
Variações bruscas no clima de diversas regiões do mundo vem sendo observadas há muitos séculos pelas populações sem que os “sábios” tivessem explicações racionais para esses fenômenos. Na falta dessas explicações científicas a população se valia de eventos com criaturas fantásticas e mitológicas. A chegada de um grande dragão, por exemplo, poderia explicar uma forte onda de calor; a ira de um deus, ao contrário, estaria na origem de uma temporada de chuvas muito fortes.
Foi somente em décadas recentes, após intensos estudos climáticos e meteorológicos em todo o planeta – especialmente com o uso de imagens e dados de satélites, que parte do mecanismo que provoca essa variação nos padrões de chuvas e de calor começaram a ser desvendados. Os pesquisadores perceberam um aquecimento anormal das águas do Oceano Pacífico em alguns anos; em outros anos, o que se observou foi um resfriamento anormal dessas águas. Esses fenômenos foram batizados de El Niño (“o menino” em espanhol) e La Niña (a menina).
De acordo com informações da OMM – Organização Meteorológica Mundial, uma agência ligada a ONU – Organização das Nações Unidas, existe 60% de possibilidade de que El Niño se desenvolva até o fim de julho, e cerca de 80% de possibilidade de formação do fenômeno até o mês de setembro,
Nos anos em que o fenômeno El Niño é detectado nas águas do Oceano Pacífico, são registradas uma série de alterações climáticas em todo o mundo. Em 2015, o surgimento de um forte El Niño prejudicou lavouras de cacau, chá e café em toda a Ásia e África. Também provocou uma forte seca no Sudeste Asiático, favorecendo o surgimento de vários incêndios florestais.
Naquele ano também se observou o inverno mais quente já registrado nos Estados Unidos. Na América do Sul, o surgimento do El Niño pode resultar em períodos de seca na região Centro-Norte do continente, em especial na Amazônia, e de maior umidade nas regiões mais ao Sul do Brasil e na Argentina.
Quando o fenômeno La Niña é observado no Oceano Pacífico, as águas superficiais de uma extensa região apresentam uma redução média entre 2 e 3° C na sua temperatura. Nesses anos de ocorrência de La Niña, costuma se observar, entre os meses de dezembro e fevereiro, um aumento das chuvas na região Nordeste e temperaturas abaixo do normal na região Sudeste do Brasil. O fenômeno também provoca um aumento do frio na costa Oeste dos Estados Unidos e no Japão, além de aumento das chuvas na costa Oeste da Ásia.
A ocorrência desses fenômenos climáticos varia muito. La Niña costuma ocorrer em intervalos de 2 a 7 anos, com uma duração de 9 a 12 meses – em alguns casos, pode ter uma duração de até 3 anos como agora. O El Niño têm uma frequência tão irregular quanto a da La Niña, ocorrendo também em intervalos de 2 a 7 anos, porém, com uma duração de 10 a 18 meses.
Uma das regiões brasileiras que pode estar entre as mais impactadas pela chegada do El Niño é o Centro-Oeste. Em suas visitas anteriores, o “menino malvado”, como nós costumamos chamar o fenômeno aqui no blog, provocou fortes secas e uma baixa bastante significativa no nível de grandes reservatórios da região como o de Serra Mesa, em Goiás.
É importante lembrar que a Região Centro-Oeste é formada em sua maior parte pelo bioma Cerrado, onde a agricultura e a pecuária cresceram enormemente nas últimas décadas. O Cerrado concentra 36% de todo o rebanho bovino nacional, sendo que 30% dos solos do bioma foram transformados em pastagens para boiadas. Cerca de 63% da produção brasileira de grãos está concentrada no Cerrado, onde se inclui mais da metade de toda a produção brasileira de soja.
Formado por solos tipicamente pobres e altamente ácidos, o Cerrado foi desprezado durante muito tempo por agricultores e pecuaristas. A situação só começaria a mudar a partir da década de 1950 com o desenvolvimento de técnicas para a correção dos solos como a calagem (aplicação de calcário), a adubação fosfatada e a adubação potássica. Também foram criadas sementes de grãos adaptas especialmente para o plantio no bioma, a partir da década de 1970, transformado o Cerrado no mais importante celeiro agrícola do Brasil.
Solos adequados para o plantio de grãos e formação de pastagens não são tudo – é preciso que chuvas regulares caiam na região para que as “coisas” aconteçam. É aqui que podem começar os problemas – uma diminuição do volume de chuvas na região poderá representar uma grande quebra nas safras agrícolas e na produção agropecuária, problemas que terão fortes impactos na economia de todo o país.
Também não podemos esquecer que o Cerrado é considerado o “berço das águas” do Brasil. O bioma abriga as nascentes de importantes bacias hidrográficas da América do Sul como a Amazônica (cerca de 5% dos caudais), Tocantins/Araguaia, Paraguai, Paraná e São Francisco, o que resulta em um elevado potencial aquífero e favorece a sua biodiversidade. O Cerrado também abriga três dos maiores e mais importantes aquíferos do país: Bambuí, Urucuia e parte do grandioso aquífero Guarani.
Ou seja, uma eventual diminuição do volume de chuvas na Região Centro-Oeste por causa da chegada do El Niño poderá resultar em fortes impactos em grande parte do país. Esses impactos poderão ser de ordem econômica devido à redução na produção de grãos e produtos pecuários ou na forma da redução de caudais em grandes rios com nascentes dentro do bioma Cerrado. A redução das chuvas também poderá afetar a região do Semiárido Nordestino, famosa por suas grandes secas.
A última vez que o fenômeno El Niño resolveu “dar as caras” foi entre os anos de 2018 e 2019, deixando um rastro de problemas em todo o mundo. Desde 2020, estamos convivendo continuamente com a presença de sua irmã, La Niña, que já deve estar “arrumando as malas” e em breve deverá nos deixar.
Há uma grande preocupação entre cientistas e meteorologistas no que se refere à intensidade do fenômeno neste ano, havendo inclusive expectativas de altas temperaturas e recordes de calor em algumas regiões do mundo. Uma forte onda de calor atingiu as regiões Central e Norte do Vietnã nos últimos dias, com temperaturas superando a marca dos 44º C – isso já pode ser uma prévia da “bagagem” que o El Niño está trazendo.
Para um mundo que já vem sofrendo com temperaturas cada vez mais elevadas, ano após ano, por causa das consequências do aquecimento global, a chegada desse visitante indesejável poderá significar, literalmente, “mais lenha sendo jogada na fogueira”.
Infelizmente, como esse é o único planeta que temos, nós não temos para onde fugir e vamos ter de enfrentar os problemas que virão da melhor maneira possível…