A SUA BENÇÃO SÃO FRANCISCO

São Francisco

No meu último post falei sobre os desencontros de alguns dos números do Projeto de Transposição das Águas do Rio São Francisco – há água “de menos” no Rio para água “de mais” necessária para uso na transposição. Pode até parecer uma diferença pequena, mas, para um rio em situação sofrível, cada metro cúbico pode fazer diferença. Uma forma de entender o problema é imaginar uma pessoa extremamente doente e que seja obrigada a doar sangue para um outro doente – por melhor que seja a intenção, o doador poderá ter a sua saúde completamente comprometida com este ato. Antes que se façam planos e mais projetos para o uso das águas que serão retiradas da bacia hidrográfica do São Francisco para uso na transposição, é fundamental que se desenvolvam ações para revitalizar as margens, nascentes, tributários, matas ciliares, entre outros imensos problemas, garantindo aumento na produção e na qualidade das águas do Rio.

Caso você tenha interesse em pesquisar mais sobre o Projeto de Transposição das Águas do Rio São Francisco, recomendo que procure informações sobre o processo de licenciamento ambiental da obra. Como sempre acontece em obras de grande porte, as autoridades ambientais impuseram uma série de condicionantes para a liberação do licenciamento – uma série de programas ambientais foram propostos para compensar, atenuar e reverter os impactos ambientais negativos produzidos pelas obras. Destaco alguns destes programas: Programa de Recuperação de Áreas Degradadas, Programa de Compensação Ambiental, Programa de Prevenção à Desertificação, Programa de Conservação e Uso do Entorno e das Águas dos Reservatórios, Programa de Conservação da Fauna e da Flora e Programa de Educação Ambiental – é fundamental que estes e outros programas sejam implementados o quanto antes para ajudar a reverter alguns dos males crônicos que estão destruindo a bacia hidrográfica do Rio São Francisco e que se garanta, no futuro, a disponibilidade de água para todos.

A água usada sem controle e sem critério para fins de agricultura, por exemplo, normalmente resulta em grandes desastres ambientais – apresentei alguns exemplos destas tragédias. No primeiro post desta série, apresentei os problemas do Mar de Aral na Ásia Central – as águas dos rios formadores do Aral, o Amu Daria e o Syr Daria, passaram a ser usadas descontroladamente para irrigação de campos de algodão e o grande lago de outrora acabou se transformando num grande deserto de areias salgadas. Outros exemplos citados foram o Mar Morto, na fronteira entre Israel e Jordânia, o Lago Chade na África e o Rio Colorado no Sudoeste dos Estados Unidos. Citei outras fontes de água em risco iminente: o Delta do Rio Okavango no Sul do continente Africano e o Lago Titicaca, na fronteira entre a Bolívia e o Peru; na Bolívia, apresentei também o caso do Lago Poopó, que entrou em colapso após obras que desviaram as águas do Rio Desaguadero, seu principal tributário, para áreas de irrigação. Logo, toda e qualquer preocupação com o futuro do Rio São Francisco é altamente relevante.

Também citei o caso dos espertalhões que tinham acesso a informações privilegiadas das áreas que seriam desapropriadas para a formação da Represa de Sobradinho – os gatunos convenciam os pobres sertanejos a venderem suas terras a preço de banana e faturavam alto com as indenizações pagas pela concessionária responsável pelas obras. Quantos novos vivaldinos não tiveram acesso a informações antecipadas das áreas que seriam atravessadas pelos canais dos Eixos Norte e Leste dos Sistema de Transposição do Rio São Francisco e saíram comprando grandes extensões de terras desvalorizadas a baixos preços, ficando a esperar a chegada das águas, quando faturarão milhões com a produção de frutas e outras culturas irrigadas?

As obras já concluídas e ainda em execução estão literalmente carregadas de denúncias de superfaturamento, desvios de recursos, problemas de execução e falhas de projeto – frequentemente recebemos notícias e vídeos mostrando canais com paredes rompidas, vazamentos de água, barragens se desmanchando com a força da correnteza entre outros problemas. É fundamental que se apure tudo, que se processem e prendam os responsáveis e, o mais importante, que se corrijam os problemas e quaisquer erros de projeto – é fundamental que o Sistema de Transposição das Águas do Rio São Francisco funcione, senão perfeitamente, da melhor maneira possível.

Encerrando, lembro que muito tem se falado dos 12 milhões de sertanejos que serão beneficiados com a chegada das águas da transposição – entretanto, fala-se pouco das centenas de obras menores que serão necessárias para trazer as águas desde os canais da transposição até as pequenas vilas e cidades; estas obras incluem pequenos canais, adutoras, estações de bombeamento e de tratamento, além dos sempre esquecidos sistemas de coleta e tratamento de esgotos. Que todos fiquem de olho e cobrem providências das autoridades locais.

Rogo ao bom São Francisco que continue a zelar pelas águas do “seu” Rio e que ilumine o coração e a mente dos homens – precisamos muito disto!

A TRANSPOSIÇÃO DAS ÁGUAS DO RIO SÃO FRANCISCO E OS NÚMEROS

Donald Duck

Eu devia ter uns 6 ou 7 anos quando assisti pela primeira vez a animação O Pato Donald no País da Matemágica (Donald in Mathmagic Land, em inglês). O filme mostra as confusões do atrapalhado personagem numa aventura através do mundo dos números – se você ainda não viu, recomendo. Lembrando do filme, passei a usar de uns anos para cá o termo “matemágica” para designar “equações, fórmulas e projetos públicos mirabolantes onde os cálculos não fecham” – e os números da Transposição do Rio São Francisco me enchem de desconfiança.

Sem entrar no mérito da necessidade inadiável do abastecimento de água a milhões de pessoas nas regiões do Semiárido nordestino, a forma como o Projeto da Transposição do Rio São Francisco foi vendida para o país e como vem sendo implantado, tem revelado algumas “imprecisões” nos números, o que preocupa muita gente. Vejam:

A vazão média anual do Rio São Francisco que você vai encontrar na literatura especializada é de 2.846 metros cúbicos por segundo, variando entre 1.077 m³/s nos períodos de seca e 5.290 m³/s na estação das chuvas (dados da ANA – Agência Nacional de Águas). Quando a primeira expedição exploratória portuguesa liderada por Américo Vespúcio descobriu a foz do Rio em 1501, verificou-se que os poderosos caudais de água doce avançavam até 4 quilômetros mar a dentro – o Velho Chico era, na época, um rio de respeito.

Entretanto, conforme demonstramos aqui ao longo de dezenas de postagens, as águas preciosas do Rio São Francisco já não correm tão fartas e fáceis como no passado – em meados de maio último, a CHESF – Companhia Hidrelétrica do Rio São Francisco, reduziu as vazões das barragens de Sobradinho e de Xingó para míseros 650 m³/s, com o objetivo de preservar ao máximo a lâmina d’água – o nível de Sobradinho é o menor em seus 38 anos de história e está abaixo dos 15%. Faz muito tempo que a vazão real do Velho Chico não chega nem perto da vazão histórica mostrada nestes manuais.

Pesquisando os dados que foram usados na proposição do Sistema, encontrei um interessante vídeo publicado pela EMBRAPA – Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária: Caminho das Águas. O vídeo mostra que, para efeito de cálculo, usou-se um valor médio de vazão para o Rio São Francisco de 1.850 m³/s; também se informa que o desvio de água da bacia hidrográfica para a transposição seria de “apenas” 1,4%. Feitos os devidos cálculos usando estes valores, conclui-se que o desvio de água para fins da transposição corresponde a uma vazão de 25,9 m³/s, um número que está muito próximo dos valores divulgados como vazão média projetada para o Sistema: 16,4 m³/s no Eixo Norte e 10 m³/s no Eixo Leste.

Em termos absolutos, estamos falando de aproximadamente 37,3 bilhões de litros de água por dia – para abastecer uma população de 12 milhões de pessoas, conforme divulgado pela propaganda oficial, será necessário reservar 1,2 bilhão de litros deste total (considerando-se o consumo mínimo per capita de 100 litros/dia, recomendado pela OMS – Organização Mundial da Saúde). Observe que, a grosso modo, os números fazem sentido.

Porém, existem perdas de água que não estão sendo consideradas nos cálculos:

Perdas de água por evaporação: O Projeto de Transposição do Rio São Francisco é o que se chama “sistema aberto” – são canais e reservatórios onde a água fica exposta ao sol intenso e ventos do Semiárido, e parte da água evapora e se perde;

Perdas de água por vazamentos nos canais, túneis e aquedutos: Considerando que os Eixos Norte e Leste tem aproximadamente 620 km de comprimento, é improvável que não existam trincas e fendas nos revestimentos de concreto, por onde se perderão volumes consideráveis de água;

Perdas de água por infiltração no solo: De acordo com as informações oficiais, o Projeto de Transposição contará com, pelo menos, 27 reservatórios onde há grandes chances de perdas de água por infiltração no solo.

Observem que não estou considerando a água absorvida pela vegetação, os desvios clandestinos e o “roubo” de água ao longo dos canais. Sem querer ser muito rigoroso, eu consideraria pelo menos uns 30% de perda de água neste Sistema (a perda média em sistemas de abastecimento de água no Brasil é estimada em 37%). Para compensar essa perda será necessário retirar, pelo menos, mais 30% de água ou 7,7 m³/s de água da bacia hidrográfica do Rio São Francisco – portanto, nós não estamos falando mais de 25,9 m³/s e sim de 33,67 m³/s de água para fins de transposição.

Há uma outra sutileza na apresentação do Sistema: apesar dos números médios de vazão informados serem relativamente baixos, os Eixos Norte e Leste foram projetados para transportar volumes de água bem maiores: respectivamente, 99 m³/s e 28 m³/s. Cedo ou tarde, com a implantação de projetos de agricultura irrigada ao longo dos canais e reservatórios, haverá uma pressão imensa dos produtores por volumes cada vez maiores de água. Só para lembrar: as atividades agropecuárias são grandes consumidoras de água, absorvendo até 70% das reservas disponíveis em uma região.

Na “equação” deste Sistema, a vazão do Rio São Francisco está superdimensionada, o volume de água retirado para transposição está minimizado e não estão sendo consideradas as possíveis perdas de água no sistema. E, para pensar na cama, a construção do Sistema de Transposição do Rio São Francisco já custou, até este momento, o dobro do que havia sido orçado – haja “matemágica” para tanta imprecisão nos cálculos.

É por isto que tem tanta gente preocupada com os rumos deste Projeto…

FALANDO DAS OBRAS DO PROJETO DE TRANSPOSIÇÃO DAS ÁGUAS DO RIO SÃO FRANCISCO

Estação de Bombeamento

De acordo com dados do Ministério da Integração Nacional, o Projeto de Transposição das Águas do Rio São Francisco compreende a construção de um complexo conjunto de obras civis onde se incluem: 14 aquedutos, 9 estações de bombeamento, 27 reservatórios, 9 subestações elétricas com potência de 230 kW, 270 quilômetros de linhas de transmissão em alta tensão e 4 túneis – um destes túneis, o Cuncas I, com 15 quilômetros de extensão, é o maior já construído na América Latina para o transporte de água. Essas obras integrarão dois grandes Eixos de canais: O Eixo Norte, com aproximadamente 400 km de extensão, e o Eixo Leste, com aproximadamente 220 km de extensão.

Antes de passarmos à descrição destas obras, é importante entendermos a história do relevo local e os problemas que os desníveis dos terrenos criam para a transposição das águas:

O vale do Rio São Francisco é o que se chama em geologia estrutural de Graben ou fossa tectônicaum vale alongado com um fundo plano, resultado do afundamento de um grande bloco do território devido aos movimentos combinados de falhas geológicas paralelas ou quase paralelas. Sem entrar em maiores detalhes, esse tipo de afundamento se deve à movimentação das Placas Tectônicas, também conhecido como Tectônica Global – pesquise sobre isto.

A palavra Graben é de origem alemã e significa escavação ou vala. Os paredões que cercam a área afundada são chamados de Horst. Essa fossa tectônica original, num primeiro momento, formou um grande lago alongado, orientado no sentido Norte-Sul; com o tempo, a água deste lago encontrou uma falha no paredão (Horst) na direção Leste, através da qual começou a fluir em direção ao Oceano Atlântico – ao longo de um processo erosivo de milhões de anos, a água escavou as rochas nesta falha no paredão, formando o que conhecemos hoje como o Canyon (a palavra em português é canhão) do Rio São Francisco. Os processos geológicos que se seguiram, especialmente a erosão e a sedimentação, formaram a paisagem que conhecemos hoje como a bacia hidrográfica do Rio São Francisco.

Para que se consiga levar a água desde a depressão onde se encontra o vale do Rio São Francisco até os sertões de Pernambuco, Paraíba, Ceará e Rio Grande do Norte, é necessário que se vença a altitude do relevo do antigo paredão que surgiu ao Norte do Rio São Francisco. No caso do Eixo Norte, a altura a ser vencida será de 160 metros acima do nível do Rio São Francisco na área de captação, próxima da cidade de Cabrobó em Pernambuco; no Eixo Leste as altitudes são bem maiores: para atender áreas do Semiárido Pernambucano, a água precisará ser elevada a uma altura de 500 metros acima do nível do Rio na área de captação na barragem de Itaparica, no município de Floresta em Pernambuco; no ramal que segue na direção do Semiárido Paraibano, a altitude chega aos 300 metros. Para vencer esses grandes desníveis, o Sistema contará com 9 estações de bombeamento (3 no Eixo Norte e 6 no Eixo Leste), onde poderosas bombas hidráulicas alimentadas por energia elétrica captam a água nos canais e reservatórios, bombeando “morro acima”.  Para facilitar o entendimento, imagine um imóvel com três andares: uma primeira bomba capta a água ao nível do solo e eleva até uma caixa d’água no primeiro andar; uma segunda bomba repete o processo elevando a água até o segundo andar e uma terceira bomba completa o processo, elevando a água até uma caixa d’água no terceiro andar; a partir deste ponto mais alto a água será distribuída por tubulações para todos os cômodos da construção usando a força da gravidade. O conceito do Sistema de Transposição do Rio São Francisco é exatamente este – eleva-se a água até reservatórios em pontos altos da região e se distribui para as regiões mais baixas pela ação da força da gravidade através de canais, aquedutos e túneis, numa declividade média de até 3% (isso significa que a cada 1 km percorrido, a água desce uma altura equivalente a 30 metros).

Através do Eixo Norte do Projeto, ainda em construção, a água será distribuída entre os sertões de Pernambuco, Paraíba, Ceará e Rio Grande do Norte, seguindo através de 400 km de canais, alimentando quatro rios, três sub-bacias do São Francisco (Brígida, Terra Nova e Pajeú) e mais dois açudes: Entre Montes e Chapéu.

No Eixo Leste, que já possui um ramal em operação chegando até o município de Monteiro na Paraíba, serão 220 km de canais, parte levando água até o Rio Paraíba, depois de passar nas bacias dos Rios Pajeú e Moxotó, e outra parte atendendo regiões do Semiárido de Pernambuco.

As capacidades máximas de vazão de água nos Eixos Norte e Eixo Leste serão, respectivamente, de 99 m³/s e 28 m³/s; as vazões médias, porém, serão mais baixas: 16,4 m³/s no Eixo Norte e 10 m³/s no Eixo Leste. De acordo com estimativas do Governo Federal, quando todo o Sistema de Transposição estiver em plena operação, uma população total de 12 milhões de pessoas será beneficiada com as águas do Rio São Francisco.

Esses números grandiosos e mágicos escondem alguns problemas, que trataremos no nosso próximo post.

OS CONCEITOS DE BACIA HIDROGRÁFICA E DE TRANSPOSIÇÃO ENTRE BACIAS HIDROGRÁFICAS

Telhado

Para que você leitor entenda perfeitamente o que é o famoso Projeto de Transposição das Águas do Rio São Francisco, incluindo todas as suas implicações técnicas e operacionais, é fundamental que você conheça alguns conceitos de hidrologia, que é a ciência que estuda, entre outros temas, a ocorrência, a circulação e distribuição das diferentes formas de água existentes na superfície terrestre, além de algumas informações de geografia e geologia. Vamos por partes.

Em diversas das postagens aqui publicadas, falamos da bacia hidrográfica do Rio São Francisco – vamos entender melhor o que isso significa:

O termo bacia hidrográfica é utilizado para definir uma área de captação de água, ou seja, a somatória das águas das chuvas e das águas que brotam de inúmeras nascentes subterrâneas de uma determinada região e que correm na direção de um único ponto de saída chamado de exutório. No caso do Rio São Francisco, estamos falando das águas de milhares de riachos e centenas de rios com nascentes em áreas do Cerrado e do Semiárido, e também das águas das chuvas, que correm com a força da gravidade na direção de um canal principal e central. A grande bacia hidrográfica do São Francisco corre primeiro no sentido sul-norte, do Estado de Minas Gerais em direção a Bahia; no Norte da Bahia, a bacia hidrográfica converge na direção Leste, acompanhando inicialmente áreas dos Estados da Bahia e de Pernambuco e, a seguir, de Alagoas e de Sergipe; o exutório da bacia hidrográfica do Rio São Francisco é a foz no Oceano Atlântico. Essa bacia hidrográfica é um sistema considerado aberto, onde há muitas perdas de água ao longo do caminho, ou seja, se você somar todo o volume de água que entrou na bacia hidrográfica, perceberá que não é exatamente o mesmo volume de água que vai ser despejado na foz no Atlântico. Essa diferença se dá pelas perdas de água por evaporação, infiltração de água no solo, interceptação pela vegetação, uso da água pela população para abastecimento e irrigação, entre outros usos. Os limites de uma bacia hidrográfica são estabelecidos pela topografia do terreno, ou seja, pelo relevo. Se tomarmos como exemplo uma montanha ou uma serra, você perceberá rapidamente que as águas das nascentes ou das chuvas correrão pelas diversas faces do relevo, seguindo em direções diferentes – o topo da montanha ou dos morros da serra são conhecidos como divisores de águas ou divisores topográficos da bacia hidrográfica. Como o escoamento da água se dá pela ação da gravidade, e a bacia é definida como o conjunto de áreas que contribuem com os caudais para um ponto central, a água seguirá sempre pelo caminho mais fácil, indo dos pontos mais altos do terreno em direção aos pontos mais baixos – isso acontecerá em cada um dos lados da montanha ou da serra que estamos usando como exemplo, formando bacias hidrográficas distintas em cada um dos lados. De uma forma bem simplificada: observe o telhado de uma casa (vide foto) – toda a água da chuva que cair sobre as telhas (captação da água) vai correr primeiro na direção de uma calha (equivalente a calha do rio) e depois vai descer por uma tubulação (exutório) até o nível do solo; se for um telhado com diversas faces ou lados, cada uma das faces ou lados formará um conjunto equivalente a uma bacia hidrográfica.

E o que significa a transposição de águas de uma bacia hidrográfica para outra? No exemplo da nossa montanha ou serra, ou ainda o exemplo do telhado de uma casa, significa que estaremos retirando água de um dos lados do relevo, ou seja, de uma bacia hidrográfica, e transferindo para o outro lado – para conseguir fazer essa transferência será necessário utilizar algum sistema mecânico de bombeamento que consiga elevar a água por meio de tubulações até o outro lado da montanha ou serra. Existindo um desnível natural entre as bacias hidrográficas, poderá ser escavado um túnel por baixo da montanha ou serra, permitindo que a água corra por gravidade de um lado para o outro, sem a necessidade ou uso de qualquer tipo de bombeamento mecânico.

Um exemplo bastante didático de transposição entre bacias hidrográficas é o Sistema Cantareira, responsável pelo abastecimento de grande parte da Região Metropolitana de São Paulo. O Sistema é formado por um conjunto de represas localizadas em diferentes bacias hidrográficas e em diferentes altitudes. A transferência de água entre as represas é feita por  túneis de interligação, que usam força da gravidade; entre o ponto mais baixo do Sistema Cantareira e a Região Metropolitana de São Paulo existe um grande desnível – a Serra da Cantareira. Para que se consiga transpor esse desnível, o Sistema conta com um poderoso conjunto de bombas hidráulicas, que eleva a água até uma pequena represa no alto da Serra da Cantareira; a seguir, a água é tratada e distribuída para os consumidores por força da gravidade. Em resumo – para fazer a transposição de uma bacia hidrográfica para outra, você sempre precisará realizar algum tipo de obra de engenharia que permita transpor um obstáculo criado pelo relevo.

No próximo post nós vamos mostrar como a transposição está acontecendo na prática no Rio São Francisco, apresentando todas as obras já executadas e em execução, responsáveis por levar as águas do Rio na direção dos Estados da Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará.

A TRANSPOSIÇÃO DAS ÁGUAS DO RIO SÃO FRANCISCO

 

Projeto de Transposição São Francisco

Quem acompanha as postagens do blog já percebeu que este é um espaço onde se fala diariamente da água, o elemento natural mais fundamental para a criação e a manutenção da vida em nosso planeta. Cada vez mais necessária e rara, a água é o grande desafio da humanidade em nossos tempos. Nas sequências de posts publicados ao longo do tempo, uma determinada temática ambiental é escolhida num dado momento e detalhada em várias publicações, sempre procurando mostrar a complexidade do tema e os conflitos e problemas criados pelo uso da água.

Nos últimos três meses, o foco das publicações foram os problemas de superexploração e destruição das fontes de água em várias partes do mundo – no Brasil, foram tomados como exemplo destes fatos os problemas que assolam, já há muito tempo, a bacia hidrográfica do Rio São Francisco. Ao longo de 33 publicações tentou-se mostrar um mosaico dos problemas que, literalmente, estão destruindo o nosso Velho Chico. Agora, a partir dessa base de problemas, gostaria de falar um pouco do necessário e problemático Projeto de Transposição das Águas do Rio São Francisco.

De acordo com registros históricos, a ideia de realizar uma obra de engenharia que permitisse a transposição das águas do Rio Francisco na direção de áreas assoladas por secas frequentes remonta a meados do século XIX, época do reinado de Dom Pedro II. Nesta época, apesar das boas intenções dos idealizadores, o projeto não poderia ser realizado por falta de tecnologias e recursos de engenharia adequados – citando um único exemplo: a tecnologia para bombear a água a grandes alturas com o uso da eletricidade só estaria disponível 50 anos depois.

A região do Semiárido, como deve ser de conhecimento geral, enfrenta períodos cíclicos de secas com excepcionais proporções – notas de antigos cronistas, testemunhas oculares, médicos e jornalistas, além de registros dos governos, falam de grandes secas em 1744, 1790, 1846, 1877, 1915, 1932, 1951 e 1979. Em nossos tempos, mais precisamente desde 2012, o Semiárido está vivendo uma estiagem comparável à grande seca de 1915, evento que acabou imortalizado na literatura brasileira décadas depois com a publicação do romance O Quinze, obra da grande  escritora cearense Rachel de Queiroz. Todos estes registros falam das penúrias e sofrimentos vividos pelos sertanejos, vitimados pela sede e pela fome, forçados a migrar para outras terras, quando milhares caíram desfalecidos pelos caminhos dos sertões. Um pequeno trecho de um antigo relatório oficial de um órgão do governo nos dá uma ideia da perplexidade criada pelo evento climático extremo:

“Em 1932, o ano começou com poucas chuvas em janeiro. A seca havia se generalizado abrangendo uma área até hoje não superada: parte do Maranhão e o Piauí até a Bahia, ao sul do rio Itapicuru foram atingidos, numa extensão de 650.000 km², onde habitava uma população de 3.000.000 de pessoas.”

A discussão acerca de um sistema de transposição voltou a ser considerada nas décadas de 1940, época do Governo Vargas, e 1980, no Governo do Presidente João Batista de Figueiredo. Em 1994, durante o Governo do Presidente Itamar Franco, foi iniciado um estudo sobre os potenciais hídricos das bacias hidrográficas do Semiárido nos Estados de Pernambuco, Ceará, Rio Grande do Norte e Paraíba, estudos que prosseguiram durante o Governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso. Em 2007, já no Governo do Presidente Luís Inácio Lula da Silva, um projeto de transposição das águas do Rio São Francisco começou a ser implantado, com obras sendo executadas por batalhões especializados em engenharia do Exército Brasileiro e por construtoras privadas. Depois de inúmeros atrasos, suspeitas de fraude e superfaturamento, o primeiro trecho do Eixo Leste do Sistema de Transposição do Rio São Francisco foi inaugurado oficialmente no início de março de 2017 – depois de mais de um século e meio desde as primeiras sugestões iniciais, as águas transpostas começaram a escoar pelos sertões do Estado da Paraíba.

Projeções oficiais do Governo Federal estimam que o Sistema de Transposição, quando estiver totalmente concluído, atenderá 12 milhões de habitantes nos Estados de Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará, levando as águas do Rio São Francisco para uma extensa área do Semiárido.

Entre o sonho inicial do século XIX e os primeiros metros cúbicos de água correndo no município de Monteiro na Paraíba, muito tempo se passou e grandes volumes de recursos foram alocados no projeto; os poderosos caudais do Velho Chico dos tempos de Dom Pedro II já não existem mais e a sombra da devastação ambiental se esconde a cada meandro da bacia hidrográfica – o sonhado Projeto se cerca de muitas incertezas…

Vamos discutir e nos aprofundar nestas importantes questões nos nossos próximos posts.

 

AS CARRANCAS, A UIARA, O MINHOCÃO E O MISTERIOSO NÊGO D’ÁGUA

Nêgo D'água

Estamos falando muito dos problemas e dificuldades que se desenrolam de forma dramática nas águas do Rio São Francisco. Um rio, porém, extrapola os limites do mundo físico das águas, dos relevos e das populações, e também flui sutilmente por caminhos imateriais. Simon Schama, escritor e historiador britânico, sintetizou esse sentimento com essa afirmação: “ver um rio equivale a mergulhar numa grande corrente de mitos e lembranças, forte o bastante para nos levar ao primeiro elemento aquático de nossa existência intrauterina”.

Marinheiros e pescadores são, desde os primórdios da história da humanidade, criaturas supersticiosas. A força, os perigos e os mistérios do mar, passados também para as águas dos grandes rios, deram origem a quantidades imensas de crendices e histórias folclóricas em todos os cantos do mundo. Relatos de monstros e serpentes marinhas, sereias, leviatãs, entre outras criaturas sobrenaturais, são encontrados ainda hoje na cultura popular de muitos povos. Não é de se estranhar que um Rio tão grande e importante como o São Francisco, com margens habitadas há séculos por diferentes populações (índios, negros e brancos), também tenha desenvolvido um folclore muito particular. Hoje, vamos amenizar a nossa usual conversa e conhecer um pouco do folclore do nosso Velho Chico.

Antigos moradores das costas da Escandinávia, os vikings nos legaram um importante conjunto de tradições folclóricas e uma complexa mitologia. Deixem-me fazer uma rápida apresentação de um dos seus costumes que, seguindo algum caminho improvável, acabou chegando ao Rio São Francisco:

Os velozes barcos destes implacáveis bárbaros eram chamados de knörr, na versão curta para transporte de carga, e langskip, uma versão com casco mais longo usada em batalhas. Uma característica marcante dessas naus era a presença de um dragão ou cabeça de serpente marinha, conhecido como drakkar, esculpido em madeira na proa do barco. O drakkar tinha a função de espantar monstros marinhos que, eventualmente, cruzassem o caminho da embarcação e, de quebra, colocavam em pânico qualquer população que avistasse uma dessas naus de perfil inconfundível navegando nas costas oceânicas dos mares do Norte.

Curiosamente e sem que haja uma explicação concreta para a prática, imagens antropomórficas muito parecidas com os antigos drakkar passaram a ser esculpidas pelas populações ribeirinhas do São Francisco, a partir de meados do século XIX, e instaladas nas proas das embarcações, virando uma espécie de marca registrada do Rio: as carrancas. A população ribeirinha passou a atribuir características místicas às carrancas: espantar os maus espíritos, evitar que a embarcação afundasse ou que passasse por maiores perigos durante as tempestades, além funcionar como um amuleto para atrair muitos peixes. Com a redução dos estoques pesqueiros em consequência de uma série de problemas ambientais e com as crescentes dificuldades de navegação, as carrancas têm presença cada vez menor nas águas do Rio São Francisco.

Entre as criaturas míticas do Velho Chico, merecem destaque o Nêgo D’água, a Uiara e o temido Minhocão:

O Nêgo D’água é uma criatura de pele escura, descrita com a aparência de um rapaz de porte atlético (vide foto). Tem a cabeça sem qualquer fio de cabelo e orelhas pontudas. Os pés e as mãos têm garras afiadas, com membranas interdigitais como os anfíbios. Vive no fundo Rio, junto com os surubins, dourados, piaus e curimatãs-pacus. Em outros rios do Brasil ele é conhecido como Caboclo D’água. Para alguns, ele é um protetor das águas; para outros, uma terrível ameaça. Os ribeirinhos dizem que ele gosta de gargalhar forte, o que costuma apavorar quem está por perto. De vez em quando, ele se deita sobre as grandes pedras no meio do Rio para tomar sol. Os pescadores fazem de tudo para não cruzar com o Nêgo D’água e sempre trazem uma garrafa de cachaça em seus barcos para uso nos casos de um encontro acidental: eles fazem a oferenda da bebida para que a criatura não vire a jangada ou a canoa.

Dizem que as oferendas de pouco adiantam: a brincadeira preferida do Nêgo D’água é atormentar os seres humanos tirando os peixes dos anzóis, partindo as linhas, rasgando as redes ou assustando quem estiver nos barcos. Também gosta de aterrorizar as mães: costuma carregar as crianças que tomam banho longe das margens do Rio.

Ribeirinhos mais antigos juram que no fundo do Velho Chico se esconde um gigantesco e multi centenário surubim, conhecido como Minhocão. De tão velha, a criatura perdeu as suas barbatanas e o corpo ficou anelado e comprido como o verme. Quando enfurecido, o ser desfere golpes violentos contra as embarcações, que naufragam e vão, aos destroços, para o fundo do rio. O Minhocão também tem a má fama de escavar sob os barrancos da beira do rio, derrubando as casas dos “beiradeiros”, que teimam em se aproximar perigosamente dos seus domínios.

A Uiara – a deusa do Rio São Francisco, é uma sereia de imensa beleza e longos cabelos, que costuma cantar nas noites de lua cheia. Pescadores, ribeirinhos e índios (lembrando aqui da versão do mito entre os índios da Amazônia – a Iara) prestam homenagens ofertando presentes para a Mãe D’água, lembrando muito as oferendas a Iemanjá, a rainha do mar de origens africanas. Dizem que é o Nêgo D’água quem se encarrega de recolher e entregar os presentes para a Uiara. Nas cercanias de Juazeiro e Petrolina, uma grande estátua da Uiara foi colocada sobre as pedras do São Francisco.

Uiara

Tragicamente, mitos e águas podem desaparecer – no São Francisco, nenhum dos dois está a salvo…

RIOS SÃO FRANCISCO E COLORADO: UMA TRÁGICA SEMELHANÇA

Vale São Francisco

Desde o final do mês de março, venho publicando uma série de postagens que tratam de um dos problemas mais preocupantes de nosso tempo: a superexploração e o desaparecimento de importantes fontes de água em várias partes do mundo. Nesta sequência de postagens, eu fiz questão de falar bastante do Rio Colorado, o mais importante da região Sudoeste dos Estados Unidos, um rio muito parecido com o nosso São Francisco. O Rio Colorado está localizado em uma região que alterna trechos semiáridos e desérticos; ele atravessa diversos estados americanos e tem sua foz no Golfo da Califórnia já em território mexicano; possui diversas represas criadas para a geração de eletricidade e regulação do volume das águas; também possui canais de transposição que levam as águas na direção de grandes cidades em outras bacias hidrográficas e, para demonstrar a semelhança com o nosso Velho Chico, vem apresentando uma redução gradual dos caudais devido a alterações climáticas regionais e a superexploração das suas águas. Até parece que são rios siameses separados logo após o nascimento…

Dentro dos respectivos contextos ambientais, sociais e econômicos, que são bem diferentes, essa comparação é bastante visível nos grandes reservatórios construídos nos dois rios: a Represa Hoover no Rio Colorado, que formou o Lago Mead, o maior lago artificial dos Estados Unidos e a Represa de Sobradinho, que formou o maior lago artificial do Brasil – Sobradinho, construído no semiárido da nossa Bahia. Como vem ocorrendo em Sobradinho, o Lago Mead vem perdendo volume de água sistematicamente – as paredes de arenito vermelho nas margens da Represa, origem do nome do Rio – Colorado em espanhol significa “vermelho”, mostram uma faixa em um tom mais claro, indicando a perda de volume de água nos últimos anos: o nível do Lago Mead está reduzido a 40% do nível que apresentava a 15 anos atrás e continua a diminuir; o Lago de Sobradinho está hoje está com um volume de armazenamento menor do que 15% da sua capacidade total, o mais baixo nível dos seus 38 anos de história.

Existe, porém, um ponto de divergência em relação às causas principais dessa redução no nível de água nas duas bacias hidrográficas e que merecem uma crítica em detalhes:

O rio Colorado é o maior e mais importante rio da Região Sudoeste dos Estados Unidos, sendo a fonte de água responsável pelo abastecimento de 40 milhões de pessoas em sete Estados americanos: Colorado, Utah, Arizona, Nevada, Califórnia, Novo México e Wyoming, além de moradores em uma pequena região no Norte do México. Quase 90% do total das suas águas é desviado para fins de irrigação em 2 milhões de hectares, o que torna sua bacia hidrográfica uma das mais aproveitadas do mundo. Várias cidades importantes dos Estados Unidos como Los Angeles, Las Vegas, San Bernardino, San Diego, Phoenix e Tucson utilizam sistemas de abastecimento que captam águas do Rio Colorado. O início do uso das águas para fins de irrigação em alta escala começou no início do século XX e aumentou exponencialmente após a conclusão da Represa Hoover na década de 1930. Mudanças climáticas regionais já comprovadas tem alterado o volume de caudais a partir de áreas de degelo nas Rockies Mountains (nome carinhoso dado às Montanhas Rochosas), porém, a superexploração das águas do Rio Colorado é a causa principal da dramática redução no nível dos caudais.

O nosso Velho Chico também é um importante manancial regional de águas, atravessando cinco Estados brasileiros: Minas Gerais, Bahia, Pernambuco, Sergipe e Alagoas; recentemente, com a inauguração do primeiro trecho do Sistema de Transposição, as águas do Rio São Francisco estão chegando ao Estado da Paraíba e, com a conclusão de novos trechos, chegarão em breve ao Rio Grande do Norte e Ceará. Na região da bacia hidrográfica do Rio São Francisco vivem, aproximadamente, 15 milhões de habitantes – com a implementação de todas as obras do Sistema de Transposição do Rio São Francisco, haverá um acréscimo no futuro de até 12 milhões de novos usuários das águas. Tradicionalmente, as atividades agrícolas são as maiores consumidoras de água de uma bacia hidrográfica, chegando a consumir até 70% dos caudais – apesar do grande avanço da agricultura irrigada na bacia hidrográfica do São Francisco nas últimas décadas, o consumo de água em atividades ligadas à produção agrícola está muito longe de atingir esse volume de uso.

Considerando que, fisicamente, os Rios São Francisco e Colorado são bastante similares, como pode o Velho Chico abastecer um número bem menor de habitantes e irrigar uma área que é apenas uma fração do correspondente americano e apresentar uma redução tão intensa dos seus caudais?

Eu recomendo que você faça uma leitura das postagens já publicadas sobre os problemas do nosso Velho Chico para conhecer a resposta desta pergunta.

OS RISCOS DE COLAPSO NA BARRAGEM DE SOBRADINHO

Uvas do Rio São Francisco

O Lago de Sobradinho vive seu pior momento – o nível das águas está abaixo dos 15% da capacidade total, o volume mais baixo desde a formação do Lago há 38 anos. A CHESF – Companhia Hidrelétrica do Rio São Francisco, foi obrigada a reduzir a vazão para 650 m³/s, a menor de sua história, como uma forma de evitar que o reservatório entre no chamado “volume morto”. A mesma medida foi estendida à Usina Hidrelétrica de Xingó já na região do baixo Rio São Francisco. Essa redução de vazão está criando uma série de problemas na região da foz do Velho Chico que, sem forças para enfrentar as águas do Oceano Atlântico, sofre cada vez mais com a intrusão das águas salgadas na calha do Rio, evento que está afetando o abastecimento de dezenas de cidades, a agricultura, a navegação, a pesca e a vida de dezenas de milhares de habitantes locais.

A situação seria menos preocupante se o fenômeno da estiagem não persistisse há cinco anos. A primeira vista, poderíamos associar o baixo volume de águas no reservatório à seca que vem assolando toda a região do Semiárido por este mesmo período – porém, conforme já comentamos em post anterior, 75% dos caudais da bacia hidrográfica do Rio São Francisco vêm das áreas do Cerrado no Estado de Minas Gerais que, apesar de não viver em seus melhores períodos de chuvas, não justificaria sozinho a uma redução tão grande do volume de águas do Lago de Sobradinho. Podemos então concluir que os problemas vividos hoje em Sobradinho representam toda a somatória de problemas ambientais demonstrados rapidamente nesta sequência de postagens; ou seja – uma espécie de “prêmio” pelo conjunto das obras.

A traumática construção da Usina Hidrelétrica de Sobradinho forçou a remoção e o deslocamento de aproximadamente 75 mil pessoas, liberando as terras que viriam a ser alagadas pelo enchimento do Lago, conforme apresentado no último post. Aliás, a construção de barragens para o abastecimento de água ou para a geração de energia elétrica sempre produz o deslocamento forçado de grandes contingentes de populações ribeirinhas, as quais, sem uma devida compensação financeira ou apoio para o recomeço da vida em outra região, correm sérios riscos de marginalização. A recente construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, no Estado do Pará, é um exemplo desse processo nefasto – muitos ribeirinhos deslocados da região por causa das obras incharam a periferia da cidade de Altamira, que já está enfrentando sérios problemas de falta de infraestrutura de serviços públicos e apresentando um aumento dos índices de violência.

Deixando o problema específico das populações deslocadas para uma outra postagem, o enchimento do Lago de Sobradinho criou uma nova paisagem ecológica na região do Semiárido – um grande espelho d’água razoavelmente estável numa região carente do recurso. Essa mudança na paisagem estimulou todo um conjunto de mudanças na região, especialmente no estímulo à produção agrícola irrigada – a região se transformou, ao longo de várias décadas, num importante polo de produção de frutas, inclusive para exportação, proporcionando o chamado “emprego e renda” para milhares de sertanejos. O “Vale do Rio São Francisco” também se tornou a denominação de origem de várias linhas de vinhos regionais, com parreirais irrigados com as águas do Velho Chico (vide foto). Apesar da forma traumática como foi levado a cabo, o represamento do Rio São Francisco atendeu aos objetivos estabelecidos pelo antigo regime militar: proporcionar a regularização da vazão do Rio, gerar energia elétrica e estimular a produção agropecuária pelo aproveitamento das águas. O baixo nível das águas do Lago de Sobradinho nos últimos anos tem colocado tudo isso perigosamente em cheque.

Os produtores de frutas da região vem amargando sucessivas perdas de produção e enormes prejuízos financeiros criados pelas dificuldades na captação de água para a irrigação de suas plantações. Com a redução do volume de água armazenada no Lago de Sobradinho, a linha de margem passou a sofrer um forte e constante recuo, obrigando os produtores a instalar tubulações cada vez mais extensas e de bombas cada vez mais potentes a fim de conseguir irrigar as suas plantações – em alguns lugares a água recuou vários quilômetros, inviabilizando a produção rural.

A produção de energia elétrica na Usina de Sobradinho também corre riscos – o funcionamento das unidades geradoras depende do fluxo constante de um certo volume de água descendo a partir de uma altura mínima, o que garante a energia potencial necessária para girar as turbinas. Com a queda contínua do nível do reservatório, o desnível mínimo para o acionamento das máquinas é atingido e a produção de energia corre o risco de ser reduzia ou interrompida.

Em resumo – o Lago de Sobradinho se transformou numa vitrine de todos os problemas ambientais, econômicos e sociais vividos em toda a bacia hidrográfica do Rio São Francisco. A coisa é muito mais séria do que pode aparentar e exige mudanças drásticas na relação entre os homens e as águas, de preferência enquanto ainda existir alguma água.

ADEUS REMANSO, CASA NOVA, SENTO-SÉ E PILÃO ARCADO

Sento Sé

A construção da Usina Hidrelétrica de Sobradinho na década de 1970 foi decidida, junto com tantas outras grandes obras de infraestrutura, nos gabinetes do governo militar, sem consultar o povo, sem maiores preocupações com meio ambiente ou com os impactos negativos que o represamento do Rio São Francisco poderia produzir no futuro. Sobrava dinheiro no mercado internacional para empréstimos para os países em desenvolvimento e os planejadores oficiais da pátria tinham centenas de projetos faraônicos prontos para serem colocados em prática.  Alguma autoridade com o peito cheio de medalhas tomou a decisão e disse “faça-se”. Ninguém questionava uma ordem dessas naquela época.

Calcula-se que 12 mil famílias, o que corresponde a aproximadamente 70 mil pessoas, tiveram de ser removidas das áreas que seriam alagadas após a formação do Lago de Sobradinho. Essa população foi remanejada para outras regiões do semiárido baiano. Quatro cidades localizadas dentro da área de inundação da represa – Remanso, Sento-Sé (vide foto), Casa Nova e Pilão Arcado tiveram as suas áreas urbanas transferidas para outras regiões – as ruínas das antigas casas, igrejas, mercados e demais construções sumiram sob as águas quando o lago encheu. A propaganda oficial da época enalteceu a capacidade das empresas de engenharia brasileiras, falou dos milhares de Mega Watts de energia elétrica que seriam gerados em prol do desenvolvimento da Região Nordeste e outras coisas na linha da “patriotada”. Eu era adolescente na época e, sinceramente, não lembro de ter ouvido falar do drama social de dezenas de milhares de pessoas que, de uma hora para outra, tiveram de abandonar as suas terras e casas, para dar lugar as águas de uma represa.

Os cantores Sá e Guarabyra lançaram na época uma música de protesto contra a construção da represa, que falava da expulsão dos moradores e da destruição das cidades. O nome da música, bastante oportuno aliás, é Sobradinho – um pequeno trecho:

Adeus Remanso, Casa  Nova, Sento Sé
Adeus Pilão Arcado, vem o rio te engolir
Debaixo d’água lá se vai a vida inteira
Por cima da cachoeira o Gaiola vai subir
Vai ter barragem no salto do Sobradinho
E o povo vai se embora com medo de se afogar
O sertão vai virar mar…

Eu já trabalhei em algumas obras viárias e de saneamento básico onde o projeto exigia a desapropriação de imóveis dentro da área urbana – este é um processo lento, burocrático e cheio de idas e vindas, que normalmente é feito por pessoas e empresas especializadas no assunto. Sempre que surge a notícia de desapropriação de imóveis para uma obra pública, os preços dos imóveis no local aumentam de preço de maneira “milagrosa”, surgem escritórios de advocacia especializados para defender o direito dos moradores entre outros percalços. Às vezes, alguns projetos acabam sendo mudados de forma a se fugir de alguma desapropriação difícil. Em áreas rurais as negociações costumam ser um pouco mais fáceis. Na década de 1970, em pleno regime militar, não havia tempo para muita conversa – se foi decidido que a obra seria feita naquele lugar, o mais sensato era arrumar as malas e aceitar os termos do acordo. O progresso e o bem estar da nação estavam em primeiro lugar.

No sertão baiano, longe dos olhos do grande público, a máquina governamental usou de toda a sua força (além das falcatruas privadas sobre as quais comentei em meu último post) para expulsar milhares de pequenos agricultores de suas terras (calcula-se que 80% dos desapropriadas eram de áreas rurais) – esses agricultores acabaram dispersos por todo o semiárido, instalados em terras de qualidade muito inferiores às margens férteis do Rio São Francisco; nas áreas urbanas que seriam alagadas, os planejadores construíram novos imóveis em terrenos mais altos e transferiram os moradores – se havia alguma relevância histórica, artística ou arquitetônica nas antigas cidades, azar delas. Passados quase quarenta anos da conclusão das obras da barragem de Sobradinho, ainda existe muita mágoa, tristeza e luta por compensações morais e econômicas por parte desses antigos moradores, organizados em diversos movimentos sociais.

Existe um outro lado nesta história, comum a outras barragens construídas em todos os cantos do país – quem tem acesso privilegiado e antecipado a informações sobre uma obra de barragem, além de saber quais serão as áreas que serão inundadas, sabe também quais serão as terras que, após a formação do lago, terão localização e vista privilegiada com a frente voltada para as águas. Pequenas propriedades em zonas áridas e distantes do Rio São Francisco foram arrematadas por baixos preços por “empreendedores” com bons amigos no governo – após o enchimento do lago, as áreas agora supervalorizadas pelo fácil acesso as águas, foram transformadas em plantações irrigadas, fazendas de lazer, pesqueiros, hotéis fazendas, marinas entre outras ocupações privilegiadas. Quem tem bons amigos, tem “tudo”.

Quando se fala em Sustentabilidade, não há como separar os problemas ambientais, sociais e econômicos – e Sobradinho é um grande exemplo disto.

 

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A CONSTRUÇÃO DA USINA HIDRELÉTRICA DE SOBRADINHO

Sobradinho

Há mais ou menos vinte anos atrás, durante uma viagem de trabalho ao Recife, ouvi um relato vergonhoso de um empresário local sobre a origem de sua fortuna. Visivelmente alterado pelo álcool durante um jantar, o homem começou a se gabar de suas realizações e, num determinado momento, falou que na época da construção da Usina Hidrelétrica de Sobradinho, ele e um grupo de amigos tinham acesso a informações confidenciais sobre as áreas que seriam desapropriadas para a formação do lago e também quais valores seriam pagos em indenização aos proprietários das terras. Muita gente fez fortuna usando este mesmo artifício em inúmeras outras obras por todo o Brasil. Com apoio de corretores de imóveis locais, eles visitavam as terras e convenciam os proprietários, em sua maioria gente simples e analfabeta, que as águas do lago iriam inundar as terras e que eles não receberiam nenhuma indenização. 

Com muita conversa e apresentação de dinheiro vivo, o grupo arrematava as terras a preços irrisórios; com a documentação regularizada nos cartórios locais, o grupo apresentava as escrituras ao departamento da concessionária responsável pela construção e embolsava o valor integral da indenização. Repetido algumas centenas de vezes, o golpe gerou grandes lucros para o grupo e transformou muita gente pobre em miserável. Interessante que durante a elaboração do meu TCC – Trabalho de Conclusão de Curso, de Educação Ambiental entre os anos de 2004 e 2005, ouvi exatamente a mesma história de antigos moradores de áreas desapropriadas para a construção das represas do Sistema Cantareira no interior do Estado de São Paulo: os mesmos vivaldinos com acesso a informações privilegiadas e gente pobre vendendo suas terras a preço de banana. 

A história de Sobradinho começa no final da década de 1960, época em que o Governo Militar criou a ideologia do “Brasil Grande” e elaborou projetos de grandes obras e empreendimentos bilionários, que prometiam transformar o nosso país em uma das grandes potências mundiais. Entre rodovias, pontes e portos, os planejadores federais criaram planos para a construção de grandes usinas hidrelétricas, que forneceriam a energia necessária para o “país do futuro” – a Usina Hidrelétrica de Sobradinho tornaria a região Nordeste autossuficiente em energia elétrica e a sua barragem regularia as vazões no baixo rio São Francisco. 

Sobradinho começou a ser construída em 1973, num trecho do rio São Francisco a 40 km a jusante das cidades de Juazeiro, no Estado da Bahia, e de Petrolina, em Pernambuco. A Usina foi projetada para gerar 1.050 MW de energia elétrica a partir de 6 unidades geradoras com potência unitária de 175.050 KW. A barragem teria um comprimento total de 12,5 km, com uma altura máxima de 41 metros. A usina entrou em operação em 1979.

Vejam um filme oficial do Governo da época sobre a construção de Sobradinho:

O lago formado a partir da construção da barragem de Sobradinho possui uma capacidade de armazenamento total de 34 bilhões de metros cúbicos de água, com um espelho d’água máximo de 4.214 km². É o maior lago artificial do Brasil em área ocupada e o segundo do mundo, só ficando atrás do Lago Volta na África. Quando o Lago atinge a sua cota máxima de armazenamento, o espelho d’água atinge um comprimento de 350 km e uma largura entre 10 e 40 km. Muitos sertanejos costumam lembrar da profecia de Antônio Conselheiro (1830-1897), que dizia que “o sertão vai virar mar e mar vai virar sertão” ao se referir ao Lago de Sobradinho. 

Ninguém conseguiria construir uma obra tão grandiosa sem gerar impactos sociais, econômicos e ambientais. Muitos desse impactos foram minimizados pela propaganda oficial da época, que tudo fez para destacar apenas os impactos positivos da obra. De acordo com o Movimento Nacional dos Atingidos por Barragem (MAB), foram retirados das áreas alagadas cerca de 70 mil habitantes, sendo aproximadamente 80% deste grupo formado por pequenos produtores rurais e seus familiares. Sete municípios tiveram áreas inundadas: Casa Nova, Sento-Sé, Pilão Arcado e Remanso, que tiveram as suas sedes transferidas e foram bastante afetados; e mais Juazeiro, Xique-Xique e Barra, que sofreram menores impactos. Esses pequenos produtores ocupavam as férteis planícies ao longo das margens e ilhas, adubadas naturalmente pelas cheias anuais do rio São Francisco. Após a desapropriação compulsória, muitos desses antigos produtores foram reassentados em áreas da caatinga e com condições muito menos favoráveis para a produção agrícola. 

No próximo post vamos falar um pouco sobre o traumático processo de transferência compulsória dessas populações. 

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