TROPAS DO TADJIQUISTÃO E DO QUIRGUISTÃO ENTRAM EM CONFRONTO NUMA DISPUTA POR TERRAS E ÁGUAS

No último dia 29 de abril, a postagem aqui no blog tratou das grandes geleiras das Montanhas Pamir na Ásia Central, formadores das nascentes de importantes rios da região. Elas são formadas pela junção das cordilheiras Tian Shan, Karakorum, Kunklun e Indocuche.  Elas formam o conjunto de montanhas mais altas do mundo, com alguns cumes superando a altitude de 7 mil metros. Essas montanhas surgiram como uma extensão da Cordilheira do Himalaia. 

As Montanhas Pamir se estendem pelo Tadjiquistão, Quirguistão, China, Afeganistão e Paquistão. Essas montanhas abrigam um número considerável de geleiras de altitude, onde se formam as nascentes de importantes rios da Ásia Central. Uma dessas geleiras é a Fortambeck, localizada a Oeste do Pico Korzhenevskaya no Tadjiquistão, o terceiro cume mais alto das Montanhas Pamir com 7.105 metros de altitude. Essa geleira se estende por mais de 230 km. 

Infelizmente, por uma trágica coincidência do destino, no momento em que fazíamos a publicação do texto, tropas do Tadjiquistão e do Quirguistão se enfrentavam na região de Kok-Tash, dentro do território do Quirguistão. O motivo da disputa é um grande reservatório de água que fica dentro de um enclave com população majoritariamente tadjique. 

Para entendermos esse conflito, precisamos relembrar um pouco da história das Repúblicas da Ásia Central. Essa região vem sendo habitada desde a mais remota antiguidade por povos nômades como os cazaques, os uzbeques, os tadjiques, os turcomenos, os quirguizes e os uigures, entre muitos outros. Cada um desses povos tinha uma área predominante, mas muitas tribos preferiam a vida nômade pelas infinitas estepes. 

A partir de meados do século XIX, o Império Russo começou a expandir sua área de influência rumo a Ásia Central, chegando bem próximo da fronteira com o Afeganistão – os ingleses, que àquela altura dominavam o Subcontinente Indiano, impediram o avanço dos russos. A influência dos russos na Ásia Central aumentou bastante após a Revolução Comunista de 1917, quando foram criadas as Repúblicas Soviéticas da Ásia Central. 

Assim como ocorreu na África após a chegada dos colonizadores europeus, quando foram criadas fronteiras artificiais entre países sem respeitar os grupos populacionais que ali viviam, o Governo Central em Moscou usou seus próprios critérios para estabelecer as fronteiras entre as Repúblicas da Ásia Central. Surgiram assim o Cazaquistão, o Turcomenistão, o Tadjiquistão, o Uzbequistão e o Quirguistão. A maior parte dos uigures ficou concentrada em uma região do Noroeste da China.

Essa divisão territorial, que também aconteceu na região do Cáucaso há mesma época, não respeitou os limites de uma série de enclaves étnicos, onde grupos minoritários viviam há inúmeras gerações. Para piorar a situação, os russos forçavam a migração de populações e grupos para outras terras conforme os seus interesses. Essa “política” transformou toda a região em uma espécie de colcha de retalhos étnica. 

Dentro da política de planejamento estatal centralizado, os burocratas de Moscou decidiram que toda a região da Ásia Central seria transformada no celeiro da URSS – União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Para possibilitar que os solos áridos e semiáridos da região se tornassem produtivos, foi ordenada a construção de centenas de quilômetros de canais de irrigação e de dezenas de grandes reservatórios de água. As principais fontes de água da Ásia Central, os rios Amu Daria e Syr Daria, teriam suas águas aproveitadas a extremos. 

Conforme já tratamos em postagens anteriores, as Repúblicas da Ásia Central foram transformadas em um grande celeiro agrícola, produzindo diversos tipos de grãos e, principalmente, o algodão. Uma das consequências diretas da superexploração das águas dos rios locais na agricultura foi a destruição do Mar de Aral

O domínio de Moscou com mão de ferro na região acabou em 1991, quando toda a URSS simplesmente implodiu. Uma após outras, as antigas Repúblicas Satélites do grande bloco socialista foram declarando independência e acabaram herdando a maior parte da infraestrutura construída no passado. Nas Repúblicas da Ásia Central, a grande herança deixada pelos russos foram os grandes sistemas de irrigação e os reservatórios de água. 

Os problemas de partilha dessa infraestrutura entre os diferentes países da região começaram a se acumular devido aos problemas gerados pela criação de fronteiras artificiais pelos russos. Entre o Tadjiquistão e o Quirguistão, citando um único exemplo, mais de 1/3 da linha de fronteira apresenta disputas por territórios. Além da indefinição de grande parte dos limites territoriais, existem problemas ligados aos enclaves étnicos

Um desses casos é Voruj, um enclave com cerca de 180 km² dentro do território do Quirguistão, onde vive uma população majoritariamente formada por tadjiques. Esse enclave possui uma grande represa que é reivindicada pelos tadjiques, mas que os quirguizes dizem ser propriedade de seu país. 

Entre os dias 29 e 30 de abril, forças militares dos dois países superaram os limites da disputa verbal e partiram para o confronto armado. De acordo com informações divulgadas pala agência de notícias France Press, os confrontos já deixaram perto de 40 mortos e 120 feridos. Mais de 11 mil tiveram de abandonar suas casas e fugir da região do confronto. Um cessar-fogo foi declarado após os embates, mas a situação continua muito tensa.

Um outro ponto nevrálgico da região é o Vale de Fergana (vide foto), uma faixa de terras de extrema fertilidade encravada entre o Uzbequistão, o Quirguistão e o Tadjiquistão. Essa faixa tem aproximadamente 300 km de comprimento e 70 km de largura, onde vivem cerca de 10 milhões de habitantes ou cerca de 1/5 de toda a população das Repúblicas da Ásia Central. Essas populações são de diferentes etnias e os confrontos entre grupos são comuns. Os três países reivindicam trechos diferentes do Vales de Fergara, sem que se chegue a um acordo. 

Na raiz das disputas estão as águas dos rios que nascem nas Montanhas Pamir e que cortam as terras desérticas, formando vales de excepcional fertilidade. Também entram nas disputas os vales férteis criados artificialmente durante o período do Regime Socialista. Existem grandes extensões de terrenos desérticos na região, que apesar de guardarem grandes reservas de gás e de petróleo, causam menos disputas que as preciosas águas dos rios. 

Se já existe uma disputa acirrada pelas águas nessa região hoje, imaginem como será o panorama dentro de poucas décadas, quando se prevê o desaparecimento de inúmeras geleiras nas grandes montanhas por causa das mudanças climáticas e do aquecimento global. 

O que estamos vendo hoje são os primeiros capítulos da guerra pela água, um tipo de conflito que deverá se acirrar em muitas partes do mundo nas próximas décadas. 

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3 Comments

  1. Olá, Bom dia! Achei incrível a abordagem deste assunto, e bem pertinente ao momento que estamos passando, afinal o desequibrio da natureza, como um todo, tem afetado o mundo da pior forma possível! Estas fotos são incríveis! Gostaria de obter algumas delas> É possível? Como faço?

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  2. […] A Ásia Central é uma sucessão de estepes semiáridas e de desertos, que vem sendo habitada desde tempo imemoriais por povos nômades praticantes do pastoreio de animais. Essa vasta região é cortada por dois grandes rios – o Amu Daria e o Syr Daria. As nascentes desses rios se formam a partir do degelo de glaciares no alto das Montanhas Himalaias e em cordilheiras associadas como as Montanhas Pamir.  […]

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