
São Paulo é a maior cidade do Brasil e uma das maiores do mundo. De acordo com os últimos censos demográficos, a Pauliceia Desvairada, alcunha criada pelo escritor Mário de Andrade, ou, simplesmente, Sampa para os paulistanos, tem uma população de 12,3 milhões de habitantes, que se espalham por uma área total de 1,5 mil km².
Comecei a postagem falando da minha cidade não por bairrismo, mas para usar seu tamanho colossal como uma referência para o tamanho das áreas já tomadas pela desertificação no Piauí – esses processos já devastaram uma área equivalente a cinco vezes a área da cidade de São Paulo no Estado. A desertificação atinge 7,8 mil km² em 15 municípios piauienses, sendo considerada a maior área de solos degradados do país. E, muito pior, continua crescendo.
Esses números foram levantados por diversas pesquisas realizadas pela UFPI – Universidade Federal do Piauí, desde 2012. Os municípios afetados se concentram em uma extensa faixa no Sudeste do Estado, região que fica dentro dos domínios do Semiárido Nordestino.
De acordo com diversos pesquisadores, esses solos foram desmatados para a implantação de campos agrícolas e formação de pastagem para o gado. Os solos dessas regiões eram naturalmente suscetíveis a processos erosivos e houve uma grande perda da camada de solo fértil, que foi arrastada pelas chuvas. Restaram no local apenas solos inertes e sem capacidade ou com baixíssima capacidade para sustentar vida vegetal e, consequentemente, vida animal.
Além da reduzida quantidade de cobertura vegetal, as paisagens dessas regiões são tomadas por grandes voçorocas (vide foto), que nada mais são que longas crateras abertas pelas fortes enxurradas nas temporadas das chuvas. Algumas voçorocas tem mais de 2 km de extensão e até 30 metros de profundidade.
Assim como vem acontecendo em toda a região do Semiárido Nordestino desde os primeiros tempos da colonização do Brasil, o pastoreio de gados – onde se incluem bovinos, equinos, muares, ovelhas e, especialmente, as cabras e os bodes, está na raiz de muitos casos de desertificação. Lembrando o que já comentamos em inúmeras postagens, surgiram conflitos entre os criadores de gados e os plantadores de cana de açúcar entre os séculos XVI e XVII, o que resultou na expulsão das boiadas e demais rebanhos animais do litoral nordestino.
Sem outras opções, os criadores buscaram refúgio nos sertões nordestinos. Grandes extensões dos antigos caatingais foram queimados para ampliação das áreas de pastagens. As gramíneas que cresceram nessas áreas passaram as ser consumidas na forma de superpastoreio, ou seja, quando há um consumo de vegetação maior do que a capacidade de crescimento das plantas.
Destaco aqui os impactos ambientais criados pelas cabras e os bodes. Esses animais são verdadeiras “máquinas” consumidoras de alimentos, comendo qualquer coisa que apareça em seus caminhos. Nos períodos de seca, esses animais conseguem subir nas árvores, onde comem folhas, brotos e galhos. Esgotados esses estoques, os animais cavam os solos e comem as raízes remanescentes das plantas.
Uma citação que sempre costumo relembrar quando falo das cabras e bodes dos sertões nordestinos nos foi legada pelo botânico Alberto Loefgren (1854-1918), sueco de nascimento e depois radicado no Brasil. Estudando a devastação das árvores e das matas nas terras do Ceará, Loefgren atribuiu um papel importante nesta degradação vegetal aos rebanhos de caprinos soltos na região:
“Outro fator não desprezível na devastação das matas, ou pelo menos para conservar a vegetação em estado de capoeira, são as cabras. Sabe-se quanto este animal é daninho para a vegetação arborescente e arbustiva e como a criação de cabras soltas no Ceará é, talvez, maior que a do gado, sendo fácil imaginar-se o dano que causa à vegetação alta”.
Milhares de famílias de agricultores do Piauí sofrem com a degradação de suas terras, onde praticamente nada mais cresce nos solos desertificados. Em muitos casos, os agrônomos afirmam que os solos atingidos são irrecuperáveis. Em outros ainda há esperança e os solos ainda são passíveis de medidas corretivas, onde o uso de técnicas adequadas permite a recuperação gradual da fertilidade. O grande problema é que isso leva tempo e se gasta muito dinheiro.
Apesar da grande fertilidade original dos solos dessa região, o uso inadequado do recurso pelos agricultores levou à intensa degradação. De acordo com dados do IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, a produtividade agrícola dessa região já era muito baixa – cerca de 20 sacas de milho por hectare. Para efeito de comparação, existem fazendas na região que utilizam maquinários agrícolas modernos e fertilizantes, além de um manejo adequado dos solos, obtendo uma produtividade de 120 sacas de milho por hectare.
Os pequenos produtores dessa região do Piauí, especialmente aqueles da chamada agricultura familiar, costumam se valer das coivaras, a antiga técnica agrícola herdada dos indígenas, onde o fogo é usado para preparar os solos para as colheitas. A rala vegetação de capoeira é queimada para a liberação das áreas para a plantação e as cinzas resultantes fertilizam os solos. O uso dessa técnica rudimentar enfraquece os solos ao longo do tempo e novas áreas de mata nativa precisam ser desmatadas para manter a produção. Os rebanhos animais completam o rastro de destruição deixado pelo fogo e pelas lavouras.
Além dos impressionantes estragos nos solos, existem danos menos visíveis no subsolo – sem a presença da vegetação, as águas das chuvas não conseguem se infiltrar nos solos para reabastecer os lençóis subterrâneos de água e aquíferos, o que por fim vai acabar matando as nascentes de água na região. De acordo com os dados disponíveis, os índices pluviométricos anuais da região são da ordem de 1.200 mm, o que é um volume bastante razoável para uma região semiárida.
São essas chuvas as responsáveis pelo carreamento de grandes volumes de solos férteis e também pela formação das grandes voçorocas em toda a região. Muito pior: além dos graves problemas regionais, as águas dessas chuvas carreiam todo esse volume de sedimentos para a bacia hidrográfica do rio Parnaíba, a maior e mais importante do Piauí, amplificando o volume dos problemas ambientais.
Sem conseguir continuar produzindo em suas terras, muitos agricultores e suas famílias acabam se mudando para as periferias das grandes cidades, onde vão tentar ganhar a vida e o “pão de cada dia” em subempregos dos mais diferentes tipos. Essa é uma realidade que assombra populações impactadas pela desertificação em todo o mundo.
Conforme comentamos na postagem anterior, os processos para a formação dos solos férteis demandam muito tempo – falamos aqui de milhares ou até mesmo de milhões de anos. Bastam apenas alguns poucos anos de uso inadequados desses solos para todo esse primoroso trabalho da natureza se perder…
São fatos lamentáveis que, infelizmente, vem acontecendo com uma frequência cada vez maior em todo o mundo.