
Sempre que falamos ou pensamos do Egito é quase que automático que imagens das pirâmides ou do rio Nilo surjam em nossa mente. A civilização egípcia foi uma das mais importantes da história da humanidade e importantes obras e feitos desse povo estão sendo descobertos quase que diariamente.
A agricultura foi a grande mola propulsora da riqueza do antigo Egito. As cheias anuais do rio Nilo cobriam amplas extensões de suas margens com um húmus de altíssima fertilidade, permitindo a produção de grandes quantidades de alimentos para a sua população e também para a comercialização com nações vizinhas.
O Egito ocupa uma área total de pouco mais de 1 milhão de km2, porém, a maior parte desse território é formado por solos desérticos e áridos. O país possui uma população de aproximadamente 90 milhões de pessoas, sendo que 99% desse total vive em uma área equivalente a 5,5% do território do país às margens e na região do Delta do rio Nilo.
Essa extrema dependência do país e de sua grande população das águas do rio Nilo está começando a mudar. Uma área equivalente a 50 mil hectares de deserto na província de Minya, no Sul do Egito, está sendo transformada em terras agrícolas. Os antigos solos áridos agora abrigam gigantescas plantações de beterrabas sacarinas, além de trigo, milho e grão de bico.
O projeto está sendo desenvolvido desde 2018, pela Canal Sugar Company, uma sociedade anônima egípcia com capital majoritário dos Emirados Árabes Unidos que foi criada com o objetivo de criar uma das maiores empresas produtoras de açúcar de beterraba do mundo e a maior do Egito e de todo o Oriente Médio.
A sede do empreendimento fica a cerca de 300 km ao Sul do Cairo, a capital do Egito, com uma estimativa total de investimentos da ordem de US$ 1 bilhão. Cerca de 50 mil trabalhadores deverão ser empregados nas plantações e outros 1.500 na fábrica e nos serviços de armazenamento e transporte do açúcar e de outros produtos.
De acordo com informações da Canal Sugar Company, o consumo anual de açúcar no Egito é de 3,4 milhões de toneladas enquanto a produção chega a apenas 1,1 milhão de toneladas. A meta da empresa é suprir essa lacuna entre a produção e o consumo, tornando o país autossuficiente em açúcar.
A escolha do local para a implantação do empreendimento foi antecedida de detalhados estudos geológicos do solo, onde se identificou a existência de grandes reservatórios subterrâneos de água. Uma empresa chinesa especializada na exploração de petróleo e gás foi contratada para realizar a perfuração de poços de grande profundidade. Estão previstos de 330 a 350 poços em todo o empreendimento.
A fábrica de açúcar iniciou suas operações de forma experimental em maio de 2022, com uma capacidade de produção de 900 mil toneladas/ano. Nessa fase, a fábrica passou a receber um volume equivalente a 2 mil toneladas de beterrabas ao dia. Conforme o ritmo de produção foi aumentando, a unidade passou a processar 18 mil toneladas de beterrabas por dia.
Além de açúcar branco para consumo no mercado interno do Egito, a fábrica tem capacidade para produzir cerca de 216 mil toneladas de polpa de beterraba e 240 mil toneladas de melaço, produtos voltados para o mercado internacional. A meta é atingir capacidade de produção máxima até 2025.
O pico de produção de beterrabas no Egito começa no início de março e vai até meados de julho, época do verão no Hemisfério Norte. Para permitir o armazenamento do açúcar e dos demais produtos processados, o projeto incluiu a construção de um silo com capacidade para armazenar cerca de 417 mil toneladas.
A beterraba-sacarina (Beta vulgaris L.) tem a polpa branca/amarelada e é prima da beterraba comum de polpa roxa que nós plantamos aqui no Brasil. Essa planta possui uma elevada concentração de sacarose, sendo muito cultivada em países de clima temperado para a produção de açúcar e de etanol.
Além de preencher uma importante lacuna no mercado interno do açúcar no Egito, esse projeto abre novas perspectivas para a produção agrícola no país. O Egito é extremamente dependente das águas do rio Nilo, um recurso que vem sendo cada vez mais ameaçado pela exploração dos demais países que formam a bacia hidrográfica.
Além de Egito e Sudão, países com longa história e tradição cultural, a bacia hidrográfica do rio Nilo também inclui Etiópia, Uganda, Tanzânia, Quênia, República Democrática do Congo, Burundi e Ruanda. Esses países sempre foram colocados num segundo plano em questões ligadas ao Nilo, especialmente devido ao histórico colonial da África.
Entre 1882 e 1952, o Egito esteve sob a administração colonial do Império Britânico, domínio esse que se estendia rumo ao Sul e incorporava grande parte da região, incluindo o Sudão Anglo-Egípcio, Uganda e África Oriental Britânica – no meio dessa grande região, existia um enclave independente, o Reino da Abissínia (atual Etiópia), e colônias da Bélgica.
Entre os países que formam a atual bacia hidrográfica do rio Nilo – Egito, Sudão, Uganda, Tanzânia e Quênia, foram formados a partir do desmantelamento dessa estrutura colonial britânica. A República Democrática do Congo, Ruanda e Burundi, são ex-colônias belgas.
A fim de atender aos seus próprios interesses, o Governo Britânico criou um “tratado” para a divisão das águas do rio Nilo, onde 80% do recurso ficava reservado para o Egito e o Sudão. Além do uso pleno das águas do rio, esses países passaram a ter o direito de vetar quaisquer projetos de aproveitamento hidráulico a montante da bacia hidrográfica que, eventualmente, pudessem contrariar seus interesses.
Esse “tratado” foi reconfirmado em 1959 e os demais países foram obrigados a se conformar com os 20% restantes das águas do rio Nilo. Não houve qualquer critério geográfico, tanto em aspectos físicos quanto humanos, que justificasse esses percentuais – a partilha das águas seguiu exclusivamente interesses políticos e econômicos dos ingleses.
De alguns anos para cá, entretanto, os países com participação minoritária no acordo de partilha das águas do rio Nilo passaram a se rebelar e estão construindo barragens de hidrelétricas e sistemas de irrigação para o aproveitamento dessas águas sem dar satisfações para o Egito e o Sudão. Muitos analistas geopolíticos enxergam enormes riscos de um conflito militar entre esses países numa disputa pelas águas do rio Nilo.
Dentro desse contexto explosivo, desenvolver novas formas de cultivo agrícola em áreas que não dependam das águas do rio Nilo é algo bastante “saudável” para os egípcios.