EM TEMPOS DE CRISE ENERGÉTICA GLOBAL, A QUEIMA DE RESÍDUOS PLÁSTICOS PARA GERAÇÃO DE ENERGIA PODE SER UMA ALTERNATIVA 

A história da humanidade é, desde tempos imemoriais, cercada de mitos e lendas. Falo aqui de dogmas religiosos, de folclore e até de lendas urbanas como a loira do banheiro.  

Um dos mitos mais recentes de nossa história, criado há poucas décadas, nos diz que o plástico é 100% reciclável. Ou seja – você pode comprar tranquilamente um produto embalado em plástico ou feito de plástico num supermercado com a certeza que seus resíduos terão uma “nova vida” após a reciclagem. 

É sempre triste tocar nesse assunto, mas, lamento dizer, a maioria dos resíduos plásticos recolhidos em centrais de triagem não podem ser reciclados. Um dos problemas mais frequentes encontrados pelos recicladores é a contaminação dos resíduos, problema que impede a sua reutilização. Também é preciso citar que o plástico novo é muito barato e reciclar é sempre mais caro. 

Dias atrás eu assisti um excelente documentário da BBC que tratava justamente desse tema e lá ouvi uma notícia devastadora – perto de 70% de todos os resíduos plásticos de embalagens recicladas na Europa não podem ser reutilizados e grande parte acaba tendo como destino a queima em usinas termelétricas especialmente adaptadas para esse tipo de resíduo

Parte considerável desses resíduos, porém, acaba sendo “exportada” (usei aspas por que se tratam de operações ilegais) para alguns países. Um desses países era a Turquia, que tem parte do seu território dentro do território europeu e que até recentemente contava como uma legislação ambiental bastante “fraca”.  

Grupos “empresariais” (olhem as aspas aqui de novo) do país aceitavam receber esses resíduos a partir do pagamento de generosas quantias por tonelada. Felizmente, as coisas mudaram por lá e o Governo turco está fazendo um cerco a essas operações e impedindo a entrada desses resíduos no país. 

Aparentemente, esses “empresários” usariam esses resíduos como matéria prima para a produção de peças plásticas (tipo aqueles famosos vasos pretos para plantas). Porém, de acordo com as informações mostradas no documentário, a maior parte desses resíduos acabava em lixões pelo interior do país, onde o fogo é usado como principal ferramenta para a “reciclagem dos materiais”. 

Uma outra informação preocupante é que a Bulgária, o país mais pobre da Europa, é o destino final de grandes volumes de resíduos plásticos selecionados em usinas de reciclagem por todo o continente. Esses resíduos são encaminhados para fábricas de produção de cimento, onde são queimados sem maiores preocupações ambientais. 

O cimento, como todos devem saber, é uma das principais matérias primas da construção civil. O cimento Portland, o tipo mais popular do mercado, é o resultado de uma mistura de calcário, argila e pozolanas – materiais ricos em sílica como cinza vulcânica, cinza de casca de arroz, cinza de altos-fornos, entre outras. Esses materiais são moídos juntos e passam por um processo de cozimento em um forno. 

Tradicionalmente, esses fornos são alimentados com combustíveis fósseis como derivados de petróleo e carvão mineral. A fim de baratear os custos de produção, muitas empresas cimenteiras vêm utilizando a queima de resíduos como fonte de energia auxiliar. Um dos casos mais relevantes é a queima de pneus velhos. 

Se qualquer um dos leitores já viu um pneu pegando fogo sabe a quantidade de fumaça tóxica que é liberado no processo. Os fornos das fábricas de cimento que utilizam pneus e outros resíduos precisam ser especialmente adaptados. Um ponto chave é a instalação de sistemas de filtros nas chaminés para conter a fumaça e os resíduos durante a queima dos materiais, coisa que as empresas búlgaras citadas certamente não fazem. 

Apesar dessa ressalva, o uso dos resíduos – especialmente plásticos, para a geração de energia não é, nem de longe, uma má ideia. Aliás, mais de 30 países utilizam esse processo em larga escala para a produção de energia – é a famosa reciclagem energética. Existem cerca de 420 usinas do tipo na União Europeia, 98 nos Estados Unidos e 249 no Japão, citando apenas alguns exemplos. Na pequena Suíça já são 27 unidades. 

Todos os dias, essas usinas recebem milhares de toneladas de resíduos onde se encontram fardos de resíduos plásticos devidamente “reciclados” e separados por tipos (polietileno, estireno, poliestireno, etc), que não podem ser utilizados como matéria prima para a “produção de novos plásticos”. 

Como todo bom derivado de petróleo, os plásticos são altamente combustíveis. Cada quilograma desses resíduos pode gerar a mesma energia de um litro de óleo diesel. O volume de resíduos gerados pela queima equivale a cerca de 8% do volume inicial – essas cinzas podem ser utilizadas como agregados em materiais de construção como tijolos, blocos e telhas. 

Nos fornos, os resíduos são queimados em temperaturas próximas de 1.000° C. O calor gerado é usado para aquecer a água de uma caldeira e o vapor gerado movimenta uma turbina que gera energia elétrica, nada muito diferente do segundo estágio de uma usina nuclear (o primeiro estágio dessas usinas utiliza a fissão de materiais nucleares para gerar o calor). 

Todos os processos de queima de resíduos nessas usinas são minuciosamente controlados e a saída dos gases do forno passa por sistemas de filtragem especialmente projetados para esse fim. Falando a grosso modo, queimar esses resíduos é bastante razoável do ponto de vista ambiental. 

Como não existem processos ambientalmente neutros, essa queima de resíduos – especialmente os plásticos, gera alguns problemas, a começar pela emissão de dióxido de carbono, que é um dos principais gases causadores do efeito estufa e do aquecimento global. Outro problema é a produção de dioxinas e furanos, moléculas muito pequenas que costumam escapar dos filtros. 

Essas moléculas se formam espontaneamente durante o processo de queima dos resíduos. Elas são formadas pela combinação de compostos químicos em vários processos envolvendo o cloro ou substâncias e materiais que contenham cloro – muitos dos resíduos plásticos são embalagens de produtos de limpeza com cloro em sua formulação. 

Em vários estudos clínicos, com pessoas que foram expostas a ambientes com a presença de dioxinas e furanos, foi observado que houve um aumento da incidência de diferentes tipos de câncer. Esses estudos demonstraram que o sistema imunológico das vítimas é afetado, facilitando o desenvolvimento destas doenças. 

E quais as alternativas que temos para o descarte dos resíduos plásticos? 

A reciclagem, que como citamos não funciona na maior parte dos casos, o envio para os já saturados aterros sanitários ou para os lixões a céu aberto, onde provavelmente esses materiais serão queimados. Por fim, temos o descarte sem qualquer controle, o que resulta na poluição de solos, águas e mares. 

É bastante provável que a atual crise energética vivida pelo mundo incentive maiores investimentos em usinas termelétricas que usem esses resíduos e que se desenvolvam novas e melhores tecnologias para a filtragem da fumaça.  

Em um mundo onde o consumo de plástico não para de aumentar, esse talvez seja o menor de todos os males.