MACACOS ME MORDAM

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O genial Fernando Sabino (1923-2004) foi jornalista, escritor e um dos maiores cronistas da nossa história. Uma de suas mais famosas crônicas, Macacos me Mordam, narra as desventuras de um cientista de uma pequena cidade do interior de Minas Gerais que, para a realização de um experimento científico, envia um telegrama para um amigo de Manaus solicitando o envio de “1 ou 2 macacos” – um erro do telegrafista alterou a mensagem para “1002 macacos”. A chegada do primeiro lote do pedido na estação ferroviária da cidade com 600 macacos terminou em tragédia – aguardando as providências do cientista, os funcionários da estação ferroviária não tiveram outra opção senão abrir as jaulas: os macacos esfomeados se espalharam pela cidadezinha deixando tudo de pernas para o ar…

Fugindo da ficção, invasões de bandos de macacos, especialmente os pequenos saguis e micos, são uma realidade em muitas cidades brasileiras. Aqui em Santo Amaro, bairro da Zona Sul da cidade de São Paulo, você encontrará facilmente saguis de tufo preto andando nos fios elétricos e de telefonia dos postes na busca por frutas e insetos nas copas das árvores; na cidade do Rio de Janeiro, quem mora em bairros próximos das grandes matas convive há muito tempo com saguis e micos em suas varandas. Apesar das cenas divertidas e simpáticas com os macaquinhos, a presença destes animais em áreas urbanas pode ser bastante problemática – primatas são hospedeiros naturais dos vírus da família Flavividae que, se inoculados em seres humanos através da picada de mosquitos contaminados, transmitem a febre amarela.

O surto de febre amarela que vem assombrando dezenas de cidades das regiões Nordeste e Leste do Estado de Minas Gerais pode estar associado à migração de macacos para áreas próximas de cidades e vilas – essa é uma hipótese já levantada e em fase de estudos para sua comprovação. Porém, diversas cidades em outras regiões do Brasil têm relatado o encontro de macacos mortos nas suas áreas urbanas, o que tem deixado as autoridades em alerta.

Em Jaboticabal, cidade localizada a 358 quilômetros da cidade de São Paulo, foi confirmado que dois macacos encontrados mortos em novembro foram vítimas de febre amarela; as autoridades de saúde iniciaram uma campanha de vacinação da população contra a doença. Nas cidades de Ribeirão Preto e Monte Alto, também no interior do Estado de São Paulo, foram encontrados macacos mortos pela febre amarela, colocando todas as autoridades da área de saúde destes municípios em alerta. Esse problemático avanço de animais silvestres para as áreas urbanas está associado ao processo contínuo de destruição dos fragmentos florestais remanescentes, substituídos por plantações, pastagens e atividades de mineração. Sem seus antigos habitats, os animais silvestres migram em busca de alimentos e abrigos, alcançando muitas vezes as áreas urbanas. Notícias de animais silvestres como onças, capivaras, tamanduás e suçuaranas (onça parda) encontrados em quintais de casas nas cidades têm se tornado constantes – em um caso recente, uma suçuarana foi resgatada pela Polícia Florestal na garagem de uma casa em Cotia, município vizinho da cidade de São Paulo.

Além dos riscos de ataques e ferimentos em seres humanos, uma vez que esses animais instintivamente se protegem atacando prováveis predadores, a presença dos animais silvestres em áreas urbanas sempre trará riscos de transmissão de doenças silvestres para os seres humanos. Além da febre amarela que é transmitida por vírus de macacos das Américas do Sul e Central, podemos citar, entre outros, os perigosos vírus Ebola e da Aids que, comprovadamente, foram transmitidos de macacos africanos para seres humanos – existem inúmeros vírus desconhecidos da ciência hospedados em macacos e outros animais silvestres escondidos nas matas fechadas; o avanço do desmatamento e destruição de florestas poderá colocar alguns desses perigosos vírus em contato com populações humanas, com consequências imprevisíveis.

Que esses dramáticos surtos de febre amarela em áreas urbanas que estamos assistindo nas últimas semanas no Estado de Minas Gerais sirvam de alerta contra a irresponsabilidade humana que ataca e destrói as áreas naturais – a natureza tem suas armas para se proteger: a civilizada humanidade poderá levar a pior neste embate…

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A TRAGÉDIA DO RIO DOCE E A EPIDEMIA DE FEBRE AMARELA: ALGUMA RELAÇÃO?

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Em novembro de 2015, a barragem de uma mineradora no município de Mariana, em Minas Gerais, se rompeu e lançou uma enxurrada com cerca de 60 milhões de metros cúbicos de lama e rejeitos minerais na direção de casas e sítios da comunidade de Bento Rodrigues, provocando a morte de, pelo menos, 19 pessoas e poluindo todo o trecho do Rio Doce entre Mariana até sua foz, em Regência no Espírito Santo.

Considerada a maior tragédia ambiental já ocorrida no Brasil e o maior desastre da mineração em todo o mundo, o acidente provocou inúmeras alterações na flora e na fauna de toda a bacia hidrográfica do Rio Doce. Calcula-se que, ao longo de um trecho de 853 quilômetros, mais de 120 nascentes tenham sido soterradas pela lama – onze espécies de peixes endêmicas da bacia hidrográfica que já estavam em risco de extinção podem ter desaparecido para sempre. Milhares de árvores foram arrancadas e arrastadas, misturando-se a lama, pedras e entulhos, soterrando a antiga calha do rio. A pesca, a agricultura e a navegação, simplesmente, ficaram inviáveis – milhares de trabalhadores perderam a sua fonte de renda, agravando a situação financeira de dezenas de cidades que já viviam uma situação de penúria desde o início da crise econômica brasileira em 2015.

O recente surto de casos de febre amarela nas regiões Nordeste e Leste do Estado de Minas Gerais pode estar relacionado à tragédia do Rio Doce – esta é a hipótese levantada pela Prof. Márcia Charme, bióloga da FIOCRUZ – Fundação Oswaldo Cruz, vinculada ao Ministério da Saúde e considerada a mais importante instituição de ciência e tecnologia em saúde da América Latina.

A hipótese proposta tem como ponto de partida a localização das cidades com relatos de casos de febre amarela em Minas Gerais – grande parte está localizada em regiões formadoras da bacia hidrográfica do Rio Doce. Considerando todo o conjunto de alterações ambientais provocadas pelo rompimento da barragem de rejeitos nas águas e margens do Rio Doce, pode-se concluir que houve uma intensa migração de animais (mamíferos, aves, répteis, peixes e insetos) para outras regiões, buscando um novo habitat com um bom suprimento de água potável e alimentos. Atenção especial deve ser dada a migrações de grupos de macacos que, como comentado em meu último post, são hospedeiros naturais dos vírus da família Flavividae (flavivírus), que são os causadores da febre amarela em seres humanos.

A presença de macacos em áreas muito próximas a cidades e vilas aumenta muito a probabilidade de transmissão do flavivírus dos primatas para os seres humanos – as fêmeas de mosquitos hematófagos como o Aedes aegypti picam humanos e macacos indistintamente em busca de sangue para suprir seus ovos com reservas de nutrientes, o que possibilita a transmissão e disseminação do vírus entre as espécies. Os conhecidos problemas nas áreas de saneamento básico de nossas cidades proporcionam as condições ideais para a procriação e sobrevivência de grandes populações de mosquitos, o que só faz aumentar as probabilidades de circulação do vírus entre as populações de primatas e seres humanos.

O governo de Minas Gerais decretou situação de emergência em um total de 152 municípios do Estado – se confirmada a hipótese da relação dos casos de febre amarela com a tragédia do Rio Doce, há uma possibilidade real de um crescimento do número de municípios em situação de risco, inclusive em municípios do Estado do Espírito Santo banhados pelas águas do Rio.

Ainda que hipotética, a relação entre o desastre ambiental no Rio Doce e o surto de febre amarela é assustadora, pois abriria espaço para um grande crescimento da epidemia. Considerando que passados mais de ano desde o rompimento da barragem de rejeitos em Mariana, muito pouco foi feito em prol da recuperação do Rio Doce. É fundamental que se elaborem desde já estratégias para o controle das populações de mosquitos Aedes aegypti nos municípios de toda a bacia hidrográfica do Rio – o controle do vetor e a vacinação em massa das populações são as únicas alternativas imediatas para o controle de um eventual surto em toda a região.

SURTO DE FEBRE AMARELA NA ZONA DA MATA MINEIRA

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No início do século XX, essa seria uma manchete facilmente encontrada nos grandes jornais em circulação no país. Eram tempos diferentes, quando o Brasil era predominantemente rural e onde os Barões do Café e os Senhores da Borracha mandavam e desmandavam na política e na vida cotidiana de todos. Nossa jovem república lutava para se consolidar e se recuperava dos traumas da maior guerra civil já vivida pela nação – a Guerra de Canudos (1896-1897); a Abolição da Escravatura em 1888 lançara milhões ex-escravos na indigência dos morros e nas recém inventadas “favelas”(nome cunhado por ex-soldados em referência a uma árvore muito comum no sertão de Canudos), ao mesmo tempo que imigrantes eram importados aos milhões a fim de ocupar as funções dos antigos trabalhadores, em condições de trabalho não muito diferentes.

Infelizmente, a manchete que se lê é recente – vem sendo publicada nestes últimos dias nos meios de comunicação eletrônicos, sendo repetida quase que diariamente nos principais telejornais do país: municípios da Zona da Mata no Nordeste e Leste do Estado de Minas Gerais estão vivendo um surto de febre amarela como não se via há décadas. Diferente dos tempos da Revolta da Vacina de 1904, quando a população da cidade do Rio de Janeiro se rebelou contra a vacinação obrigatória, moradores de cidades mineiras estão revoltados contra as autoridades de saúde pela falta de vacinas contra a febre amarela nas unidades de saúde, tamanho crescimento da demanda: citando um único exemplo, do posto de saúde do bairro de Serra em Belo Horizonte, a demanda saltou de 10 inoculações diárias para 200 aplicações.

O governo do Estado de Minas Gerais decretou na última semana a situação de emergência em um total de 152 municípios das regionais de saúde de Coronel Fabriciano (Vale do Aço), Governador Valadares (Leste), Manhumirim (Zona da Mata) e Teófilo Otoni (Vale do Mucuri) onde há uma alta incidência de casos de febre amarela. De acordo com dados da Secretaria de Saúde de Minas Gerais, há suspeita de 133 casos de contaminação com a doença e a notificação de 38 casos de mortes, sendo que em 10 casos foi confirmada a febre amarela como causa mortis.

A febre amarela é uma doença infecciosa causada por um vírus da família Flaviviridae, normalmente encontrado em macacos que habitam as florestas tropicais das Américas Central e do Sul. Em áreas rurais e silvestres, a doença é transmitida pelo mosquito Haemagogus (mostrado na imagem deste post); em áreas urbanas, o transmissor é o conhecido mosquito Aedes aegypti, transmissor da Dengue, do Zika vírus e da febre Chikungunya.  A febre amarela era considerada erradica das áreas urbanas do Brasil desde 1942.

Uma das causas mais prováveis para o reaparecimento da febre amarela em áreas urbanas é a presença de macacos nas proximidades dos bairros periféricos das cidades – desmatamentos nos fragmentos florestais remanescentes para atividades agrícolas e mineradoras expulsa os animais de seus habitats naturais, levando-os algumas vezes a ocupar pequenas matas em lotes dentro das áreas urbanas. O grande número de mosquitos Aedes aegypti que infestam as nossas cidades não diferenciam seres humanos de macacos, funcionando como um vetor para a transmissão do vírus causador da febre amarela. Os flavivirus são inofensivos para os primatas mas podem ser letais para os seres humanos.

Além de toda a atenção que as nossas autoridades das áreas de saúde e de saneamento básico têm de dar a todo um conjunto de doenças como a Dengue, a Zika, a Chikungunya e, mais recentemente, ao vírus Mayaro, agora também é necessária a atenção contra a febre amarela, uma doença típica em nossas cidades no século XIX e que parece estar voltando com força total.

O grande escritor Mario de Andrade em seu antológico livro Macunaíma parodiou a frase do naturalista francês Saint-Hilarie –“Pouca saúde, muita saúva, males do Brasil são” (a frase original do século XIX – “Ou o Brasil acaba com a saúva, ou a saúva acaba com o Brasil”). Peço licença aos dois grandes mestres para parodiar também, com uma fundamentação bastante atual:

Pouca saúde, muito Aedes, males do Brasil são.

OS PARDAIS DE PEREIRA PASSOS

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Em dezembro de 2012, logo após embarcar para uma viagem para o Uruguai, fui surpreendido com um procedimento dos comissários de bordo: depois do fechamento das portas do avião, os passageiros foram informados que seria aplicado um inseticida na aeronave em atendimento a uma determinação das autoridades sanitárias daquele país. O objetivo desse inseticida seria a eliminação de eventuais mosquitos Aedes aegypti clandestinos na aeronave, evitando a entrada do vetor em terras uruguaias. Foram alguns minutos sufocantes sob uma nuvem de gás, até que o sistema de ventilação fosse ligado – todos os passageiros protestaram vigorosamente. Em minha opinião,  esse tipo de atitude não é efetiva e está mais para o campo da “mágica”.

O combate ao mosquito Aedes aegypti está cheio de histórias “folclóricas” e curiosas como essa. Uma das mais interessantes se desenrolou na cidade do Rio de Janeiro no início do século XX, numa época em que a cidade enfrentava diferentes surtos de doenças como febre amarela, varíola, peste bubônica, malária, tifo e tuberculose.

Francisco Franco Pereira Passos (1836-1913), prefeito indicado da cidade do Rio de Janeiro entre 1902 e 1906, iniciou uma série de obras que tinham como objetivo a modernização da cidade. Inspirado nas reformas urbanas da cidade de Paris décadas antes, Pereira Passos desapropriou grandes áreas para a construção de largas avenidas e praças, iniciou a modernização da área do porto da cidade e também a construção do Teatro Municipal, do Museu Nacional de Belas Artes e da Biblioteca Nacional. Consta que muitos cortiços foram demolidos e que os moradores se refugiaram nos morros, dando origem a algumas das mais famosas favelas cariocas.

Parte importante do legado de Pereira Passos foram os trabalhos na área de saneamento básico e de higienização da cidade, cuja coordenação foi confiada ao médico sanitarista Oswaldo Cruz, empossado como diretor do Serviço de Saúde. Conforme comentado em post anterior, muitas das ações de Oswaldo Cruz não foram muito bem recebidas pela população, levando ao episódio que ficou conhecido como a Revolta da Vacina de 1904. Os agentes de saúde entravam nas residências, muitas vezes a força, buscando focos de mosquitos e de ratos, o que não era totalmente compreendido pela população. Quando o governo tornou obrigatória a vacinação contra a varíola, a população tomou as ruas e entrou em confronto com as forças de segurança.

Uma das ações polemicas do período foi a importação de 200 pardais (Passer domesticus) de Portugal em 1903. Alguns cientistas haviam afirmado ao Prefeito Pereira Passos que essas aves eram vorazes comedoras de insetos e que, uma vez introduzidas na cidade do Rio de Janeiro, atuariam como um agente biológico natural para o controle da população de mosquitos. As aves foram soltas no Campo de Santana, em cerimônia com pompa e muito protocolo.

Os pardais, assim como a imensa quantidade de pássaros autóctones já existentes no Brasil, se alimentam de grandes quantidades de insetos na época da reprodução, quando necessitam  de maior quantidade de proteína; na maior parte do ano são aves oportunistas, que comem o que lhes aparecer pela frente – frutas, sementes, formigas, cupins, minhocas etc, tornando inócua a soltura das aves para o combate aos mosquitos Aedes aegypti. Os pontos negativos da introdução dos pardais, ao contrário, foram muito grandes no meio biológico: o pardal é uma ave robusta e rústica, acostumada a enfrentar os invernos rigorosos da Europa; na competição natural contra os pássaros nativos, o pardal não encontrou competição à sua altura e acabou se espalhando com facilidade por todo o país. Cambacicas, curruíras, sanhaços, tico-ticos e outras espécies de pássaros de menor porte da Mata Atlântica perderam espaço nos seus nichos ecológicos para as aves invasoras. É impossível calcular o tamanho do estrago causado ao meio natural pela introdução dos pardais em nossas terras.

As obras de saneamento ambiental e de fumigação de inseticidas pelos agentes de saúde de Oswaldo Cruz é que foram efetivas no controle das populações de mosquitos da cidade, levando a uma redução substancial das doenças epidêmicas.

Não existe mágica ou ação isolada para o controle de um vetor tão danoso quanto o mosquito Aedes Aegypti – é preciso um esforço coletivo de toda a população, eliminando os focos de água parada, que são os criadouros naturais do mosquito, e evitando que novos focos voltem a se formar.

AEDES AEGYPTI: UM MOSQUITO “DOMESTICADO”

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O Homo sapiens, a nossa espécie, “emergiu” em algum momento entre 190 mil e 160 mil anos atrás na região nordeste do continente africano – entre 100 mil e 60 mil anos atrás, o Homo sapiens iniciou um processo longo e contínuo de migração para os outros continentes e domínio de todo o mundo.

Além de inteligência, robustez física, habilidade manual e imensa capacidade de adaptação aos mais diferentes climas e condições ambientais, os seres humanos devem grande parte do seu sucesso de sobrevivência a todo um grupo de animais que, domesticados ao longo de milhares de anos, forneceram inicialmente o alimento, depois força bruta para o trabalho e para as guerras, e também a guarda das residências e companhia na solidão. Citando apenas alguns exemplos globais: bois, cavalos, porcos, cabras, ovelhas, galinhas, patos, perus, cães e gatos; com elefantes e búfalos em regiões da Ásia e extremo oriente representando as particularidades regionais.

Essa lista precisa incluir também alguns animais que acabaram sendo “domesticados” involuntariamente pelas populações humanas – o rato é um dos mais importantes representantes dessa lista. Nativo das estepes asiáticas, o rato se habituou a uma vida próxima aos assentamentos humanos, onde conseguia alimentos com muita facilidade. Os ratos acompanharam as migrações das populações humanas e se espalharam por todos os cantos do mundo (a exceção, pelo menos até esse momento, é o continente Antártico). Os ratos integram a lista dos chamados animais sinantrópicos, que são aqueles que se adaptaram a viver junto ao homem, a despeito da vontade deste – ou seja, são quase “domesticados”. Incluem-se nessa lista pombos, morcegos, abelhas, aranhas, baratas, pulgas, moscas, carrapatos, escorpiões, formigas, vespas e mosquitos – destaque aqui para o nosso mundialmente famoso Aedes Aegypti.

O mosquito Aedes Aegypti é originário do continente africano, onde aprendeu a viver próximo dos assentamentos humanos desde milhares de anos atrás. Foi durante o período das grandes navegações europeias que esse mosquito “pegou carona” nas embarcações mercantis, especialmente nos chamados navios negreiros, e chegou ao continente americano, se fixando nas áreas tropicais e subtropicais, do Norte da Argentina até o estado da Flórida, nos Estados Unidos da América.

O ciclo de vida dos mosquitos apresenta quatro fases distintas – ovo, larva, pulpa e inseto adulto, destacando que os três primeiros estágios dependem da presença de água parada, o que nunca faltou nos assentamentos humanos e foi peça chave na predileção do inseto pela nossa companhia. A adaptação do mosquito Aedes aegypti ao convívio com os seres humanos foi tão grande que, de acordo com estudos especializados recentes, o inseto passou também a se reproduzir em água parada com altos índices de poluição como nos esgotos, o que explica os grandes níveis de infestações nas cidades brasileiras.

Água parada e esgotos são encontrados em abundância nas cidades brasileiras:

– Problemas nas redes de abastecimento de água em muitas cidades obrigam as populações a armazenar água nos mais diferentes tipos de recipientes: panelas, latas, latões, tambores e barris, entre outros. Sem maiores cuidados, esses recipientes podem se transformar em verdadeiros criadouros de mosquitos;

– Esgotos correndo a céu aberto e/ou eliminados de forma improvisada são facilmente encontrados nas nossas cidades, facilitando a formação de represamentos e poças, que atrairão as fêmeas dos mosquitos que buscam locais apropriados para a colocação dos ovos;

– Os sistemas de drenagem de águas pluviais, sem manutenção e limpeza periódicas, são potenciais criadouros de mosquitos pois podem permitir a formação de represamentos e empoçamentos de água;

– Os resíduos sólidos descartados incorretamente podem acumular a água da chuva e possibilitar a formação de importantes criadouros do mosquito. A lista inclui pneus, latas, embalagens plásticas e entulhos da construção civil; até cascas de ovos e tampinhas de refrigerante têm potencial para reter pequenas quantidades de água das chuvas e abrigar criadouros de mosquitos.

É responsabilidade de todos nós, Homo sapiens, rompermos em definitivo os nossos vínculos com o Aedes aegypti – esse mosquito só se reproduz graças ao auxílio humano, colonizando regiões onde encontram recipientes com água parada; e somos nós, apenas nós, os responsáveis por manter esses criadouros do mosquito ativos.

DENGUE, CHIKUNGUNYA, FEBRE AMARELA, SÍNDROME DE GUILLAIN-BARRÉ, ZIKA E MAYARO, OU AS “PESTES” URBANAS DO SÉCULO XXI

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Durante vários milênios, as chamadas “pestes” foram um dos piores pesadelos das antigas cidades. Sem qualquer aviso prévio, surgiam os sintomas da doença – manchas ou erupções na pele, febres, diarreias, vômitos entre outras manifestações físicas; logo depois, as pessoas começavam a morrer, criando verdadeiras ondas de pânico na população. Muitos acreditavam ser uma “vingança” de Deus pelos pecados praticados pelos moradores da cidade, outros se tratar de miasmas (os povos antigos acreditavam que as doenças eram transmitidas por alguns tipos de gases liberados por matérias em putrefação, os miasmas).

A história registra inúmeras “pestes” em cidades de todo o mundo, provocadas por surtos de cólera, gripe, varíola, tifo, entre outras doenças. Uma das mais terríveis pandemias enfrentadas pela humanidade foi a Peste Negra (bubônica) que, apenas no surto do ano de 1394, matou um quarto da população da Europa. No final do século XIX cientistas isolaram a bactéria Yersínia pestis e ficou comprovado que ela era a causadora da doença. Descobriram também que a bactéria era transmitida ao homem pelas pulgas do rato preto, o que abriu caminho para o controle da doença. 

O contínuo desenvolvimento científico e tecnológico resultou na criação de vacinas e medicamentos que, aliados aos avanços nas áreas do saneamento básico e da educação, possibilitaram a prevenção e o controle de inúmeras doenças, salvando milhões de vidas. Durante décadas vivemos a certeza que as “pestes” era um mal que havia ficado no passado.

Aqui no Brasil, infelizmente, involuímos neste quesito e voltamos a conviver com “pestes” urbanas que acreditávamos erradicadas desde a época do médico sanitarista Oswaldo Cruz e da Revolta da Vacina de 1904. Na época, a cidade do Rio de Janeiro tinha uma população de mais de 800 mil habitantes e era constantemente assolada por surtos de febre amarela, varíola, peste bubônica, malária, tifo e tuberculose. Oswaldo Cruz implementou um ambicioso plano de saneamento e de higienização ambiental,  além de criar um verdadeiro exército de matadores de mosquitos. Algumas iniciativas terminaram em violência quando a população se revoltou contra a obrigatoriedade da vacinação contra a varíola. Os embates resultaram em, pelo menos, 30 mortos, 110 feridos e 945 prisões. O mosquito Aedes aegypti, que foi um dos alvos prioritários do plano de higienização de Oswaldo Cruz, chegou a ser considerado como erradicado; nas últimas décadas, porém, o mosquito voltou a recolonizar o Rio de Janeiro e grande parte do país, trazendo em sua esteira, mais uma vez, os riscos de transmissão de várias doenças:

Além da conhecida febre amarela urbana, o mosquito Aedes aegypti passou a transmitir a Dengue, identificada pela primeira vez no Brasil em 1986 e conhecida desde então pelos sucessivos surtos a cada novo Verão – em 2016 contabilizamos 1.487.673 (até 12/12/2016) casos prováveis de Dengue no Brasil.

A febre Chikungunya tem sintomas muito parecidos com a Dengue, sendo transmitida pela picada de mosquitos contaminados com o vírus CHIKV. Em 2016 foram registrados 263.598 casos prováveis da febre no país

O primeiro surto do vírus Zika no Brasil foi identificado em 2015;  em 2016 foram informados mais de 170 mil casos suspeitos. No final de 2015 o vírus foi isolado em um bebê recém-nascido com microcefalia – estudos posteriores comprovaram a associação do vírus com o nascimento de crianças com a doença, o que chamou a atenção de todo o mundo para a gravidade da situação. Estudos científicos em andamento estão associando o vírus da Zika com o nascimento de bebês cegos.  

A síndrome de Guillain Barré é uma doença auto imune que provoca uma fraqueza muscular de aparecimento súbito, causada pelo ataque do sistema imunológico ao sistema nervoso periférico. O vírus Zika é um dos transmissores da doença.

Recentemente, os noticiários passaram a falar do vírus Mayaro, que provoca uma doença caracterizada por uma febre hemorrágica similar à Chikungunya. Esse “novo” vírus é transmitido pelo Aedes aegypti e é a mais nova preocupação das autoridades médicas e sanitárias do Brasil.

Os ratos foram os vilões de grandes pestes na antiguidade – o posto agora é do Aedes aegypti. No próximo post vamos falar dos diversos fatores que permitem a perpetuação do mosquito Aedes aegypti.

O COLAPSO DOS SERVIÇOS DE COLETA DE RESÍDUOS NAS BAIXADAS: TANTO NA SANTISTA QUANTO NA FLUMINENSE

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A Região da Baixada Santista engloba os municípios do litoral sul do Estado de São Paulo: Bertioga, Guarujá, Cubatão, Santos, São Vicente, Praia Grande, Mongaguá, Itanhaém e Peruíbe. A população residente da região é de 1,7 milhão de habitantes – em épocas de férias e nos feriados, quando milhões de paulistas da região Metropolitana de São Paulo e de todo o interior “descem” a Serra do Mar, a população de alguns municípios chega a quintuplicar. Apesar do caos generalizado instalado, pouca gente reclama: os turistas lavam a alma nas águas do Oceano Atlântico e os moradores das cidades faturam um bom dinheiro nas áreas do comércio e dos serviços.

A Baixada Fluminense engloba os municípios que ficam ao norte do município do Rio de Janeiro: Duque de Caxias, Nova Iguaçu, Belford Roxo, São João do Meriti, Mesquita, Nilópolis e Queimados; alguns autores também incluem os municípios de Magé, Guapimirim, Japeri, Itaguaí, Seropédica e Mangaratiba. Como se deu nos municípios de entorno da cidade de São Paulo, a Baixada Fluminense cresceu exponencialmente a partir da segunda metade do século XX, absorvendo os imensos contingentes de migrantes que buscaram uma vida melhor na Região Metropolitana da cidade do Rio de Janeiro.

A profunda crise econômica pela qual o Brasil vem passando desde 2015 criou problemas financeiros para a maioria das cidades brasileiras, que vão desde dificuldades no fechamento da folha de pagamento dos servidores públicos até a paralisação na prestação de alguns serviços municipais; nas Baixadas, os problemas tiveram um agravante: grande parte dos serviços de coleta e destinação dos resíduos sólidos entrou em colapso graças às dívidas milionárias das prefeituras com as empresas prestadoras destes serviços. O final do mandato dos prefeitos dos municípios foi um elemento a mais para o agravamento do problema.

Na Baixada Santista, seis municípios acumularam dívidas milionárias com as empresas concessionárias que, para pressionar as prefeituras, iniciaram a paralisação dos serviços a partir do mês de outubro, justamente na época da campanha eleitoral. Os valores das dívidas de algumas cidades são bem expressivos: R$ 21,2 milhões no Guarujá, R$ 16 milhões em Cubatão e R$ 70 milhões em Santos. Na Baixada Fluminense a situação não era muito diferente, sendo mais grave nos municípios de Mesquita, Belford Roxo e em Duque de Caxias.

Com a paralisação ou redução dos serviços de varrição de ruas, coleta e destinação dos resíduos sólidos, as populações das cidades destas regiões passaram a conviver com montanhas de lixo nas ruas, avenidas, praias, praças e demais logradouros públicos; em cidades da Baixada Fluminense algumas ruas acabaram bloqueadas dada a quantidade de lixo e entulhos acumulados. Nas cidades onde os prefeitos não conseguiram se reeleger, os problemas se tornaram mais graves pois a renegociação das dívidas, simplesmente, foi empurrada para os novos administradores com posse prevista para o dia 1° de janeiro de 2017; nas cidades onde os prefeitos foram reeleitos, como no caso de Santos, os governos conseguiram alinhavar acordos e retomar os serviços.

Em meio aos problemas entre administrações municipais e concessionárias de serviços públicos, milhões de moradores passaram meses convivendo com pilhas de lixo e entulho, mal cheiro, ratos, baratas e riscos de expansão das doenças epidêmicas transmitidas por mosquitos, como a Dengue, devido ao início do período das chuvas de Verão. Com a posse dos novos prefeitos, muitas renegociações já foram concluídas e os serviços vão sendo retomados.

Vale relembrar que as ações de limpeza pública, coleta e destinação de resíduos são alguns dos serviços obrigatórios mais básicos das prefeituras municipais e estão entre os direitos mais fundamentais dos cidadãos, ao lado do acesso à saúde, educação, segurança e saneamento básico. A atitude passiva e criminosa de muitos prefeitos diante do abandono na execução desses serviços (por mais justificável do ponto de vista legal por parte dos concessionários) merece uma punição exemplar – no mínimo, esses políticos deveriam ser proibidos de se candidatar a novos cargos eletivos nas administrações públicas. Centenas de cidades em todas as regiões do Brasil enfrentaram problemas semelhantes.

As populações e o meio ambiente não merecem passar por iguais situações novamente.

UM NOVO ANO NOVO, OU NADA HÁ DE NOVO NO SANEAMENTO BÁSICO

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O “interminável” e tumultuado ano de 2016 chegou ao fim e todos começamos 2017 com as esperanças renovadas.

A chegada do Verão trouxe, para algumas regiões, as preciosas e esperadas chuvas, tão importantes para a renovação dos estoques de águas para o abastecimento das cidades, geração de energia elétrica, irrigação das lavouras e garantia da sobrevivência de todos os seres vivos nos mais variados ecossistemas.

Infelizmente, a chegada do Verão e de suas chuvas traz em sua esteira as imagens das enchentes, desmoronamentos de encostas, danos ao patrimônio, veículos presos em ruas e avenidas tomadas por enxurradas e, não raras vezes, mortes de inocentes.

No Nordeste, ao contrário, se agrava a seca e a falta de água em centenas de cidades na região do semiárido, que persiste desde 2012 e, ao que tudo indica, continuará a se repetir ao longo de 2017. Essa prolongada seca, que já está sendo considerada uma das mais intensas em um século, já afeta 34 milhões de pessoas e escancara a incapacidade de governos de todos os níveis na gestão dos recursos hídricos. A construção do polêmico sistema para a transposição das águas do Rio São Francisco é um exemplo – as obras, se concluídas dentro dos prazos e orçamentos iniciais, poderiam estar auxiliando milhões de brasileiros a enfrentar esse grave período de estiagem; trechos inacabados e, não raras vezes, mal projetados estão envoltos em escândalos e desvios de verbas.

Mas esse novo ano trouxe também cenas diferentes para os telejornais: em meio a um cenário de caos, novos prefeitos assumiram o comando de cidades em situação falimentar: funcionários públicos com salários atrasados, postos de saúde e hospitais com falta dos insumos mais básicos, prédios públicos com corte de água e luz por falta de pagamentos, montanhas de resíduos sólidos nas ruas e calçadas aguardando por um serviço de coleta que nunca chega – as prefeituras devem centenas de milhões de reais para fornecedores e empresas concessionárias de todos os tipos. A combinação de crise econômica, corrupção e incompetência nunca havia sido tão explícita!

Resíduos sólidos amontoados em ruas e calçadas combinados com as fortes chuvas de Verão são um convite para a ocorrência e agravamento das enchentes localizadas – quem acompanha as minhas publicações sabe que trato, irritantemente, deste tema com muita frequência. Nossas cidades cresceram desordenadamente e sem planejamento, criando todos os tipos de dificuldades para a drenagem das águas pluviais. Qualquer descaso com a coleta e destinação dos resíduos sólidos, mesmo que temporário, implica em agravamento dos problemas.

Além dos alagamentos, a proliferação descontrolada dos vetores é também preocupante. Como todos tem acompanhado nos noticiários, diversas regiões de nosso país convivem há anos com as epidemias de Dengue, que sempre se agravam nos períodos das chuvas. O responsável pela transmissão da doença é o conhecido mosquito Aedes aegypti – os criadouros desse mosquito são os recipientes que acumulam as águas das chuvas: garrafas, latas, pneus, embalagens, entulhos e afins. Caixas d’água e recipientes usados sem maiores cuidados para armazenar água nas residências também podem se transformar em criadouros de mosquitos. Além dos “estoques” de criadouros de mosquitos já existentes nas nossas casas e cidades, os recentes problemas na coleta e destinação dos resíduos domésticos, comerciais e industriais, que observamos em inúmeros municípios, criaram as condições ideais para um aumento das populações dos mosquitos e, consequentemente, num incremento do número de casos de Dengue.

Além da Dengue, o mosquito Aedes aegypti é o transmissor da febre Chikungunya e do vírus Zika, causador da síndrome de Guillain-Barré e, já comprovado cientificamente, está associado ao nascimento de milhares de crianças com microcefalia; em menor escala, o Aedes aegypti é o transmissor da febre amarela em áreas urbanas.

A melhor defesa das populações contra todo esse conjunto de doenças é a eliminação dos criadouros dos mosquitos e a prevenção contra o surgimento de novos focos de acúmulo de águas das chuvas, a gestão responsável dos resíduos sólidos urbanos e a educação ambiental – desgraçadamente, para a infelicidade geral de todos nós, estas atividades desandaram nestes últimos tempos.

Trataremos disso nos próximos posts.