A CAPITANIA DO ESPÍRITO SANTO E O “MELHOR AÇÚCAR” DO BRASIL COLONIAL

Enquanto a indústria do açúcar prosperava fortemente ao longo de uma extensa faixa da Região Nordeste do Brasil Colonial e consumia a “ferro e a fogo” a densa floresta tropical – a Mata Atlântica, alguns trechos do litoral brasileiro conseguiram resistir ao iminente avanço dos canaviais e as matas nativas nessas regiões tiveram uma sobrevida importante. Um desses casos foi o Espírito Santo, onde um grande trecho da Mata Atlântica sobreviveu até meados do século XX.  

Da mesma forma como ocorreu com as matas do Sul do Estado da Bahia, onde floresceria a indústria cacaueira no século XIX, as matas capixabas ficariam a salvo por muito tempo graças a presença de populações indígenas extremamente hostis como a dos botocudos (vide imagem) e dos goitacás. Vamos entender essa história. 

Pero de Magalhães Gandavo foi um historiador e cronista português que publicou em 1576 um dos primeiros relatos sobre o Brasil – A História da Província de Santa Cruz, a que vulgarmente chamamos Brasil. Nesse livro, Gandavo apresenta um censo com o número total de engenhos de cana de açúcar em operação no Brasil há época. Um detalhe interessante dessa descrição é sua referência ao Espírito Santo, Capitania que possuía “um engenho, tira-se dele o melhor açúcar que há em todo o Brasil“. 

Uma outra referência interessante em relação à nascente indústria açucareira do Espírito Santo foi feita pelo Professor Hélio Viana (1908-1972), jornalista, historiador e autor de diversos livros sobre a história do Brasil. Viana nos informa que “o primeiro açúcar brasileiro de que se tem certeza, saiu do Espírito Santo em 1545”. Essa afirmação do emérito professor não citou a fonte ou o documento que comprove essa informação, algo que cria muita controvérsia sobre a veracidade desse fato entre os especialistas. 

Sem entrarmos em maiores detalhes, o fato é que a indústria açucareira na Capitania do Espírito Santo teve um destino muito semelhante aquele das suas congêneres nas Capitanias de São Vicente e de Santo Amaro – uma vida curta e tumultuada. Além de ter sofrido ataques de corsários como o do inglês Thomas Cavendish, o mesmo que atacou e incendiou as vilas de Santos e São Vicente em 1591, os engenhos capixabas sofreram muito ao longo dos anos com os inúmeros ataques de tribos indígenas hostis. 

O Donatário da Capitania do Espírito Santo foi o fidalgo e militar português Vasco Fernandes Coutinho, que se destacou em inúmeras conquistas militares de Portugal na Ásia e na África. Fernandes Coutinho recebeu o foral, o título de posse das terras, em 1534 e no ano seguinte, já no Brasil, fundou a Vila do Espírito Santo (atual Vila Velha), após “desterrar e dizimar” as tribos indígenas que habitavam essa região. O território da sua Capitania compreendia “50 léguas de costa, entre os rios Mucuri e Itapemirim”. 

Os indígenas expulsos pelos portugueses passaram a viver nas matas ao redor da Vila do Espírito Santo e, constantemente, organizavam ataques e tocaias contra os colonos. A Capitania também viria a sofrer com constantes ataques de corsários franceses e holandeses, que tinham como objetivo conquistar seu próprio quinhão de terras no litoral do Brasil. Lembro aqui que os franceses fundariam a França Antártica no Rio de Janeiro, em 1555, e a França Equinocial no Maranhão, em 1612, ambas tentativas fracassadas. Já os holandeses, esses conquistariam e ocupariam uma grande faixa de terras na região Nordeste entre 1630 e 1654. 

Depois de vários anos sob ataque dos indígenas, os portugueses decidiram se transferir para a Ilha de Santo Antônio, na Baía de Vitória, em 1551. Essa ilha era chamada de Guanaani pelos indígenas e possibilitava melhores condições para a segurança e defesa da população. Os portugueses fundaram na ilha a Vila Nova do Espírito Santo, que mais tarde seria conhecida com o nome de Vitória – a antiga ocupação no continente passaria a ser conhecida como Vila Velha. 

Existem inúmeros relatos, principalmente de religiosos, descrevendo os ataques dos índios botocudos e goitacás a vilas e engenhos, onde matavam a maioria dos colonizadores e destruíam todas as construções. Incapazes de conter a fúria dos indígenas, as Autoridades Coloniais optariam por deixar um grande “vazio” no mapa do litoral entre a região de Ilhéus, na Bahia, e a Vila do Espírito Santo. Pero de Magalhães Gandavo deixou a seguinte impressão sobre os índios botocudos: 

“Chamam-se Aymorés, a língua deles é diferente dos outros índios, ninguém os entende, são eles tão altos e tão largos de corpo que quase parecem gigantes; são muito altos, não parecem com outros índios da Terra.” 

Além de enfrentar todos os problemas criados pelas tribos indígenas, Vasco Fernandes Coutinho também se viu envolvido por disputas políticas entre diferentes grupos de colonos portugueses que viviam nas terras na Capitania. A concessão da Capitania, que a princípio parecia ser um prêmio pelas grandes conquistas militares de Fernandes Coutinho, pouco a pouco foi se transformando em um verdadeiro pesadelo. O desencanto levou o Donatário a desistir do empreendimento e a transferir, ainda em vida, o foral para seus herdeiros, que nunca atingiriam um grande sucesso administrativo e econômico. 

Ao longo de todo o século XVII, a já complicada situação da Capitania do Espírito Santo se agravaria ainda mais devido as notícias das descobertas de ouro na região das Geraes. Muitos colonos desistiriam dos trabalhos na agricultura e partiriam para os sertões para se aventurar no garimpo. Muitos grupos de capixabas chegariam a organizar suas próprias “bandeiras” (há registros históricos de pelo menos 14 dessas expedições) e, a exemplo dos bandeirantes paulistas, se embrenhariam nas matas ao longo da bacia hidrográfica do rio Doce em busca de ouro e pedras preciosas. 

Preocupada com as repercussões das descobertas auríferas, a Coroa Portuguesa criaria a política de “Areas Phroibidas” no Espírito Santo, onde o principal objetivo era dificultar o acesso de aventureiros, principalmente estrangeiros, ao território das Minas Geraes. Foi publicado um Decreto Real que limitava o povoamento, as construções e as expedições a uma faixa de 3 léguas (15 km) do litoral capixaba, especialmente nas proximidades da região da foz do rio Doce.  

A incipiente indústria açucareira na Capitania e o ““melhor açúcar produzido no Brasil” não resistiriam a toda essa somatória de problemas – a agricultura e o povoamento no Espírito Santo só voltariam a ganhar fôlego em meados do século XIX com a chegada do café ao Estado. Para se ter uma ideia da situação, em 1880 apenas 15% do território capixaba era habitado

A história tumultuada do Espírito Santo foi bastante benéfica para o meio ambiente – grande parte da cobertura florestal de Mata Atlântica no Estado resistiria até meados do século XX, quando então passou a sucumbir devido a uma forte demanda por madeiras para uso na construção de Brasília, a nova capital do Brasil que seria inaugurada em 1960. Trataremos desse tema em uma futura postagem. 

Para encerrar – existe uma informação bastante didática sobre a cobertura florestal no território capixaba daqueles tempos antigos – de acordo com o Atlas dos Ecossistemas do Espírito Santo, edição de 2008, quando a Vila do Espírito Santo foi fundada em 1535, cerca de 87% do território capixaba era coberto por florestas de Mata Atlântica. Atualmente, resta menos de 8% da cobertura original do bioma no Estado. 

13 Comments

  1. […] A bacia hidrográfica do rio Jequitinhonha ocupa uma área de mais de 70 mil km², se espraiando entre os biomas Mata Atlântica e Caatinga. Os primeiros habitantes do Vale do Jequitinhonha foram indígenas das tribos aranãs e tocoiós, entre outros grupos do Tronco Macro-jê. O baixo curso do rio no Sul da Bahia fazia parte do território dos temíveis índios Botocudos.  […]

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