
Plantar uma larga faixa com bilhões de árvores ao longo de 4.500 km entre as regiões Noroeste e Nordeste da China, de forma a conter o avanço dos desertos rumo ao Sul do país. Esse é um dos principais objetivos do projeto da Grande Muralha Verde da China, que está em execução desde 1978 e cuja previsão de término é o ano de 2050.
À primeira vista, a ideia parece ótima e a iniciativa dos governantes chineses é louvável. A desertificação de solos é um dos grandes problemas ambientais de nosso tempo – somente em território chinês, cerca de 1,7 milhão de km² de solos já foram perdidos para processos de desertificação e, de acordo com os especialistas, cerca de 530 mil km² desse total podem ser recuperados com apoio de projetos como a Grande Muralha Verde.
Lembrando aqui de um velho ditado que diz que “de boas intenções o inferno está cheio”, é impossível levar a cabo um projeto dessa magnitude sem provocar grandes impactos ao meio ambiente. Falo isso sem diminuir em nada as grandes virtudes da iniciativa.
Um dos principais impactos desse projeto se dá justamente nos recursos hídricos – plantar bilhões de árvores significa disponibilizar muitos bilhões de litros de água para garantir a sobrevivência das plantas. E água é um elemento que falta nas regiões mais ao norte da China.
A China é o país mais populoso do mundo – 1/5 da população mundial é composta por chineses, o que representa um total de 1,4 bilhão de pessoas. Apesar dessa formidável população, o território chinês possui apenas 7% dos estoques de água doce do planeta. Para efeito de comparação, o Brasil, que tem um território um pouco menor do que a China e uma população 6,6 vezes menor, possui 12% das reservas de água doce do planeta.
Além da baixa disponibilidade, os recursos hídricos são muito mal distribuídos no território chinês. A faixa Norte da China é tomada por uma série de desertos, como o Deserto de Gobi, e também por grandes regiões de clima semiárido. Essas regiões concentram cerca de 42% da população da China, porém, possuem apenas 14% das reservas de água do país. Há gente demais para pouca água.
Não é preciso ser um especialista em ecologia ou recursos hídricos para perceber rapidamente que a implantação da Grande Muralha Verde numa região com pouca água criou uma disputa muito desequilibrada do recurso entre pessoas e árvores. Um estudo publicado pela revista Nature Sustainability deixou isso muito claro.
Conduzido por cientistas da Universidade da Califórnia em Irvine, o estudo combinou dados da missão do satélite GRACE – Gravity Recovery and Climate Experiment, da NASA – Administração Norte-americana de Aeronáutica e Espaco, na sigla em inglês, de relatórios do Governo da China, além de observações ambientais e de resultados de simulações climáticas. Os resultados obtidos mostram que o esgotamento dos recursos hídricos é alarmante.
Um exemplo: na região do Deserto de Mu Us, no Norte da China, o aumento no consumo de água vem provocando uma redução de 16 milímetros/ano no nível do lençol freático desde o início do plantio das árvores na região. Isso pode parecer pouca coisa, mas corresponde a uma perda de 21 km³ de água, um volume imenso considerando que se trata de um deserto.
Um outro exemplo, citado na nossa última postagem, é a região de Minqin, no Noroeste do país – estudos realizados pelo Governo chinês indicam que o nível do lençol freático baixou de 12 para 19 metros desde o início do plantio maciço de árvores na região. Esses números mostram claramente que a demanda pela água está muito acima da capacidade de reposição natural dos estoques.
A espinha dorsal do estudo são as imagens geradas pelo satélite GRACE, que foi lançado ao espaço em 2002. Os dados coletados pelo satélite entre 2003 e 2016 permitiram determinar que o rebaixamento médio do nível do lençol freático nas regiões de reflorestamento foi de 7 milímetros/ano. Comparando esses dados com informações coletadas entre 1982 e 1998, que mostravam que o nível do lençol freático estava subindo, percebe-se claramente o tamanho da tragédia ambiental.
Uma forma de entendermos esse vigoroso rebaixamento no nível do lençol freático nas regiões onde a floresta está crescendo é analisarmos as espécies de árvores que estão sendo plantadas. Uma das principais espécies usadas é o choupo, um grupo que reúne mais de 40 espécies arbóreas ou arbustivas da família Salicaceae, conhecidas popularmente com álamos. Essas espécies se distribuem pela Ásia, Europa e América do Norte.
Uma característica dos choupos são suas raízes altamente desenvolvidas, muito semelhantes à de espécies do Cerrado brasileiro. Essas raízes alcançam grandes profundidades em busca de água, permitindo que as árvores consigam sobreviver em ambientes de extrema aridez. Essas raízes permitem, inclusive, o surgimento de novas mudas de árvores, levando a um adensamento da espécie em florestas.
Além das raízes de centenas de milhões de árvores insaciáveis, os depósitos subterrâneos de água da China também atendem a uma infinidade de sistemas de irrigação de plantações de todos os tipos. Conforme comentamos anteriormente, o país dispõe de áreas agricultáveis bastante modestas diante da necessidade de produção de alimentos para sua gigantesca população. Uma parte expressiva dos solos agrícolas do Norte da China são semiáridos, onde o uso intensivo da irrigação é fundamental para a produção.
O aumento da disponibilidade de recursos hídricos em algumas regiões da China é uma das grandes prioridades do Governo. Um dos maiores projetos de infraestrutura em andamento no país é a construção de um sistema com 2.500 km de canais, que permitirá a transposição de mais de 40 bilhões de metros cúbicos de água/ano do rio Yangtzé para as regiões do Norte do País. Os investimentos previstos são de US$ 62 bilhões, divididos em três fases e com previsão de conclusão para o ano de 2050.
Há aqui um ponto polêmico – para aumentar os caudais do rio Yangtzé, o Governo chinês tem feito estudos para a transposição de águas de outras bacias hidrográficas. Entre os rios estudados estão o Mekong, o rio mais importante do Sudeste Asiático, e o rio Brahmaputra, que corre na direção da Índia e de Bangladesh. As nascentes desses rios ficam dentro do trecho chinês da Cordilheira do Himalaia e, para os burocratas de Pequim, não existe nenhum problema em desviar parte dessas águas para atender as demandas do seu país.
Só que, do outro lado, existem países com populações que superam a marca de centenas de milhões de habitantes, gente que precisa de água para abastecimento de cidades, para a agricultura e geração de energia elétrica. Ou seja – o plantio da Grande Muralha Verde ao longo dos desertos do Noroeste, Norte e Nordeste da China poderá ter repercussões graves em todo o Sudeste Asiático e também no Subcontinente Indiano.
Essa disputa pela água poderá, inclusive, descambar para um conflito armado entre os países. Nosso mundo está ficando cada vez mais complicado…
[…] China, conforme já comentamos em outra postagem, tem realizado obras hídricas na sua porção da Cordilheiras do Himalaia, especialmente na […]
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