
Acontecimentos desses últimos dias colocaram a questão das Terras Indígenas em evidencia. No último dia 5, conforme apresentamos em uma postagem anterior, um jornalista inglês e um indigenista brasileiro desapareceram enquanto visitavam uma área indígena no Vale do rio Javari, no extremo Leste do Estado do Amazonas. As buscas pelos desaparecidos estão envolvendo as Forças Armadas, a Polícia Federal, a Polícia Civil do Amazonas, entre outros órgãos.
Também houve a divulgação de um relatório da Polícia Federal dando conta da altíssima contaminação de rios da Terra Indígena Ianomâmi por mercúrio de garimpos ilegais. O território dos índios ianomâmis se estende entre os Estados de Roraima e Amazonas, em território brasileiro, e por uma ampla região no Sul da Venezuela. Em ambos os lados da fronteira encontramos inúmeros garimpos ilegais de ouro.
O caso da Terra Indígena Ianomâmi não é um caso isolado – existem inúmeros outros casos conhecidos de invasão dessas terras por garimpeiros, madeireiros, pescadores e caçadores por todos os cantos do país, particularmente na Amazônia. Para dar uma ideia aos leitores do que anda acontecendo nesses territórios, selecionei um estudo de caso sobre a exploração ilegal de madeiras na Terra Indígena Sete de Setembro em Rondônia.
Localizada entre os municípios de Cacoal, em Rondônia, e Rondolândia, no Mato Grosso, a Terra Indígena Sete de Setembro é o lar dos indígenas da etnia Paiter-Suruí. Esse grupo viveu isolado na região até 1969, ano em que foram feitos os contatos iniciais pela FUNAI – Fundação Nacional do Índio.
Há época desse primeiro contato, a população dos Paiter-Suruí foi estimada em 800 indivíduos. Com a ocupação sucessiva das terras de Rondônia, o que foi resultado de um esforço do Governo Federal a partir da década de 1960 para o povoamento da Amazônia, essa população indígena passou a ter contato frequente com posseiros e fazendeiros. Calcula-se que, entre 1971 e 1974, metade dessa população morreu em virtude de doenças como gripe e sarampo contraídas dos “brancos”.
A demarcação da Terra Indígena dos Paiter-Suruí se deu apenas em 1976, época em que parte do território ancestral desse povo já havia sido ocupado por colonizadores. Essa invasão ocorreu de forma involuntária com aval do INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, autarquia criada pelo Governo Federal em 1970, com o objetivo de realizar a reforma agrária, manter o cadastro nacional de imóveis rurais e administrar as terras públicas da União.
A Terra Indígena dos Paiter-Suruí, que foi batizada oficialmente de Terra Indígena Sete de Setembro, possui uma área de 274 mil hectares, onde vivem atualmente 1200 indígenas distribuídos em 24 aldeias. O território é coberto por uma floresta ombrófila densa, uma característica que passou a chamar a atenção dos madeireiros desde a década de 1980.
A extração e o processamento de madeiras é uma das atividades econômicas mais importantes da Região Norte do Brasil. Cerca de 80% de toda a produção brasileira de madeiras vem de áreas da Amazônia, onde se incluem as atividades legais e ilegais. No caso específico de Rondônia, a indústria madeireira chegou a responder por metade do Produto Interno Bruto do Estado na década de 1980. Nos últimos anos essa participação do setor caiu para menos de 30%.
A redução da produção madeireira em Rondônia tem duas causas principais. Primeiro, devido à exaustão dos recursos – grandes áreas foram desmatadas a partir da década de 1970 para a abertura de terras agrícolas e formação de pastagens para o gado. Em segundo lugar pelas dificuldades criadas pela legislação ambiental.
A burocracia estatal envolvida para a aprovação legal da extração de madeiras é enorme. Com a falta de “estoques” madeireiros de fácil acesso, as UC – Unidades de Conservação, e as Terras Indígenas, foram transformadas em fontes de extração ilegal de madeiras. Em ambos os casos, a falta de uma estrutura eficiente de fiscalização nessas áreas facilitou, e muito, as atividades dos madeireiros ilegais.
Como vem acontecendo desde os primeiros tempos da colonização do Brasil, quando os índios derrubavam as árvores de pau-brasil em troca de espelhinhos e quinquilharias, os indígenas Paiter-Suruí passaram a ser cooptados, trocando as madeiras extraídas de suas terras por mercadorias de baixo valor como alimentos industrializados, bebidas alcoólicas, ferramentas, roupas, ou até mesmo por pequenas quantias em dinheiro vivo. Essa é uma prática que se repete em terras indígenas em toda a Amazônia.
A devastação sistemática das matas dentro da Terra Indígena, é claro, acarreta em uma série de impactos ambientais e sociais. Sempre que uma árvore de grande valor comercial é derrubada em uma mata, uma infinidade de árvores vizinhas também acaba sendo destruída. Essas árvores podem não ter valor comercial, mas são importantes do ponto de vista ambiental por produzirem frutos e sementes, que alimentam inúmeras espécies animais – inclusive seres humanos.
A redução das fontes de alimentos leva ao desaparecimento de espécies, onde destacamos mamíferos como macacos, antas e cotias, animais que são caçados pelos índios e que suprem parte de suas necessidades alimentares. A destruição das matas também provoca impactos nos rios, o que vai comprometer a pesca, outra fonte importante de alimentos.
Um impacto importante da derrubada contínua das matas é favorecimento ao crescimento de algumas espécies de árvores oportunistas, um fenômeno que leva ao aumento das chamadas espécies generalistas de crescimento rápido. Isso leva um empobrecimento cada vez maior da biodiversidade das matas.
As deficiências na alimentação e o contato frequente com madeireiros, grileiros e fazendeiros têm consequências diretas na saúde da população indígena. Um estudo feito por pesquisadores da FIOCRUZ – Fundação Oswaldo Cruz, entre os Paiter-Suruí mostrou um dos mais altos índices de tuberculose do Brasil. De acordo com os pesquisadores, a incidência dessa doença entre esses indígenas é semelhante ao que se observa na população carcerária.
Também entram nessa conta doenças sexualmente transmissíveis, desnutrição infantil, alcoolismo e consumo de drogas, entre muitas outras contribuições que os “brancos civilizados” dão aos indígenas “semisselvagens”.
Uma estimativa feita pela FUNAI em 2007, mostra bem o alcance dessa exploração madeireira ilegal: cerca de 60 caminhões carregados com toras de madeiras eram retirados diariamente da Terra Indígena Sete de Setembro, um volume equivalente a 780 metros cúbicos de madeira. Em valores há época, isso representava cerca de R$ 78 mil reais ao dia, ou, cerca de R$ 1,7 milhões ao mês.
Já para os indígenas, o ganho era de apenas R$ 30,00 para cada caminhão de madeira retirado de suas terras. Ou seja – apesar de todas as perdas em biodiversidade e recursos alimentícios, os indígenas ficavam com apenas 2% dos ganhos com a venda das madeiras.
É essa indústria altamente lucrativa para uns poucos e devastadora para as comunidades indígenas que, em conjunto com o garimpo, está devastando várias Terras Indígenas na Amazônia.