O USO DOS PISCINÕES NO COMBATE ÀS ENCHENTES DAS GRANDES CIDADES

Praça Charles Miller

A construção de cisternas subterrâneas para o armazenamento das águas das chuvas vem sendo feito há milhares de anos em diferentes cantos do mundo. Um exemplo é Jerusalém, cidade sagrada para judeus, cristãos e muçulmanos. Existem diversas cisternas para o armazenamento de água nos subsolos da cidade e, de quando em vez, os arqueólogos encontram novas estruturas. Em 2012, foi encontrada uma cisterna com capacidade para armazenar 250 m³ de água nas proximidades das ruínas do Templo de Salomão, construída há mais de 2.500 anos. 

Outro fabuloso exemplo são as Cisternas da Basílica, em Istambul, na Turquia, também conhecidas em turco como Yerebatan Sarnıcı ou Yerebatan Sarayı. Construídas no século VI da Era Cristã, essas estruturas ocupam uma área total de 10 mil m² e têm capacidade para armazenar até 30 milhões de m³ de água. O desfecho do filme Inferno, baseado no livro homônimo de Dan Brown (do Código Da Vinci), se passa nessas cisternas. 

A partir dessa ideia ancestral de cisternas subterrâneas para o armazenamento de água das chuvas para o abastecimento de populações na antiguidade, surgiu a ideia da construção dos piscinões para o combate das enchentes nas modernas cidades brasileiras. O conceito é simples – cria-se um reservatório subterrâneo para o armazenamento temporário de grandes volumes, o que alivia a pressão sobre os canais naturais de drenagem de águas pluviais. Passado o período crítico das chuvas, bombas de recalque começam a bombear a água armazenada nesses depósitos na direção dos canais de drenagem, preparando o piscinão para a próxima enchente. 

A primeira estrutura do tipo foi construída na Praça Charles Miller, no charmoso bairro do Pacaembu, cidade de São Paulo, em 1995. É nesse mesmo endereço que encontramos o Estádio Municipal Paulo Machado de Carvalho, mais conhecido pelos paulistanos com Estádio do Pacaembu. Poucos anos atrás, foi instalado nesse Estádio o Museu do Futebol, o que consolidou de vez o local como um dos grandes pontos turísticos da cidade de São Paulo. A Praça Charles Miller já era notória entre os cidadãos da cidade, porém por uma característica das mais negativas – bastava uma chuva mais forte para os alagamentos tomarem conta do local. 

O bairro do Pacaembu nasceu em 1925, quando a famosa Companhia City, empresa inglesa de arquitetura, iniciou o loteamento e a urbanização da região. Uma das primeiras ações da empresa foram os trabalhos de drenagem e aterro de grandes áreas, que culminaram com a canalização do ribeirão Pacaembu e a construção da avenida homônima, até hoje a principal via do bairro. Foi a Companhia City quem doou para a Prefeitura de São Paulo, em 1935, o terreno de 75 mil m² onde seria construído o famoso Estádio do Pacaembu, inaugurado em 1940 (vide foto).  

Além da criação de um dos bairros mais charmosos da cidade, as ações da City, involuntariamente, acabaram por consolidar todo um ambiente favorável à formação de fortes enxurradas em dias de chuva, com a formação de enchentes violentas na parte baixa do bairro onde fica a Praça Charles Miller

O famoso “endereço” das enchentes criou transtornos no bairro por várias décadas até que, em 1993, as autoridades da Prefeitura e do Governo do Estado juntaram forças e iniciaram as obras de um gigantesco reservatório subterrâneo com capacidade para armazenar 75 milhões de litros de água das chuvas. O projeto pioneiro na cidade, mais conhecido Piscinão do Pacaembu, foi inaugurado em 1995 e se transformou rapidamente numa referência no combate de enchentes localizadas. Até a data de hoje, já foram construídos 27 piscinões na cidade de São Paulo e existe uma forte demanda reprimida para mais algumas dezenas dessas estruturas.  

O grande desafio para a construção do Piscinão do Pacaembu não foi exatamente na área de engenharia, mas na área da burocracia – tanto o Estádio do Pacaembu quanto a Praça Charles Miller eram construções tombadas pelo Conselho do Patrimônio Histórico e Cultural da cidade e, por este motivo, não poderiam sofrer qualquer tipo de intervenção. Foram necessárias incontáveis reuniões e acordos entre todas as partes envolvidas no processo para que se autorizasse o início das obras. Todo esforço acabou valendo a pena! 

Cerca de dez anos atrás, eu trabalhei em obras para a ampliação da rede coletora de esgotos em alguns bairros de São Paulo. Para fazer qualquer tipo de intervenção nos solos da cidade, indo da instalação de redes de água até cabos subterrâneos de energia elétrica, é necessário entrar com um pedido da construtora ou concessionária na Prefeitura da Cidade. Naquela época, nossos pedidos para a realização de obras em bairros da periferia levavam de 4 a 7 meses apenas para a análise dos técnicos e um período semelhante para a liberação do alvará. Imaginem então o tempo que seria necessário para analisar e liberar uma obra de grande porte em áreas tombadas pelo Patrimônio Histórico… 

Como temos comentado ao longo dessa série de postagens, o crescimento das cidades e a constante impermeabilização dos solos urbanos com concreto, asfalto e edificações de todo o tipo, a canalização indiscriminada de córregos e riachos e os desmatamentos, criam as condições ideais para a formação de grandes pontos de alagamentos nas cidades, com riscos tanto materiais quanto para a segurança dos moradores. Cada vez mais serão necessários estudos e projetos urbanos que visem a criação de pontos de retenção e acúmulo temporário de águas pluviais como os piscinões, evitando assim a formação das enchentes nos pontos mais baixos. 

Piscinões subterrâneos, como o que foi construído sob a Praça Charles Miller, são exemplos práticos de como resolver os problemas extremos provocados pelas enchentes nas cidades – na falta de áreas livres para a construção dos dispositivos em meio ao disputado espaço nos centros urbanos, o subsolo de praças e avenidas pode ser utilizado para as construções, restaurando-se posteriormente os espaços, que voltarão rapidamente para o uso pela população da cidade. 

Em diversos pontos críticos da cidade de São Paulo onde já foi possível a construção dos piscinões, a ocorrência de enchentes ou foi eliminada ou foi fortemente reduzida. Apesar dos grandes benefícios gerados por esse tipo de obra, elas têm um gravíssimo “defeito de nascença” – obras subterrâneas são consideradas invisíveis por muitos políticos e, portanto, tem pouco potencial para a geração de votos. Obras vistosas como pontes, avenidas e hospitais têm muito maior visibilidade e potencial para gerar votos. Para muitos desses políticos, enchentes são apenas “desastres naturais”

Em 2017, foi inaugurado o Piscinão Guamiranga, no bairro da Vila Prudente – Zona Leste da cidade, que tem capacidade para armazenar 850 milhões de m³ de águas pluviais. Esse piscinão fica dentro da bacia hidrográfica do rio Tamanduateí, uma das regiões que mais sofrem com as enchentes em São Paulo. Apesar do tamanho colossal desse piscinão, seriam necessárias outras 58 estruturas desse mesmo porte apenas para substituir as perdas de áreas de várzea devido à construção das Marginais Tietê e Pinheiros e também da Avenida do Estado, de acordo com minhas estimativas. Isso dá uma ideia do quanto ainda precisamos avançar para resolver o problema das enchentes em São Paulo, quiçá em outras grandes cidades brasileiras. 

Em tempo: o paulistano Charles Miller (1874-1953) foi o responsável pela introdução do futebol no Brasil em 1895 e nada mais natural que homenageá-lo batizando com seu nome a praça onde fica o estádio de futebol mais tradicional da cidade. Já os políticos que não se esforçam para aumentar o número de piscinões na cidade, esses merecem um belo “cartão vermelho” por parte da população. 

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