
Em junho de 2019, publicamos uma postagem aqui no blog falando das capivaras que vivem nas águas altamente poluídas dos rios Tietê e Pinheiros aqui na cidade de São Paulo. Esses animais, que passaram a fazer parte das paisagens da cidade, teimam em sobreviver em ambientes altamente inóspitos.
Quem circula pelas Avenidas Marginais da cidade ou ainda pelas ciclovias existentes nas margens do rio Pinheiros, já se acostumou a ver famílias inteiras de capivaras dormindo preguiçosamente no meio da vegetação ou nadando nas águas escuras e poluídas dos rios. Por mais dramática que seja a vida das capivaras paulistanas, nunca se viu um grande movimento popular ou de autoridades em prol do bem-estar desses animais. Existem sim movimentos isolados de alguns grupos.
Ao longo dos últimos 4 anos, a postagem das capivaras teve cerca de 3,2 mil visualizações, um número bastante razoável para os padrões do blog. Nas últimas semanas, entretanto, passamos a observar um aumento exponencial nas visualizações dessa postagem. A responsável por toda essa movimentação foi Filó, uma pequena capivara que ganhou grandes espaços nas redes sociais e nas manchetes de jornais e telejornais de todo o mundo. Pesquisando no Google (em 06/05/2023) se encontram mais de 9,4 milhões de referências ao assunto.
Num rápido resumo: Filó estava sendo criada como uma espécie de bicho de estimação por um jovem de 23 anos que mora numa fazenda no interior do Estado do Amazonas – Agenor Tupinambá. Influenciador digital, Agenor começou a fazer postagens da vida de Filó em sua propriedade, conquistando simpatizantes e críticos aos montes.
Após uma denúncia à fiscalização do Ibama, foi montada toda uma operação de resgate cinematográfica e midiática do tipo para “mostrar serviço”. Os fiscais apreenderam a pequena capivara e multaram o rapaz em R$ 17 mil. O caso, entretanto, ganhou forte repercussão nas redes sociais e nos meios de comunicação, mostrando muito da hipocrisia dos “ambientalistas de plantão”.
Filó, como grande parte dos leitores já devem saber, teve a mãe morta por indígenas (são os únicos que podem caçar animais silvestres) na região de Autazes, município a pouco mais de 100 km de Manaus no Estado do Amazonas. Segundo o relato de Agenor, um de seus primos ganhou a filhote dos indígenas e depois o repassou a ele como um presente.
Até onde foi possível observar nos vídeos produzidos por Agenor, Filó vivia solta na fazenda de Marcelo, com livre acesso a rios e a matas. Após a apreensão, o animal foi evado para uma sede do Ibama em Manaus e colocado em uma pequena gaiola. Uma deputada estadual do Estado do Amazonas teve acesso ao local e filmou as precárias condições do lugar.
Muito pior: a Deputada Joana D’Arc teve acesso ao estoque de vacinas e medicamentos veterinários do lugar, encontrando uma enorme quantidade de produtos vencidos. Esses vídeos foram usados num processo judicial que pedia a devolução de Filó a Agenor Tupinambá, o que foi concedido provisoriamente pela justiça.
Antes de qualquer comentário é preciso esclarecer que a Lei 9.605/98, mais conhecida como Lei de Crimes Ambientais, trata dos casos de animais silvestres. O inciso III do artigo 29 dessa lei, que trata do tráfico de animais silvestres, proíbe a venda, exportação, aquisição, guarda em cativeiro ou transporte de ovos ou larvas, sem a devida autorização.
Essa lei esclarece que animais da fauna silvestre como as capivaras são todos aqueles pertencentes a espécies nativas, migratórias e quaisquer outras, aquáticas ou terrestres, que tenham todo ou parte do seu ciclo de vida ocorrendo dentro do território brasileiro ou em águas jurisdicionais brasileiras.
Dito isso dou minha opinião: o bem-estar de Filó foi uma das últimas preocupações dos denunciantes da questão – esse povo queria mesmo era “lacrar” com a história e posar para as fotografias como os salvadores da Amazônia e do meio ambiente. Quem acompanha as postagens aqui do blog sabe que defendemos a preservação ambiental com racionalidade e seriedade, coisas que passaram bem longe desse caso.
Além das capivaras paulistanas que já citamos, existem inúmeras outras vivendo em áreas degradas de grandes cidades brasileiras. Vou citar de cabeça os casos de muitas lagoas da cidade do Rio de Janeiro e do rio Capibaribe na cidade do Recife. Se é para cuidar do bem-estar da espécie, os animais que vivem nesses locais deveriam ter prioridade absoluta.
Para ilustrar o drama que é a vida desses animais, vou relatar um caso pessoal:
Em 2003, eu trabalhei nas obras de construção de uma ponte sobre o rio Tietê na Zona Leste da cidade de São Paulo junto a divisa com Guarulhos. Certo dia, um dos funcionários me avisou que um grupo de operários havia capturado uma capivara na margem do rio e que estavam programando um churrasco para o fim de semana, onde a capivara seria o prato principal.
Preocupado com as repercussões do caso (tratava-se de obra pública do Governo municipal com inúmeras restrições ambientais) avisei as equipes de segurança e de meio ambiente da obra. Depois de uma conversa “dura” com os operários, a capivara foi libertada e nunca mais esse problema se repetiu.
Passada a crise, eu cheguei a conversar com alguns desses operários e fiquei sabendo que os churrascos de capivaras e outros animais silvestres era uma espécie de tradição do grupo – sempre que eles conseguiam capturar um desses animais a festança do fim de semana estava garantida.
Eu imagino que histórias desse tipo se repitam todos os dias por todos os cantos do país, sem que estardalhaços midiáticos sejam feitos pelos “ambientalistas de ar condicionado”, como eu costumo chamar. Porém, o resgate de Filó é o que representa a salvação dos animais silvestres ameaçados!
Faço votos que o debate público criado a partir da história de Filó e de Agenor Tupinambá possa resultar em propostas realmente efetivas e funcionais para a proteção da fauna silvestre. E que fique bem claro – nem de longe eu defendo a criação desses animais como pets (aliás, existem animais domésticos resgatados em abrigos por todo o Brasil a procura de um lar).
Proteção e cuidado para a fauna silvestre sim, espetacularização não!
Encerrando: a imagem que ilustra esta postagem é de autoria de Eduardo Lima, artista plástico baiano, que resolveu homenagear Agenor Tupinambá e Filó.