
Entre as melhores lembranças que trago da minha infância estão as viagens de trem entre São Paulo e Bauru lá pelos idos das décadas de 1960 e começo de 1970. Meus avós moravam em um sítio nas cercanias de uma pequena cidade na região de Marília e costumávamos passar parte das férias escolares por lá. O primeiro trecho da viagem era feito de trem e a “perna final” era feita via ônibus.
Esse primeiro trecho da ferrovia foi construído entre o final do século XIX e primeiros anos do século passado, época em que inúmeras linhas férreas passaram a cortar a então Província de São Paulo para dar vazão aos enormes volumes de café produzidos. Ao mesmo tempo em que criavam as condições logísticas para o transporte de cargas, as ferrovias também criaram inúmeras linhas para o transporte de passageiros, levando ao desenvolvimento de inúmeras cidades.
A partir da década de 1960, com a popularização cada vez maior do transporte de cargas por via rodoviária, as ferrovias entraram em franca decadência – as gerações mais novas, infelizmente, já não tiveram o prazer de fazer essas viagens em um vagão de trem. Feita essa rápida introdução, vamos falar um pouco sobre a importância histórica, econômica e ambiental do prolongamento da Ferrovia São Paulo-Bauru até Corumbá, no então Mato Grosso.
Entre muitas outras consequências, a Guerra do Paraguai, conflito que se estendeu entre os anos de 1864 e 1870 e que também envolveu a Argentina e o Uruguai, deixou claro os riscos de segurança ao país devido à falta de ocupação dos territórios de fronteira. Um dos estopins do conflito foi a política expansionista do Governante do Paraguai, Francisco Solano López, que ordenou a invasão de áreas no Sul de Mato Grosso aqui no Brasil e também no Norte da Argentina.
Terminado o sangrento conflito, o Imperador Brasileiro, Dom Pedro II, passou a se ocupar com uma política de instalação de fortificações e guarnições militares ao longo das fronteiras secas na faixa Oeste do Brasil. Em um segundo momento, o Governo passaria a se preocupar com o estímulo à colonização e ocupação dessas fronteiras. A ideia de se construir uma estrada de ferro interligando o Mato Grosso ao restante do país começou a ser gestada nessa época.
Um exemplo da baixíssima população dessa região era a cidade de Campo Grande, atual capital do Mato Grosso do Sul. Fundada em 1872 como um ponto de apoio e descanso para os tropeiros e boiadeiros que cruzavam os campos da região, Campo Grande tinha uma população de pouco mais de 2 mil habitantes ao final do século XIX. O centro econômico da Província há época era a cidade portuária de Corumbá, que se valia da navegação fluvial através do rio Paraguai para comunicações e transportes com as cidades da Argentina e do Uruguai.
O sonho da integração regional começou em 1905, com o início das obras da então Ferrovia Bauru-Cuiabá, também conhecida como Estrada de Ferro Noroeste do Brasil. O primeiro trecho dessa ferrovia ligaria a ferrovia já existente entre São Paulo e Bauru, a Estrada de Ferro Sorocabana, com a cidade de Itapura, no Extremo Oeste de São Paulo. O rio Paraná precisaria ser vencido através de uma ponte ferroviária (que só seria construída bem depois) e os trilhos seguiriam até Cuiabá, no Norte de Mato Grosso, passando por Campo Grande.
Em 1907, quando os trilhos ainda estavam sendo implantados em território paulista, o Governo Federal alterou seus planos e o destino final da ferrovia passaria a ser Corumbá. Esse novo trecho passaria a ser conhecido como Estrada de Ferro Itapura-Corumbá.
O primeiro trecho da ferrovia, entre Bauru e Araçatuba, foi inaugurado em 1908 e passou a ser fundamental para a estratégia de colonização da faixa Oeste do território paulista. Os trilhos só chegariam em Itapura em 1910. A construção do trecho entre Itapura e Corumbá foi iniciado em 1908, atingindo a cidade de Porto Esperança, as margens do rio Paraguai em 1914.
Os trilhos só chegariam até Corumbá em 1952, após a conclusão da Ponte Barão do Rio Branco, depois denominada Ponte Eurico Gaspar Dutra (vide foto). Nesse meio tempo, de quase 40 anos, os passageiros que tinham como destino Corumbá precisavam desembarcar em Porto Esperança e seguir viagem em uma embarcação a vapor que subia o rio Paraguai, numa viagem que podia durar até 12 horas.
Um dos grandes obstáculos para a ferrovia eram as águas do rio Paraná, na divisa de São Paulo e Mato Grosso, rio que em alguns trechos chega a 3 km de largura. Até 1926, quando foi concluída a Ponte Francisco de Sá, a travessia dos vagões era feita através de balsas. Locomotivas de manobra ficavam posicionadas nas duas margens do rio e moviam os vagões na descida e na retirada das balsas. Por razões de segurança, os passageiros eram desembarcados do trem e faziam a travessia do rio Paraná em uma embarcação auxiliar.
Além de resolver questões internas do país na colonização e assentamento de populações em extensas áreas fronteiriças, como era o caso do extremo Oeste paulista, a construção dessa ferrovia também atendia questões geopolíticas do Brasil em relação aos países vizinhos. A Argentina, país que até as primeiras décadas do século XX figurava como uma das nações mais ricas do mundo, exercia uma forte influência sobre a Bolívia e o Paraguai.
Sem fachada oceânica, esses dois países eram fortemente dependentes da navegação fluvial nos rios Paraguai, Paraná e da Prata para realizar as suas exportações e compras no mercado mundial. Esse controle estratégico da hidrovia pela Argentina foi, no passado, uma das causas da Guerra do Paraguai.
O controle dessa importante hidrovia continuava em mãos dos argentinos e o Governo brasileiro pretendia quebrar esse monopólio criando uma opção logística ferroviária para a ligação da Bolívia e do Paraguai a portos brasileiros no Oceano Atlântico. Com a chegada dos trilhos a Corumbá, passou a ser possível a integração da ferrovia brasileira com a Ferrovia Brasil-Bolívia, que foi concluída em meados da década de 1950 e cujos trilhos chegavam até a cidade boliviana de Santa Cruz de la Sierra.
Para atender o transporte de cargas do Paraguai, foi realizada a construção de um ramal ferroviário entre a região de Campo Grande e Ponta Porã, cidade brasileira na fronteira paraguaia. Esse ramal começou a se concretizar no início da década de 1940, quando foi iniciada a construção de uma ponte ferroviária sobre o rio Paraguai.
Os impactos da construção dessa ferrovia foram muito rápidos – vamos tomar a cidade de Campo Grande como exemplo. A população da cidade, que era da ordem de pouco mais de 2 mil habitantes no final do século XIX, saltou para quase 12 mil habitantes logo após o início da operação dos trens em 1914. Em 1920 atingiria a marca de 21 mil habitantes, 40 mil em 1935 e perto dos 50 mil habitantes em 1942, segundo dados do IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.
No total, os trilhos da ferrovia cobririam uma distância total de 1.622 km, entre o tronco principal da linha e os diversos ramais que foram construídos. Esse importante sistema de transportes ferroviários operou como uma empresa privada até 1957, ano em que foi criada a RFFSA – Rede Ferroviária Federal S.A., uma empresa estatal que passou a incorporar dezenas de ferrovias particulares por todo o Brasil.
Conforme já citamos, a concorrência com o transporte rodoviário levou essa ferrovia a um lento e gradual processo de decadência. Em 2006, dentro de um pacote de privatizações do Governo Federal, a ferrovia foi privatizada, passando a focar suas operações no transporte de cargas.
Faço voto que, algum dia, os antigos vagões de passageiros voltem a operar e passem a transportar novas gerações de passageiros. Lembro aqui que a cidade de Corumbá fica dentro dos domínios do Pantanal Mato-grossense, um dos maiores destinos do turismo ecológico do Brasil.
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