Um divisor de águas na história de Paris foi a grande reforma urbana levada a cabo por Georges-Eugène Haussmann, que foi Prefeito do Departamento do Sena, onde se incluem Paris, Hauts-de-Seine, Seine-Saint-Denis e Val-de-Marme, entre 1853 e 1870. Haussmann foi nomeado por Napoleón III e recebeu a missão de remodelar e modernizar a cidade de Paris, onde contou com o auxílio de grandes nomes da arquitetura e da engenharia da época.
O projeto urbanístico de Haussmann reordenou a geometria da capital francesa ao longo do eixo de grandes avenidas, bulevares e áreas verdes, que receberiam grandes edifícios públicos como L’Opéra. Antigas ruelas estreitas, centros de comércio desordenados e casarões amontoados, onde se instavam grandes cortiços, foram demolidos, ao mesmo tempo em que foram demarcados novos quarteirões para a construção de imóveis “modernos”. As margens do rio Sena e dos diversos canais que cortam a cidade foram urbanizadas e receberam novas pontes.
Uma das mais importantes e relevantes obras dessa grande reforma urbana ficou longe das vistas da população – uma rede dupla para o fornecimento de água potável e para coleta dos esgotos, instaladas em uma complexa rede de túneis com uma extensão total de aproximadamente 600 quilômetros. Muito mais que as novas e belas avenidas, pontes e praças, foi esse impressionante sistema de saneamento básico que mudou a vida da população parisiense.
Conforme comentamos em uma postagem anterior, o assentamento que deu origem a cidade de Paris foi fundado pelos romanos por volta do ano 50 de nossa era, tendo sido batizado como Lutetia Parisiorum em latim, ou Lutécia dos Parísios. Como era usual em todo assentamento romano, Lutetia possuía uma área central perfeitamente ordenada com fórum, templos, praças, banhos públicos, instalações militares, anfiteatro e grandes residências para a elite política e militar. Ao redor desse centro foram surgindo ruelas desordenadas onde funcionava o comércio, os serviços e onde a plebe morava.
Com o crescimento da cidade ao longo dos séculos, a área central de Paris passou por várias remodelações. Foram construídos novos prédios públicos, igrejas, muralhas, quartéis e grandes casas para a nobreza, o clero e a burguesia. As áreas periféricas continuavam desordenadas, superpovoadas e sujas, com esgotos correndo a céu aberto e com a população dependendo da água de córregos, poços e de algumas fontes públicas. A primeira grande obra de saneamento básico na cidade só seria feita no século XIV, quando foi construída uma galeria subterrânea para os esgotos.
Ao longo das primeiras décadas do século XIX, a população de Paris superou a casa de 1 milhão de habitantes. Os bairros centrais da cidade sofreram com o forte aumento populacional, chegando a concentrar até 100 mil habitantes por km². A população era miserável e as condições sanitárias deploráveis – sucessivas epidemias ceifavam a vida de milhares de pessoas, como a grande epidemia de cólera de 1832, que fez mais de 30 mil vítimas fatais.
Essa grande massa de miseráveis frequentemente se revoltava e entrava em confronto com as forças do Governo, formando as famosas barricadas de Paris (foram várias). As obras dos escritores Honoré de Balzac, Victor Hugo e Eugéne Sue apresentam esses momentos em detalhes. Foi esse caldeirão de problemas sociais e de instabilidade política que levou Charles-Louis Napoléon Bonaparte, sobrinho do imperador Napoleón Bonaparte, ao poder em 1852. As mudanças imaginadas pelo governante mudariam completamente a vida e a história da capital da França.
A construção dos túneis do sistema de águas e esgotos de Paris, que também se prestavam à drenagem das águas pluviais, criou um “espelho” subterrâneo das ruas e avenidas da cidade, onde, inclusive, foram instaladas placas com o nome de cada um dos logradouros e com os números dos respectivos imóveis. Com o passar do tempo, esses túneis receberam as instalações dos sistemas de gás, eletricidade e de telefonia da cidade. Essa infraestrutura foi sendo ampliada conforme a cidade foi crescendo e, até os dias de hoje, é a base do sistema de saneamento ambiental de Paris.
Uma das características mais interessantes do uso de túneis para a instalação dessas diferentes redes é a possibilidade de realizar serviços de manutenção e/ou de ampliação sem a necessidade de obras destrutivas como vemos aqui no Brasil. Esses túneis permitem o fácil acesso, a circulação e o trabalho das equipes técnicas, sem se criar qualquer problema para o trânsito de pessoas e veículos nas ruas e avenidas. Dois fatos curiosos: esses túneis foram usados intensamente pelos soldados da Resistência Francesa durante a ocupação de Paris pelo exército alemão na II Guerra Mundial (1939-1945) e existe o Museu dos Esgotos de Paris, onde é possível visitar um pequeno trecho dos túneis (vide foto).
Por mais de um século, os serviços de água e esgotos da cidade de Paris ficaram sob responsabilidade, total ou parcial, do poder público. Na década de 1980, a onda do neoliberalismo econômico começou a se espalhar pelo mundo, capitaneada principalmente pela vitória de Margareth Thatcher na Inglaterra em 1979 e de Ronald Reagan nos Estados Unidos em 1981, chegando nesse mesmo ano na França do Presidente François Mitterrand.
Em 1985, a Prefeitura de Paris entendeu que a iniciativa privada poderia realizar os investimentos que o Poder Público não tinha condições de fazer e concedeu os serviços de água e esgotos da cidade para duas empresas privadas. Seguindo a tradicional divisão da cidade de Paris, a margem esquerda do rio Sena, conhecida como rive gauche, passou ao controle da empresa Lyonnaise des Eaux, e a margem direita, a rive droite, foi para a Compagnie Générale.
Com a entrada do capital privado, toda a rede de tubulações de água passou por um grande processo de modernização. Antigas tubulações deterioradas de ferro fundido e de chumbo, que davam à água de alguns bairros um aspecto mais parecido com um chá e um gosto ruim, foram substituídas, o que melhorou a qualidade da água servida à população. As perdas de água ao longo da rede de distribuição, que chegavam a 24%, foram reduzidas para apenas 4%. Também foram modernizadas as redes e as estações de tratamento de esgotos, além de outros sistemas como o de reuso da água.
Como não existe “almoço grátis” em nenhum lugar do mundo, todos os pesados investimentos privados que foram feitos na melhoria das redes de água e esgotos de Paris rapidamente foram repassados para as contas pagas pelos usuários, transformando essas tarifas nas mais altas do gênero na Europa. Acostumados a reclamar de tudo, os parisienses transformaram a luta contra os altos custos dos serviços de saneamento básico em uma bandeira de luta política.
Em 2010, o então Prefeito reeleito de Paris, Bertrand Delanoë, decidiu pela reestatização dos serviços de água e esgotos da cidade, cumprindo assim uma das suas principais promessas da campanha eleitoral – a redução das tarifas dos serviços de água e esgotos. O prazo de concessão desses serviços havia se encerrado naquele ano e a Prefeitura decidiu pela não renovação dos contratos ou realização de novas licitações para a concessão. A Prefeitura criou a empresa Eau de Paris, que passou a cuidar desses serviços, reduzindo o valor das tarifas em 8%.
De acordo com dados apurados após a reestatização dos serviços de saneamento básico, os investimentos anuais da Eau de Paris correspondem a apenas € 20,00 por habitante e a taxa média de substituição das tubulações da rede de águas e esgotos caiu para apenas 0,2%. O índice de perda de água tratada voltou a subir e passou para 8%. A famosa ineficiência dos serviços públicos já começou a mostrar as suas garras e aponta para novos problemas no médio e no longo prazo.
Como se vê, foram inúmeros os altos e baixos dos serviços de saneamento básico ao longo da história de Paris. Vamos ver onde a diretiva atual vai levar a cidade.