
Há coisa de uns vinte anos, enquanto eu conversava com uma amiga da família, fiquei sabendo que ela acabara de presentear a filha adolescente com um bicho de estimação – um esquilo-da-Mongólia. Na minha ignorância no assunto, imediatamente pensei em um bichinho fofinho como os personagens Tico e Teco. Dias depois, a garota passou em casa para mostrar a nova mascote e eu me assustei com o que vi – o bicho era muito parecido com um rato de esgoto, porém tinha uma pelagem branca com algumas manchas marrons.
Esse meu susto teve uma razão científica muito simples – os famigerados ratos (Ratus ratus e Rattus norvegicus, duas das espécies mais difundidas) e os gerbos ou esquilos-da-Mongólia (Meriones unguiculatus) são espécies originárias das estepes da Ásia Central e possuem ancestrais comuns. A principal diferença é que os ratos foram “domesticados” há muitos milhares de anos atrás – já a domesticação dos gerbos, essa é bem mais recente.
Muitos leitores devem ter torcido o nariz com a minha afirmação sobre os ratos serem animais domésticos – infelizmente, essa é a mais pura verdade. Os ratos pertencem a um grupo chamado de animais sinantrópicos– – são animais e insetos que se adaptaram a uma vida próxima aos seres humanos independentemente da vontade desses, ao contrário dos animais que foram domesticados propositadamente.
De acordo com informações do Serviço de Controle de Zoonoses da Prefeitura de São Paulo, esse grupo também inclui abelhas, aranhas, baratas, o barbeiro (inseto transmissor da Doença de Chagas), carrapatos, escorpiões, formigas, lacraias e centopeias, morcegos, moscas, mosquitos, pombos, pulgas, taturanas e vespas, entre outros. Conforme mudam as regiões e as cidades, essa lista também pode mudar.
Os ratos começaram a se aproximar dos assentamentos humanos ainda na pré-história, época em que nossos ancestrais eram caçadores-coletores nômades e vagavam errantes pelo mundo vivendo um dia de cada vez. Os inteligentes ratos perceberam que podiam se alimentar confortavelmente das sobras de alimentos dos humanos sem correr os riscos da vida nas estepes cheias de predadores.
Acompanhando as longas migrações destas populações por extensos territórios, os ratos se instalaram nos subterrâneos das cidades que foram sendo criadas ao longo dos séculos. Um exemplo dessa migração – os turcos étnicos, que formam 20% da população moderna da Turquia, tem sua origem nas Montanhas Altai, localizadas na fronteira entre a Rússia, o Cazaquistão e a Mongólia. Essa região, não por acaso, é o bioma de origem dos ratos e mostra o longo caminho dos pequenos roedores acompanhando as populações em suas migrações
Após o surgimento da agricultura e o início da estocagem de grãos, os ratos se especializaram em invadir silos e outros depósitos de alimentos, consumindo parcelas importantes das reservas de alimentos das populações. Os ratos também aprenderam a seguir as caravanas que transportavam esses grãos, aumentando cada vez mais a sua dispersão pelo mundo.
Com o surgimento e desenvolvimento da navegação marítima, as migrações dos ratos pelo mundo passaram para um outro nível. Os animais entravam como clandestinos nos navios e se escondiam entre as cargas e suprimentos dos porões. A partir do século XV, quando foram iniciadas as grandes travessias interoceânicas, os ratos ganharam o mundo em definitivo, alcançando terras e ilhas cada vez mais remotas. O Continente Antártico foi o único onde esses animais não conseguiram prosperar, apesar das inúmeras tentativas de colonização. Depois dos seres humanos, os ratos formam a segunda espécie mais bem sucedida na colonização do planeta.
Além das enormes perdas de alimentos para os ratos, a proximidade desses animais com as populações humanas sempre foi uma causa frequente de doenças e de grandes epidemias. Em inúmeros capítulos da história humana, foram incontáveis os casos de cidades inteiras sendo devastadas por doenças transmitidas pelos ratos, o que era comumente chamadas de “as pestes”.
Um grande exemplo foi a famosa Peste Negra, conhecida atualmente como peste bubônica, que matou entre 75 e 200 milhões de pessoas (conforme a fonte consultada) na Ásia e Europa no século XIV. Essa doença é causada pela bactéria Yersinia pestis e é transmitida aos seres humanos através da picada de pulgas que infestam animais roedores como os ratos. Cerca de 1/3 do contaminados pela doença acabavam morrendo.
Para que todos tenham uma vaga ideia das péssimas condições sanitárias das cidades há essa época, o consumo per capita de água era de apenas 2 litros por habitante/dia. Os esgotos corriam a céu aberto (uma realidade até comum nas atuais cidades brasileiras) e os serviços de coleta de resíduos eram os mais precários – incluo aqui o transporte de pessoas mortas, que eram largadas nas calçadas à espera da “coleta” pelas autoridades. Em épocas de epidemias, os corpos eram amontoados nesses locais, onde ficavam por vários dias.
A situação sanitária se complicava ainda mais nos meses de inverno, quando as precipitações de neve encobriam grande parte dos resíduos e corpos abandonados nas calçadas. O calçamento das ruas nesses períodos era uma mistura de neve, fezes de animais como cavalos e bois, além de resíduos de todos os tipos. Essas cidades eram uma espécie de “paraíso na terra” para milhares (quiçá, milhões) de ratos.
Outra doença importante associada aos ratos é a peste bubônica ou leptospirose, transmitida pela bactéria Leptospira presente na urina dos animais. Os surtos dessa doença eram (e ainda são) mais intensos nos períodos das chuvas e também no chamado degelo da primavera, quando a neve derrete e forma grandes poças de água e enxurradas nas ruas.
A bactéria Leptospira entra no corpo humano através da pele, pela boca e pelos olhos. Nos casos mais graves, a leptospirose provoca falência renal, meningite, falência hepática e deficiência respiratória, podendo até levar a morte. As enchentes também forçam os ratos a abandonar suas tocas, aumentando a possibilidade de aproximação com os seres humanos, o que pode resultar em ataques e mordidas.
Restos de comida descartados no lixo doméstico, em terrenos baldios e em corpos d’água são os principais responsáveis pelo sustento e manutenção das populações dos ratos urbanos. O correto descarte, transporte e destinação final desses resíduos são serviços fundamentais para o controle das populações de ratos e, consequentemente, da transmissão de doenças e outros males associados a esses animais.
Nos meios urbanos encontramos, normalmente, três espécies: o rato-preto ou de telhado (Rattus rattus), que se alimenta de restos de comida que são jogados no lixo e também de alimentos e rações servidas aos animais domésticos como cães e gatos. O rato-marrom ou ratazana, conhecido como gabiru em muitas regiões (Rattus norvegicus), que vive em esgotos e ao longo de córregos e os camundongos (Mus musculus), espécie de ratos pequenos, que vivem em residências e são oportunistas quanto a alimentação, atacando despensas, armários e latas de lixo. As três espécies são transmissoras de doenças.
Depois de instalados nos mais diferentes e diversificados biomas ao longo de milhares de anos, hoje em dia é virtualmente impossível erradicar as gigantescas populações de ratos que vivem em nosso mundo. O melhor a se fazer é deixar de garantir o “almoço grátis” ou aquele lanchinho do fim de noite. Com menor disponibilidade de comida, podemos, ao menos, controlar as populações desse terrível roedor.
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