águas pluviais. Ao longo de milhões de anos, a erosão provocada pelas águas destes cursos foi a responsável pela construção de uma complexa rede de canais de drenagem, o que criou toda a “face” do relevo da região.
Quando construímos as nossas cidades nestes terrenos, alteramos completamente a configuração destes canais de drenagem, eliminamos áreas de mata ciliar e de várzeas, além de impermeabilizamos os solos, o que em algum momento vai resultar nas famosas enchentes que vemos nas grandes cidades.
A canalização desenfreada de cursos d’água nas áreas urbanas amplifica todos estes problemas, uma vez que as calhas não recebem trabalhos de limpeza e manutenção e acabam assoreadas com resíduos sólidos de todos os tipos, areia e pedras. Há um outro agravante – esses rios “invisíveis” recebem grandes despejos irregulares de esgotos, que dificilmente são detectados pelas autoridades responsáveis pelo saneamento básico.
Região Metropolitana de Curitiba apresenta sérios problemas de poluição difusa na rede regional de corpos d’água, que se refletem diretamente no principal manancial da região – o rio Iguaçu é o 2° mais poluído do Brasil, uma verdadeira façanha se comparado ao enorme esforço que a maior Região Metropolitana do Brasil – São Paulo, com uma população quase cinco vezes maior, faz para colocar o rio Tietê na primeira posição deste ranking.
Dados oficiais da empresa responsável pelo saneamento básico de Curitiba afirmam que 100% dos esgotos da cidade são coletados por suas redes de esgotos e 91,26% deste volume é tratado (2016). Políticos e autoridades locais costumam afirmar que Curitiba é a “Capital Ecológica” do Brasil. Porém, quando analisamos a situação ambiental do rio Iguaçu, percebemos que existe alguma coisa errada com estes números.
Considerando que o rio mais poluído do país, o Tietê, atravessa uma região metropolitana com mais de 20 milhões de habitantes e com graves problemas de lançamento de esgotos in natura na extensa rede hidrográfica regional, é uma verdadeira façanha o rio Iguaçu ocupar o posto de segundo rio mais poluído do país com esses números de coleta e tratamento de esgotos em Curitiba.
Se, numa conta rápida, se descontar o volume de esgotos tratados em Curitiba e se considerar, hipoteticamente, que todo o restante da população da Região Metropolitana (3,5 milhões de habitantes em 2016) não possui nenhuma coleta, são os esgotos gerados por pouco mais de 1,5 milhão de habitantes os responsáveis por toda a poluição do rio Iguaçu.
Esse número me leva a uma dúvida cruel: ou os números do saneamento básico na Região Metropolitana de São Paulo são muito melhores do que se anuncia ou existe alguma coisa muito “estranha” com os dados divulgados da coleta e tratamento de esgotos em Curitiba – a conta não fecha!
“Matemágicas” à parte, o mapeamento e o conhecimento da rede de rios “invisíveis” é o melhor caminho para a solução dos problemas de drenagem pluvial e de lançamento de esgotos de forma difusa e clandestina em uma cidade como Curitiba.
Melhor ainda: seguindo uma nova tendência mundial – a reabertura ou, como costumo chamar, a “descanalização” de rios e córregos urbanos, é uma das melhores formas de expor os problemas das águas subterrâneas para a população e permitir que se realize a recuperação integral dos problemas ambientais que foram varridos para o subsolo das cidades. Um exemplo admirável dessa nossa filosofia pode ser visto na cidade de Seul, na Coréia do Sul.
A cidade de Curitiba ocupa uma área de 432 km², o que corresponde a um quarto da superfície da cidade de São Paulo, e possui 6 bacias hidrográficas, sendo a maior delas a do rio Barigui, que ocupa uma área equivalente a 150 km², seguida pelo rio Iguaçu, com uma bacia hidrográfica de 68 km². Também merece destaque a bacia hidrográfica do rio Passaúna, com cerca de 38 km² – esse rio forma a importante Represa do Passaúna, principal manancial de abastecimento da Região Metropolitana.
Quem visita a cidade de Curitiba, fica maravilhado com a beleza e com a urbanização da cidade. Muitas áreas verdes, praticamente nenhuma grande área ocupada por favelas ou por bairros com construções de baixa qualidade, algo muito diferente da caótica e tumultuada urbanização da cidade de São Paulo. Para decepção geral, os subsolos das duas cidades guardam os mesmos problemas – uma imensa rede de corpos d’água poluídos e escondidos sob uma grossa camada de concreto e terra.
Resumindo, existe uma grande diferença ambiental entre essas duas cidades cercadas por Mata Atlântica e com muitas semelhanças em seus territórios – Curitiba escondeu seus problemas da rede hídrica sob o “tapete”. Infelizmente, a poluição que os olhos não veem, o nariz, normalmente, sente…